Biografia comentada Paula Alzugaray, 05/2007

Há uma sentença que se repete quando se fala em Rosângela Rennó: “A fotógrafa que não fotografa”. Mas não foi, e nem é, sempre assim. A artista passou a ser reconhecida dessa forma a partir do momento em que decidiu deixar de fotografar, substituindo o ato fotográfico pela apropriação de imagens já existentes. Isso foi em meados da década de 1980, quando ainda vivia em Belo Horizonte e começou a trabalhar com imagens encontradas em álbuns de retratos. Esse primeiro impulso arqueológico deu origem à série Pequena ecologia da imagem, quando seu olhar voltou-se para imagens de pouca definição e legibilidade, com figuras obscurecidas, veladas, fora de foco, ou apenas sugeridas. Mulheres iluminadas (1988) e A mulher que perdeu a memória (1988), entre outras imagens, prenunciam a investigação que Rosângela Rennó empreenderia ao longo das décadas seguintes sobre a memória, a identidade e seus apagamentos.

Até hoje, Rosângela se reconhece muito econômica quando fotografa e diz que documenta apenas o que acha que vale a pena guardar, “quase sempre as marcas da presença humana no mundo”. Em vez de fotografar, colecionar. O interesse pelas imagens descartadas e o hábito de colecionar (álbuns, fotos, textos etc.) foram decisivos para a formação de suas estratégias de trabalho. Os primeiros grandes “achados” datam de 1988, quando, ao começar uma pós-graduação em cinema, na Escola de Comunicações e Artes da USP, desenvolve uma série de fotografias a partir de fotogramas jogados nos lixos próximos às salas de montagem. Pouco depois, ao mudar-se para o Rio de Janeiro, começaria a vasculhar os antigos estúdios de retratos 3x4 do centro da cidade, recuperando arquivos mortos de negativos e cópias esquecidas.

A coleção detonaria uma contundente reflexão acerca do valor social e do poder simbólico da fotografia, expressos em trabalhos instalativos como Duas lições de realismo fantástico (1991), a série A identidade em jogo (1991), Atentado ao poder (1992) e Imemorial (1994). Apontada como uma das primeiras artistas brasileiras a deslocar a fotografia do campo bidimensional para o território da instalação artística, Rosângela Rennó se tornaria logo uma referência em qualquer discussão acerca da expansão da imagem fotográfica.

Além disso, todas as suas séries que reprocessam imagens de arquivos foram decisivas para os conceitos de fotografia contaminada e fotografia de apropriação, que surgiram no início dos anos 1990. Curador da mostra Fotografia contaminada (Centro Cultural São Paulo, 1994), o crítico Tadeu Chiarelli publicaria um texto em Lapiz: Revista Internacional de Arte, em julho/setembro de 1997, creditando à visibilidade da obra de Rosângela Rennó a “maioridade internacional” da fotografia brasileira.* A artista está entre os artistas brasileiros de maior projeção internacional, com obras nos acervos de instituições como The Art Institute of Chicago, The Museum of Contemporary Art, de Los Angeles, Tate Modern e Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, de Madri, entre outras.

A expansão da imagem, na obra de Rennó, atinge outro patamar de complexidade a partir dos trabalhos com sua coleção de textos de jornal que fazem referência à fotografia. As várias séries que constituem o projeto em processo Arquivo universal (desde 1992) apresentam textos usados e manipulados como fotografias. Os critérios para seleção e edição dos textos são os mesmos usados para as fotografias. Assim como na imagem, a manipulação dos textos ocorre no sentido de eliminar especificidades e referências espaço-temporais. Em entrevista ao crítico e curador Paulo Herkenhoff, Rosângela afirma que sob orientação do professor Eduardo Peñuela, na USP, “houve um aguçamento da vontade de trabalhar com jogos intertextuais. Daí nasceu o interesse pelo texto substituindo a imagem”.**

Assim como o interesse pela intertextualidade visual já estava presente nos anos de formação, a experiência com o cinema também é uma condição inerente ao trabalho da artista. Mesmo que a obra em vídeo só viesse a acontecer mais adiante, a partir de Vera Cruz (2000) e Espelho diário (2001), as questões relacionadas à imagem em movimento que surgiram nas aulas de cinema foram imediatamente incorporadas à pesquisa artística de Rennó.

Elas aparecem já em uma de suas primeiras individuais, Anti-cinema, realizada na Galeria Corpo, em Belo Horizonte, em 1989. Na exposição, alguns trabalhos prestavam homenagem a Muybridge e Etiene-Jules Marey, os pais da fotografia seqüencial, e aos artistas Marcel Duchamp e Jan Dibbets. Tratava-se de uma série de fotografias montadas sobre discos LP, que deveriam ser “rodadas” em toca-discos antigos. Outras obras dialogavam diretamente com a matéria-prima do cinema: uma série de fotografias de grande formato, feitas a partir dos fotogramas de cinema achados no lixo da ECA-USP. Outro objeto, Detector de primaveras (1989), feito com um antigo flash de bulbo, girava e piscava sobre um pedestal e completava a reflexão sobre a interlocução entre as artes visuais, a fotografia e o cinema.

Dois anos depois, Lição de realismo fantástico (1991), sua primeira experiência com projeção de imagens em movimento, consistia em uma instalação com dois pedestais de onde surgiam imagens fantasmagóricas, projetadas sobre a parede e girando sem parar. O dispositivo evocava um sistema muito antigo de produção de “fantasmagorias”, comum às lanternas mágicas giratórias do século 18.

O fascínio da artista por maquinárias e aparelhos cinéticos ganhou reforço com Experiência de cinema (2004), que funciona a partir de um dispositivo de projeção de imagens sobre fumaça. Mais uma vez evocando o desaparecimento da imagem, o trabalho articula o mesmo conceito que levou Rosângela Rennó a deixar de fotografar: a crítica sobre o fluxo contínuo de produção e consumo de imagens, que levam a um inevitável mecanismo seletivo da memória, conduzindo, em última instância, a uma amnésia social.

* Tadeu Chiarelli em “Fotografia no Brasil: anos 90”, texto reproduzido no livro Arte internacional brasileira, Lemos Editorial, São Paulo, 1999.

** Depoimento reproduzido em “Rennó ou a beleza e o dulçor do presente”, texto de Paulo Herkenhoff, no livro Rosângela Rennó, Edusp/Imprensa Oficial, São Paulo, 1998.