Ensaio Daniela Bousso, 05/2007

Da imagem fotográfica à imagem em movimento: Rosângela

A obra de Rosângela Rennó integra um eixo contemporâneo de ação artística que opera relações de trânsito e simultaneidade em espaços coletivos e colaborativos que colocam em debate os clichês da sociedade globalizada. A artista cria a metáfora do nosso tempo por meio da produção de múltiplos sentidos e aciona incessantemente a participação do espectador.

É dentro da idéia de modernidade líquida, formulada por Zygmunt Bauman,* que podemos referenciar essa obra, cujo teor sociopolítico vem em clima de denúncia – sem pretender ser porta-voz da diferença – e provoca uma fricção em reação imediata à nossa condição líquida e fluida. Como diria Bauman, “líquido” é um conceito que define a oposição à idéia de fixidez e de peso da modernidade. A mudança da nossa noção de espaço e tempo deve–se a uma circunstância de sobreposição e instabilidade, que vem ocorrendo desde o início do século 20 e que tem se acirrado na virada do milênio. Na atualidade, estamos diante de uma situação universal em trânsito, feita consecutivamente de aceleração e amnésia, e que promove o apagamento da memória.

O assunto “esquecimento e amnésia” tem sido um foco privilegiado de discussão no campo da arte a partir do advento da globalização no planeta. O uso de jogos que alternam o ficcional e o real produz o que atualmente chamamos de “modo documental” na arte, que encontramos nas obras de artistas como Walid Raad, a jovem Alice Miceli e outros, além da própria Rosângela. Cabe, então, indagar como esta artista tem potencializado essa discussão.

Eu diria que a obra de Rennó constitui uma espécie de “Arquivo vivo”. Arquivo como fonte de resgate da memória, para a construção da história e como estratégia de combate à amnésia. Aqui, arrisco não me deter na descrição da sua obra – desdobrada por mais de vinte anos em arquivos, coleções, bibliotecas, diários, arquivística e vídeos, a partir de fotos, instalações, filmes e objetos – para tentar adentrar o seu percurso em relação à imagem.

Parece certo que o seu interesse não se atém somente ao campo da fotografia. Tanto é assim que era difícil nomear a sua atividade. Se lhe perguntássemos se era fotógrafa, rapidamente ela se esquivava dessa nomenclatura; ela se dizia artista e fazia a diferenciação entre a sua atitude e a dos fotógrafos tradicionais. Penso que o compromisso de Rennó é com a trajetória da imagem e que ela rastreia um percurso que vem da fotografia à imagem em movimento, alcançando a experiência cinemática e atualizando-a por meio do que hoje denominamos Transcinemas ou cinemas do futuro.

Segundo Kátia Maciel, que cunhou esse termo juntamente com André Parente, Transcinema é “o cinema como interface, isto é, como uma superfície em que podemos ir através” [...] “A invenção do espaço tridimensional renascentista, a ruptura com este espaço pela modernidade e a criação do espaço imersivo na contemporaneidade indicam o movimento desta idéia no tempo” [...] “se pensarmos na maneira como, no Brasil, o Neoconcretismo problematiza a quebra da moldura e a espacialização da pintura, esclarecemos um processo que irá resultar na inclusão do espectador na obra” [...] “a variedade de formas a que chamamos de Transcinemas produz uma imagem – relação que se constitui a partir de um observador implicado em seu processo de recepção. É a este espectador tornado participador que cabe a articulação entre os elementos propostos e é nesta relação que se estabelece um modelo possível de situação a ser vivida” [...] “não é o artista que define o que é a obra, nem mesmo o sujeito implicado, mas é a relação entre estes termos que institui a forma sensível. É a este cinema relação criado de situações de luz e movimento em superfícies híbridas que chamamos de Transcinema.”**

A obra de Rennó situa-se no campo dos deslocamentos e dos territórios expandidos, dos desígnios e percursos que, se não cabem na discussão dos meios ou das mídias, ocupam lugares não específicos, espaços intersticiais e de indeterminação, nos quais o espectador, ao modo já proposto por Oiticica, transforma-se em participador da obra. Em qualquer um dos meios em que opera, do colecionismo fotográfico às videoinstalações e às experiências com filmes, o grau de completude da obra dependerá da relação de alteridade, de um “outro” co–autor, de um desencadeamento mental-imagético, para que a obra cumpra a sua função e atinja a sua máxima poética, que é o vislumbre do devir.

Isso significa operar em tal grau de tensão a ponto de modificar o destino das imagens (devir) encontradas em álbuns de família rastreados em brechós, em arquivos prisionais. Visa a apropriação, o deslocamento e a ressignificação destes, a partir de um ato de intervenção da artista que pressupõe a reintervenção do “outro”. Por trás da aparente obsessão de colecionar e arquivar, revela-se a presença constante que é, em última análise, o fio condutor de toda a sua trajetória: a narrativa. Em tudo ela se metamorfoseia, desde as operações com o próprio meio fotográfico até seus mais recentes experimentos com filmes. Interessam os desencadeamentos provocados no perceptum do observador quando em contato com a obra.

Ao constituir novas narrativas que criam imaginários cinemáticos, a obra nos alcança em nossa dimensão corpórea, herança do minimalismo e do próprio percurso das instalações a partir dos anos 1990 na arte. É quando o cinema evolui para a interatividade, configurando a idéia de Transcinema. A ênfase na evolução do cinema – caracterizada desde os anos 1960 pelo movimento do cinema expandido ligado ao experimentalismo, que altera a condição clássica de recepção de filmes: película e platéia/recepção passiva – transparece em Experiência de cinema.

Nesta obra, quatro seqüências de imagens intermitentes aparecem e desaparecem. A projeção em uma cortina de fumaça que movimenta imagens em gelo seco é criada a partir de fotos de arquivo organizadas em quatro seqüências fílmicas, com oito segundos de duração cada. A instalação conta com a espacialidade das videoinstalações, mas a materialidade efêmera das imagens em movimento projetadas constitui uma espécie de tela volátil. A cortina de fumaça evoca a condição fantasmagórica das lanternas mágicas do século 17 e remonta aos primórdios da história do cinema.

Curiosamente, Rennó trabalha com quatro gêneros do cinema nestas seqüências: amor, família, filme de guerra e policial, cada uma com 31 fotografias. O jogo ficcional entre amor e morte permanece como integrante de sua obra, juntamente com a narrativa. O que nos intriga é perceber como estes quatro gêneros soam como clichês da crise no mundo contemporâneo. Existe algo mais assustador e, finalmente, mais recorrente do que a idéia da morte e da impossibilidade do amor romântico, das relações familiares ou grupais na modernidade líquida?

Segundo Bauman, os padrões de liquefação hoje se deslocaram do campo político para o da vida privada, e os laços de dependência e interação vêm sendo sistematicamente negados, justamente para não manterem a sua forma por um tempo estendido: tudo tende a se desfazer de forma a se tornar fluido. Tudo que é fluido escorre e se dilui, nos escapa, mas também não nos compromete. E, quanto aos clichês da guerra e da violência, ainda que postos sob forma de vigilância e punição, não estaria Rosângela, em última instância, encetando um discurso sobre a opressão? A cada seqüência que some na fumaça, não estamos sendo colocados diante do inevitável escape, da inexorável evanescência de tudo que nos concerne em tempos atuais?

As aparições e desaparições das seqüências cinemáticas colocam o público em um tipo de experiência única, onde a intermitência e a interrupção, além de provocarem no espectador a sensação de estar diante do fugaz, daquilo que escapa sem possibilidade deste intervir, o faz lidar com um momento de suspensão e estranhamento. Aí é que a artista opera um mecanismo extremamente sofisticado no jogo da percepção. O intervalo de tempo entre uma seqüência e outra nos traz a sensação do apagamento, da perda de algo que permanece em nível subliminar; ficamos, de súbito, diante do impalpável e do inefável, eis a crueldade desta forma de opressão: quando sentimos que vamos perder algo ou que este algo vai se apagar e se perder no túnel do tempo, aí é que queremos reter este algo que se esvai antes que possamos compreendê-lo ou sequer tocá-lo.

Em Experiência de cinema, não é a amnésia em si que nos causa assombro, mas a impossibilidade de detê-la, a sua irreversibilidade. Tudo isso sem falar no caráter inovador do experimento com uma outra forma de fazer cinema, este cinema expandido ou Transcinema, almejado desde o Surrealismo, passando pelo cinema experimental dos anos 1960 e finalmente chegando à relação de interatividade com o participador entre os anos 1990 e 2000.

Afora isso tudo, Rennó ainda cria uma situação de suspensão e suspense que chega a nos lembrar filmes como O discreto charme da burguesia e O fantasma da liberdade, de Luis Buñuel, onde a dissociação de fatos e realidades provoca em nós a sensação de termos que remontar um quebra-cabeça para recompor o todo. A suspensão de temporalidades em Experiência de cinema não nos permite elaborar a narrativa, e a angústia da urgência por outra seqüência gera, no intervalo, um sentimento de desolamento e solidão. Novamente entra em jogo, agora pelo avesso, o combate ao apagamento e à amnésia, uma das máximas na poética desta artista.

Em tempo, arrisco pensar que os arquivos, as bibliotecas, as coleções, os álbuns, os personagens “trouvés” de Rosângela Rennó vêm vindo, há mais de duas décadas, para integrar uma grande narrativa, ainda que desconstruída. O seu percurso em relação à imagem não se atém à condição poética; há uma investigação formal que desembocou na experiência da imagem em movimento. O “Arquivo vivo” de Rennó é mais que um testemunho transgeneracional, pois tem no centro dos seus experimentos a interatividade e a força sensória da imagem-relação. Já é, como diriam os cariocas. Sempre foi e já é Transcinema.

Daniela Bousso é doutora em artes visuais, comunicação e semiótica. Dirige o Paço das Artes, em São Paulo, desde 1997, e é curadora do Prêmio Sergio Motta de arte eletrônica, que criou em 2000. Entre seus trabalhos como curadora destacam-se as exposições Excesso (1996), Arte e Tecnologia (1998), Por que Duchamp? (1999-2000), Metacorpos (2003) e Ocupação (2005), todas no Paço das Artes, São Paulo; as Salas Denis Oppenheim e Tony Oursler, na 24ª Bienal de São Paulo (1998); a Sala Especial Rafael França na Bienal do Mercosul (2001), Porto Alegre; e a 3ª Paralela à Bienal (2006), São Paulo. Com artigos publicados em revistas de arte, editou os livros Artur Barrio: a metáfora dos fluxos 2000/1968 e Intimidade, pelo Paço das Artes. Especialista em planejamento e estratégia de políticas públicas para a arte contemporânea e arte tecnologia, organizou o I Simpósio Internacional de Arte Contemporânea Padrões aos pedaços, o pensamento contemporâneo na arte, no Paço das Artes (2005).

* BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

** MACIEL, Kátia. Transcinema e a estética da interrupção em limiares da imagem, Antonio Fatorelli e Fernando Bruno, (org.), Rio de Janeiro: Maud, 2006.

Entrevista Paula Alzugaray, 05/2007

Eu gostaria de conversar sobre um grupo de trabalhos em que você explora os textos de jornal. Quando deslocados para o corpo do seu trabalho, esses textos funcionam como breves narrativas de existências anônimas. Que alteridades são essas, escondidas atrás de nomes abreviados?

A humanidade. Esses textos pertencem ao Arquivo universal. A idéia de eliminar de um texto quaisquer referências que apontem para uma imagem específica ou uma pessoa específica, e torná-lo ambíguo o suficiente para você imaginar que se refere a várias pessoas, situações, países ou épocas, é para aproximá-lo do efeito que uma fotografia provoca em você. A fotografia não tem nome e não tem data, a não ser que você fotografe algum dado que te localize no tempo e no espaço. A idéia era jogar com essa possibilidade de projetar no texto o personagem que você quiser. E essa alteridade pode ser você mesmo. Você pode projetar a si próprio. É muito parecido ao modo que uso a imagem, quando tiro seu contraste, ou crio uma opacidade intencional para dificultar a legibilidade da foto.

Tudo parece trabalhar no sentido de legitimar uma indagação contida na videoinstalação Espelho diário: “Não é verdade que toda notícia de jornal diz respeito a nós mesmos?”

Acho que sim. Mas tem um outro lado que me interessa, complementar a essa idéia. A história oficial que é contada nos livros é, em geral, uma história muito masculina. É a história dos heróis – apesar de a história do Brasil ser cheia de momentos engraçados, ou pouco heróicos. Mas o que eu gosto mesmo é de contar as pequenas histórias, que podem acontecer com qualquer um. São os pequenos relatos dos oprimidos, dos vencidos, dos que não têm vez. A história dos vencidos é mais interessante.

Esses textos de jornal, manipulados em Espelho diário e em outras instalações como In Iblivionem, ou Hipocampo, me parecem perder muito de sua “objetividade jornalística” e ganhar uma aura fantasiosa que os aproximaria das narrativas descritas por Walter Benjamin em O narrador. É como se a notícia original decolasse em direção a outros conteúdos.

Mas os textos têm uma manipulação mínima. Sofrem só alguns cortes, onde elimino as referências que não me interessam: geográficas, temporais e identitárias. Essa sensação de abertura que você tem, acho que é devido ao fragmento estar descontextualizado do texto integral.

Essas pequenas omissões são suficientes para retirar do texto seu teor informativo e transformá-lo em ficção?

Eu não consigo mais ver a distância entre ficção e realidade nesses textos. Devo ter uns dez textos sobre tortura na ditadura, mas em todos eles é muito mais fácil imaginá-los como ficção do que como realidade. Mas acho que esse potencial está dentro dele. Eu só dou um jeito da coisa ficar mais enigmática do que ela é.

Voltando a Walter Benjamin, que diz ser a narrativa “uma forma artesanal de comunicação”, gerada em sincronia com o trabalho manual de artífices, em que medida a sua relação com os arquivos de fotos e textos é de “modelagem”?

Eu sempre gostei dessa possibilidade de imagens abertas. Fazer com que sejam ambíguas o suficiente para você poder se projetar e interagir com elas, de uma forma muito direta. Abrir a imagem para que você possa se identificar, mais do que tentar associá-la a um outro personagem.

Em Bibliotheca há outro narrador, diferente daquele de Arquivo universal. Ele aparece no arquivo de fichas que descrevem os álbuns lacrados dentro de vitrines. Em vez de simplesmente descrever as imagens, ele parece interpretar a história do personagem retratado. Qual a particularidade desse narrador em relação aos anteriores?

Ele deduz a história a partir da leitura dos álbuns. Mas você não pode ter certeza das imagens que estão ali dentro. Nada garante que o que está escrito pelo bibliotecário seja verdade. O narrador é um bibliotecário que pode ter mentido para você. Você tem que acreditar nele, como tem que acreditar nos narradores, como tem que acreditar nos jornalistas também: acreditar que aquela notícia está sendo corretamente relatada. Mas talvez aí exista um desejo mais de ordenar, de guardar. As narrativas que estão nos álbuns não estão acessíveis. Então, me parece que aqui não há um narrador. Há, sim, um bibliotecário muito mais interessado em guardar, ou salvar um vestígio de algo. Mas é tudo incompleto e fragmentado, os dados são frágeis. Esse é o delírio que criei para esse bibliotecário. Que grau de veracidade você pode dar a uma história feita de fragmentos? Se estou especulando sobre a motivação do cara para tirar cinqüenta imagens e só deixar dez, estou fazendo ficção.

Os vazios e lacunas nas narrativas de Bibliotheca refletem os brancos e a descontinuidade da memória. Você tem ainda um outro trabalho “em branco”, o vídeo Vera Cruz, em que uma narrativa histórica persegue um filme em branco. Que relação há entre os espaços brancos nos álbuns de retratos e esse vídeo?

Em Vera Cruz, há um texto muito bem apoiado num documento, que deve ser o documento mais conhecido e importante do Brasil. Mas a única coisa que a gente tem são esses relatos textuais. Eu gostei justamente de trabalhar com tudo aquilo que não pôde ser documentado. Quando você lê a carta, o que você consegue imaginar sobre a relação dos portugueses com os índios? Ali há muito poucos elementos para isso. Você tem só a versão do português, não tem a versão do outro lado. É a visão do colonizador.

O branco da imagem simboliza a ausência do outro lado da história? Indica a fragilidade do relato do colonizador?

Sim, e também um excesso de julgamento, a partir de um contato muito efêmero. Indica a falta da contrapartida de um julgamento, por exemplo, de que os índios não tinham paladar, só porque não gostaram do vinho e das frutas secas que serviram para eles no barco. Se fosse totalmente isento de julgamento, talvez fosse um texto mais interessante. Mas não sei se seria possível um texto totalmente descritivo.

Vejo um certo parentesco de Vera Cruz e Congo, feito por Arthur Omar, em 1972. No filme, a ação é substituída por frases e letreiros sobre fundo branco. O texto funciona como uma espécie de roteiro de uma ação que não foi filmada. E em Vera Cruz, o branco aparece para questionar o texto.

Não conheço Congo, mas, em Vera Cruz, as legendas existem para serem questionadas mesmo. Aquele diálogo é fictício, criado a partir dos dados contidos na carta de Pero Vaz de Caminha. Sabemos que o diálogo entre índios e portugueses não ocorreu. O trabalho apresenta, então, várias impossibilidades, que você está chamando de “brancos”. Uma documentação impossível, um diálogo impossível. Há a fala do português, mas não há a réplica, porque a réplica não foi entendida. O outro é visto e julgado a partir de um único ponto de vista.

O branco é a ausência do outro. Ocorre uma espécie de antidocumentário, porque aqui não se tem o “outro”, sempre tão evocado pelo documentário.

No documentário, o outro tem voz, o outro responde. Naquela época, o único relato possível era o textual, ou os desenhos. Daí você tem que contar só com a versão de quem está apresentando aquilo que você tem que acreditar que sejam os fatos.

Mas a ausência do outro pode ocorrer também em um documentário de imagem, dependendo da forma como essa informação é editada.

Você tem razão. E Bibliotheca também tem um pouco dessa condução da informação ao te impossibilitar de ver o álbum propriamente dito e te apresentar só uma espécie de resumo do conteúdo. É tudo incompleto e eu só dou a ver aquilo que me interessa. E você tem que acreditar. Se eu estou mentindo, ou não, isso você nunca vai saber. Isso vem da constatação que tive visitando os museus do mundo e vendo como eles preparam as visitas monitoradas, as exposições temáticas, onde você coloca um headphone, encurta sua visão e é conduzido a olhar aquele objeto a partir de indicações prévias. Para enxergar exatamente aquilo que o museu pretende que você veja. As pessoas buscam as visitas guiadas, achando que através disso vão sair com mais saber e conhecimento. É por isso que eu quis colocar a imagem fotográfica da capa do álbum na vitrine, oferecendo ao público apenas uma representação desse objeto.

Em Espelho diário, você interpreta uma diversidade incrível de mulheres, identificadas a partir de um único ponto comum: o nome. Há aqui uma outra forma de eliminação do outro? De devorar o outro?

Não sei, não sei. Talvez, quem tenha sumido ali tenha sido eu, não? Bom, eu só não desapareci totalmente porque não sou atriz para ficar incorporando a sem-teto, a socialite, a morta. Eu não tenho essa capacidade, quisera eu, eu devia ter treinado um pouco mais... Mas, no final, gostei de não me amalgamar tanto, manter um mínimo de distância. Mas não sei se espelhar é o mesmo que canibalizar.

O espelho criado ali mantém as distâncias entre as alteridades dessas Rosângelas?

É como eu enxergo. Mas há muitos espelhamentos dentro desse trabalho. Tentei não assumir totalmente o lugar do outro, mas também não me posicionar no lugar da narradora. O espelho implica numa dualidade. E fala em dois lados que se parecem. De um lado, as minhas homônimas todas; do outro, eu.

Biografia comentada Paula Alzugaray, 05/2007

Há uma sentença que se repete quando se fala em Rosângela Rennó: “A fotógrafa que não fotografa”. Mas não foi, e nem é, sempre assim. A artista passou a ser reconhecida dessa forma a partir do momento em que decidiu deixar de fotografar, substituindo o ato fotográfico pela apropriação de imagens já existentes. Isso foi em meados da década de 1980, quando ainda vivia em Belo Horizonte e começou a trabalhar com imagens encontradas em álbuns de retratos. Esse primeiro impulso arqueológico deu origem à série Pequena ecologia da imagem, quando seu olhar voltou-se para imagens de pouca definição e legibilidade, com figuras obscurecidas, veladas, fora de foco, ou apenas sugeridas. Mulheres iluminadas (1988) e A mulher que perdeu a memória (1988), entre outras imagens, prenunciam a investigação que Rosângela Rennó empreenderia ao longo das décadas seguintes sobre a memória, a identidade e seus apagamentos.

Até hoje, Rosângela se reconhece muito econômica quando fotografa e diz que documenta apenas o que acha que vale a pena guardar, “quase sempre as marcas da presença humana no mundo”. Em vez de fotografar, colecionar. O interesse pelas imagens descartadas e o hábito de colecionar (álbuns, fotos, textos etc.) foram decisivos para a formação de suas estratégias de trabalho. Os primeiros grandes “achados” datam de 1988, quando, ao começar uma pós-graduação em cinema, na Escola de Comunicações e Artes da USP, desenvolve uma série de fotografias a partir de fotogramas jogados nos lixos próximos às salas de montagem. Pouco depois, ao mudar-se para o Rio de Janeiro, começaria a vasculhar os antigos estúdios de retratos 3x4 do centro da cidade, recuperando arquivos mortos de negativos e cópias esquecidas.

A coleção detonaria uma contundente reflexão acerca do valor social e do poder simbólico da fotografia, expressos em trabalhos instalativos como Duas lições de realismo fantástico (1991), a série A identidade em jogo (1991), Atentado ao poder (1992) e Imemorial (1994). Apontada como uma das primeiras artistas brasileiras a deslocar a fotografia do campo bidimensional para o território da instalação artística, Rosângela Rennó se tornaria logo uma referência em qualquer discussão acerca da expansão da imagem fotográfica.

Além disso, todas as suas séries que reprocessam imagens de arquivos foram decisivas para os conceitos de fotografia contaminada e fotografia de apropriação, que surgiram no início dos anos 1990. Curador da mostra Fotografia contaminada (Centro Cultural São Paulo, 1994), o crítico Tadeu Chiarelli publicaria um texto em Lapiz: Revista Internacional de Arte, em julho/setembro de 1997, creditando à visibilidade da obra de Rosângela Rennó a “maioridade internacional” da fotografia brasileira.* A artista está entre os artistas brasileiros de maior projeção internacional, com obras nos acervos de instituições como The Art Institute of Chicago, The Museum of Contemporary Art, de Los Angeles, Tate Modern e Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, de Madri, entre outras.

A expansão da imagem, na obra de Rennó, atinge outro patamar de complexidade a partir dos trabalhos com sua coleção de textos de jornal que fazem referência à fotografia. As várias séries que constituem o projeto em processo Arquivo universal (desde 1992) apresentam textos usados e manipulados como fotografias. Os critérios para seleção e edição dos textos são os mesmos usados para as fotografias. Assim como na imagem, a manipulação dos textos ocorre no sentido de eliminar especificidades e referências espaço-temporais. Em entrevista ao crítico e curador Paulo Herkenhoff, Rosângela afirma que sob orientação do professor Eduardo Peñuela, na USP, “houve um aguçamento da vontade de trabalhar com jogos intertextuais. Daí nasceu o interesse pelo texto substituindo a imagem”.**

Assim como o interesse pela intertextualidade visual já estava presente nos anos de formação, a experiência com o cinema também é uma condição inerente ao trabalho da artista. Mesmo que a obra em vídeo só viesse a acontecer mais adiante, a partir de Vera Cruz (2000) e Espelho diário (2001), as questões relacionadas à imagem em movimento que surgiram nas aulas de cinema foram imediatamente incorporadas à pesquisa artística de Rennó.

Elas aparecem já em uma de suas primeiras individuais, Anti-cinema, realizada na Galeria Corpo, em Belo Horizonte, em 1989. Na exposição, alguns trabalhos prestavam homenagem a Muybridge e Etiene-Jules Marey, os pais da fotografia seqüencial, e aos artistas Marcel Duchamp e Jan Dibbets. Tratava-se de uma série de fotografias montadas sobre discos LP, que deveriam ser “rodadas” em toca-discos antigos. Outras obras dialogavam diretamente com a matéria-prima do cinema: uma série de fotografias de grande formato, feitas a partir dos fotogramas de cinema achados no lixo da ECA-USP. Outro objeto, Detector de primaveras (1989), feito com um antigo flash de bulbo, girava e piscava sobre um pedestal e completava a reflexão sobre a interlocução entre as artes visuais, a fotografia e o cinema.

Dois anos depois, Lição de realismo fantástico (1991), sua primeira experiência com projeção de imagens em movimento, consistia em uma instalação com dois pedestais de onde surgiam imagens fantasmagóricas, projetadas sobre a parede e girando sem parar. O dispositivo evocava um sistema muito antigo de produção de “fantasmagorias”, comum às lanternas mágicas giratórias do século 18.

O fascínio da artista por maquinárias e aparelhos cinéticos ganhou reforço com Experiência de cinema (2004), que funciona a partir de um dispositivo de projeção de imagens sobre fumaça. Mais uma vez evocando o desaparecimento da imagem, o trabalho articula o mesmo conceito que levou Rosângela Rennó a deixar de fotografar: a crítica sobre o fluxo contínuo de produção e consumo de imagens, que levam a um inevitável mecanismo seletivo da memória, conduzindo, em última instância, a uma amnésia social.

* Tadeu Chiarelli em “Fotografia no Brasil: anos 90”, texto reproduzido no livro Arte internacional brasileira, Lemos Editorial, São Paulo, 1999.

** Depoimento reproduzido em “Rennó ou a beleza e o dulçor do presente”, texto de Paulo Herkenhoff, no livro Rosângela Rennó, Edusp/Imprensa Oficial, São Paulo, 1998.

Referências bibliográficas 05/2007

Arquivos do mal
Arquivos do mal/ Mal de arquivo é um texto de Maria Angélica Melendi, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais, sobre o trabalho Cicatriz, realizado com negativos encontrados na Penitenciária do Estado. Melendi também é autora do texto do livro Rosângela Rennó: O arquivo universal e outros arquivos, publicado pela Cosac & Naify, em 2003.

Galeria Vermelho
Site da Galeria Vermelho inclui currículo da artista, imagens de obras, bibliografia e o texto de Lisette Lagnado, Pequena e grande memória (sobre o trabalho de Rosângela Rennó). 

VB On-line
Sinopses de obras da artista que passaram pelo Festival Internacional de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil e outros programas da Associação.