Entrevista Paula Alzugaray, 05/2007

Eu gostaria de conversar sobre um grupo de trabalhos em que você explora os textos de jornal. Quando deslocados para o corpo do seu trabalho, esses textos funcionam como breves narrativas de existências anônimas. Que alteridades são essas, escondidas atrás de nomes abreviados?

A humanidade. Esses textos pertencem ao Arquivo universal. A idéia de eliminar de um texto quaisquer referências que apontem para uma imagem específica ou uma pessoa específica, e torná-lo ambíguo o suficiente para você imaginar que se refere a várias pessoas, situações, países ou épocas, é para aproximá-lo do efeito que uma fotografia provoca em você. A fotografia não tem nome e não tem data, a não ser que você fotografe algum dado que te localize no tempo e no espaço. A idéia era jogar com essa possibilidade de projetar no texto o personagem que você quiser. E essa alteridade pode ser você mesmo. Você pode projetar a si próprio. É muito parecido ao modo que uso a imagem, quando tiro seu contraste, ou crio uma opacidade intencional para dificultar a legibilidade da foto.

Tudo parece trabalhar no sentido de legitimar uma indagação contida na videoinstalação Espelho diário: “Não é verdade que toda notícia de jornal diz respeito a nós mesmos?”

Acho que sim. Mas tem um outro lado que me interessa, complementar a essa idéia. A história oficial que é contada nos livros é, em geral, uma história muito masculina. É a história dos heróis – apesar de a história do Brasil ser cheia de momentos engraçados, ou pouco heróicos. Mas o que eu gosto mesmo é de contar as pequenas histórias, que podem acontecer com qualquer um. São os pequenos relatos dos oprimidos, dos vencidos, dos que não têm vez. A história dos vencidos é mais interessante.

Esses textos de jornal, manipulados em Espelho diário e em outras instalações como In Iblivionem, ou Hipocampo, me parecem perder muito de sua “objetividade jornalística” e ganhar uma aura fantasiosa que os aproximaria das narrativas descritas por Walter Benjamin em O narrador. É como se a notícia original decolasse em direção a outros conteúdos.

Mas os textos têm uma manipulação mínima. Sofrem só alguns cortes, onde elimino as referências que não me interessam: geográficas, temporais e identitárias. Essa sensação de abertura que você tem, acho que é devido ao fragmento estar descontextualizado do texto integral.

Essas pequenas omissões são suficientes para retirar do texto seu teor informativo e transformá-lo em ficção?

Eu não consigo mais ver a distância entre ficção e realidade nesses textos. Devo ter uns dez textos sobre tortura na ditadura, mas em todos eles é muito mais fácil imaginá-los como ficção do que como realidade. Mas acho que esse potencial está dentro dele. Eu só dou um jeito da coisa ficar mais enigmática do que ela é.

Voltando a Walter Benjamin, que diz ser a narrativa “uma forma artesanal de comunicação”, gerada em sincronia com o trabalho manual de artífices, em que medida a sua relação com os arquivos de fotos e textos é de “modelagem”?

Eu sempre gostei dessa possibilidade de imagens abertas. Fazer com que sejam ambíguas o suficiente para você poder se projetar e interagir com elas, de uma forma muito direta. Abrir a imagem para que você possa se identificar, mais do que tentar associá-la a um outro personagem.

Em Bibliotheca há outro narrador, diferente daquele de Arquivo universal. Ele aparece no arquivo de fichas que descrevem os álbuns lacrados dentro de vitrines. Em vez de simplesmente descrever as imagens, ele parece interpretar a história do personagem retratado. Qual a particularidade desse narrador em relação aos anteriores?

Ele deduz a história a partir da leitura dos álbuns. Mas você não pode ter certeza das imagens que estão ali dentro. Nada garante que o que está escrito pelo bibliotecário seja verdade. O narrador é um bibliotecário que pode ter mentido para você. Você tem que acreditar nele, como tem que acreditar nos narradores, como tem que acreditar nos jornalistas também: acreditar que aquela notícia está sendo corretamente relatada. Mas talvez aí exista um desejo mais de ordenar, de guardar. As narrativas que estão nos álbuns não estão acessíveis. Então, me parece que aqui não há um narrador. Há, sim, um bibliotecário muito mais interessado em guardar, ou salvar um vestígio de algo. Mas é tudo incompleto e fragmentado, os dados são frágeis. Esse é o delírio que criei para esse bibliotecário. Que grau de veracidade você pode dar a uma história feita de fragmentos? Se estou especulando sobre a motivação do cara para tirar cinqüenta imagens e só deixar dez, estou fazendo ficção.

Os vazios e lacunas nas narrativas de Bibliotheca refletem os brancos e a descontinuidade da memória. Você tem ainda um outro trabalho “em branco”, o vídeo Vera Cruz, em que uma narrativa histórica persegue um filme em branco. Que relação há entre os espaços brancos nos álbuns de retratos e esse vídeo?

Em Vera Cruz, há um texto muito bem apoiado num documento, que deve ser o documento mais conhecido e importante do Brasil. Mas a única coisa que a gente tem são esses relatos textuais. Eu gostei justamente de trabalhar com tudo aquilo que não pôde ser documentado. Quando você lê a carta, o que você consegue imaginar sobre a relação dos portugueses com os índios? Ali há muito poucos elementos para isso. Você tem só a versão do português, não tem a versão do outro lado. É a visão do colonizador.

O branco da imagem simboliza a ausência do outro lado da história? Indica a fragilidade do relato do colonizador?

Sim, e também um excesso de julgamento, a partir de um contato muito efêmero. Indica a falta da contrapartida de um julgamento, por exemplo, de que os índios não tinham paladar, só porque não gostaram do vinho e das frutas secas que serviram para eles no barco. Se fosse totalmente isento de julgamento, talvez fosse um texto mais interessante. Mas não sei se seria possível um texto totalmente descritivo.

Vejo um certo parentesco de Vera Cruz e Congo, feito por Arthur Omar, em 1972. No filme, a ação é substituída por frases e letreiros sobre fundo branco. O texto funciona como uma espécie de roteiro de uma ação que não foi filmada. E em Vera Cruz, o branco aparece para questionar o texto.

Não conheço Congo, mas, em Vera Cruz, as legendas existem para serem questionadas mesmo. Aquele diálogo é fictício, criado a partir dos dados contidos na carta de Pero Vaz de Caminha. Sabemos que o diálogo entre índios e portugueses não ocorreu. O trabalho apresenta, então, várias impossibilidades, que você está chamando de “brancos”. Uma documentação impossível, um diálogo impossível. Há a fala do português, mas não há a réplica, porque a réplica não foi entendida. O outro é visto e julgado a partir de um único ponto de vista.

O branco é a ausência do outro. Ocorre uma espécie de antidocumentário, porque aqui não se tem o “outro”, sempre tão evocado pelo documentário.

No documentário, o outro tem voz, o outro responde. Naquela época, o único relato possível era o textual, ou os desenhos. Daí você tem que contar só com a versão de quem está apresentando aquilo que você tem que acreditar que sejam os fatos.

Mas a ausência do outro pode ocorrer também em um documentário de imagem, dependendo da forma como essa informação é editada.

Você tem razão. E Bibliotheca também tem um pouco dessa condução da informação ao te impossibilitar de ver o álbum propriamente dito e te apresentar só uma espécie de resumo do conteúdo. É tudo incompleto e eu só dou a ver aquilo que me interessa. E você tem que acreditar. Se eu estou mentindo, ou não, isso você nunca vai saber. Isso vem da constatação que tive visitando os museus do mundo e vendo como eles preparam as visitas monitoradas, as exposições temáticas, onde você coloca um headphone, encurta sua visão e é conduzido a olhar aquele objeto a partir de indicações prévias. Para enxergar exatamente aquilo que o museu pretende que você veja. As pessoas buscam as visitas guiadas, achando que através disso vão sair com mais saber e conhecimento. É por isso que eu quis colocar a imagem fotográfica da capa do álbum na vitrine, oferecendo ao público apenas uma representação desse objeto.

Em Espelho diário, você interpreta uma diversidade incrível de mulheres, identificadas a partir de um único ponto comum: o nome. Há aqui uma outra forma de eliminação do outro? De devorar o outro?

Não sei, não sei. Talvez, quem tenha sumido ali tenha sido eu, não? Bom, eu só não desapareci totalmente porque não sou atriz para ficar incorporando a sem-teto, a socialite, a morta. Eu não tenho essa capacidade, quisera eu, eu devia ter treinado um pouco mais... Mas, no final, gostei de não me amalgamar tanto, manter um mínimo de distância. Mas não sei se espelhar é o mesmo que canibalizar.

O espelho criado ali mantém as distâncias entre as alteridades dessas Rosângelas?

É como eu enxergo. Mas há muitos espelhamentos dentro desse trabalho. Tentei não assumir totalmente o lugar do outro, mas também não me posicionar no lugar da narradora. O espelho implica numa dualidade. E fala em dois lados que se parecem. De um lado, as minhas homônimas todas; do outro, eu.