Biografia comentada Denise Mota, 07/2007

Daniel Umpiérrez é filho da mesma terra que deu ao mundo – juram de pé junto os historiadores uruguaios – Carlos Gardel. A fama do cantor de tango mais conhecido do planeta não foi o bastante, no entanto, para que Tacuarembó se livrasse da condição de ser nada mais do que apenas uma entre as diversas localidades dedicadas à produção rural no país.

Mais próximo do Brasil do que do Rio da Prata, a 390 km da capital Montevidéu, a vida em Tacuarembó transcorre sem sobressaltos e com muito calor. De modo não muito diferente do que se pode verificar hoje, o cotidiano nos anos 1970 se preenchia de festas folclóricas, comemorações tradicionais, encontros na paróquia, na praça, em torno ao coreto, no parque, na casa de amigos.

Por dezoito anos, essas distrações tipicamente interioranas emolduraram o microcosmo de Daniel Umpiérrez, enquanto seu imaginário ia sendo abastecido pelo caldeirão caótico oferecido pela televisão, janela que o conectou a um mundo em tudo dissonante do que via ao seu redor. Seriados importados, novelas brasileiras, Iggy Pop e Elke Maravilha fulguravam nessa caixa de luz e som à qual o garoto prestou muita atenção.

A maioridade trouxe a chegada a Montevidéu. Decidido a tornar-se artista, não demorou a se descobrir mais confortável com seu universo interior do que com os apelos e possibilidades que a capital lhe oferecia. Tentou o convencional: produzir dentro das expectativas das artes plásticas de seu país, criar uma “obra” coesa, coerente, conseqüente. O incômodo não desapareceu. Tinha a “impressão de que ninguém se interessava” por suas coisas, como diz em entrevista neste Dossier.

Uma espécie de experimento-piada-catarse veio resgatá-lo da apatia vocacional. Em 2001, com o propósito de satirizar as estratégias de marketing do mundo fonográfico, o artista inventa o selo Dani Umpi Records, sob o qual grava uma paródia em inglês de um disco clássico do cancioneiro uruguaio (algo como se fossem vertidos standards de Caetano Veloso tendo por base traduções automáticas ao estilo das oferecidas pela internet) e um álbum com versões dançantes e sampleadas de outros hinos contemporâneos de seu país.

Destinados a restritas salas de museus e galerias, os CDs terminaram escapando do circuito da arte e passaram a tocar na FM montevideana. Nasce Dani Umpi, cantor, performer e o que mais aparecer.

Liberado da camisa-de-força em que se sentia envolto, dá vazão aos muitos heterônimos com que sempre conviveu e – a unir todas as suas personas – elege como leitmotiv as pequenas e triviais tragédias e milagres humanos liquidificados pelo dia-a-dia. Territórios usualmente apartados do mundo da arte, como salões de beleza ou quadras de baby futebol, tornaram-se as arenas onde divulgou seus primeiros shows, aos quais hoje comparecem punks, unders, roqueiros, mauricinhos e senhoras de meia-idade.

Com Dani Umpi também nasceram os romances Miss Tacuarembó, Aún soltera e Sólo te quiero como amigo, flashes da banalidade cotidiana filtrados por um humor tão ácido quanto onipresente.

“Cada vez estou mais fora da arte como instituição e, simultaneamente, mais dentro dela, porque agora que não mantenho um ritmo constante de mostras e apresentações, começaram a se interessar pelo meu trabalho e por minhas obras antigas, a analisar o que fiz e a comprar minhas obras. Isso fez com que eu percebesse que, na verdade, sempre falei das mesmas coisas, sempre fui muito coerente e monotemático demais, naïf demais. Basicamente falo de namorados, rupturas e encontros amorosos com um discurso e uma ótica infantis, adolescentes, como se a vida fosse uma comédia televisiva onde existem apenas os afetos e seus conflitos ridículos”, afirma.

Quase nunca, no entanto, é adocicada a realidade que emerge de seus escritos, em que a alienação ou o desespero são menos escolhas que condições a que estão condenados os personagens. Como uma vizinha que se debruça todas as tardes à janela para observar a vida alheia, na aparência, o hábito talvez guarde um quê de serena, enternecedora e inofensiva decadência, mas os frutos extraídos dessa atividade podem vir carregados, para além da familiaridade, de perturbação, surpresa e repulsa.

Em Miss Tacuarembó, a personagem Natalia sai para dançar, se droga e, minutos antes de passar por uma bad trip, anota: “Continuo pulando, mas algo me incomoda; abaixo os olhos e percebo que perdi uma sandália. Tento encontrá-la pela pista, mas é impossível com toda essa gente amontoada. De repente, a vejo entre as pernas de umas garotas que se acham Björk em seu primeiro disco e dançam como bonecas idiotas, fazendo caras infantis e acariciando os coquinhos ridículos em suas cabeças, aparentemente cansadas de carregar a mochila transparente e vazia que têm nas costas. Jogo-me na pista. É uma cama, uma piscina, uma poltrona dessas que existem nos salões de cabeleireiro caros”. 

A inspiração principal, diz Umpi, vem das conversas com amigas: “Muitas vezes copio diretamente o que elas dizem e fazem, coloco textualmente em uma canção ou em outra coisa. Interessa-me muito esse discurso, seus lugares-comuns, suas alucinações”.

Para além do exercício ficcional, como um Fernando Pessoa esquizofrênico, o artista não só multiplicou como passou a encarnar suas criações, que assumiram produções artísticas, curadorias, manifestações. Entre elas está Nelson Nilson, estudante de arquitetura politicamente correto, deprimido por ter sido abandonado pela namorada. Na pele do jovem, o artista participou de protestos de rua, desenhou maquetes “bastante psicóticas” e freqüentou cursos na Faculdade de Arquitetura da Universidad de la República, onde chegou a dar uma aula.

A paixão também definiu a personalidade de Willy Will. “Will era um adolescente muito bonito, que estava apaixonado por mim e que me escrevia cartas de amor”, conta Umpi. Para dar vida à história, o artista enviava mensagens ardentes para si mesmo: as colocava no correio e as direcionava para o estúdio do qual fazia parte. “Um delírio.” 

Por fim, a mais complexa e ativa criatura foi Adriana Broadway, arquiteta e curadora. “Eu escrevia em revistas, curava mostras na cena montevideana, cobrava como se fosse Adriana. Fiz coisas que adorei, como comentar a Bienal de São Paulo para uma revista sem ter ido à exposição. Nesse caso, não havia abordagens sobre a vida afetiva, era algo mais... conceitual. Falava de arte, de mercado, da crítica local, dos diferentes agentes e de coisas que cada vez me interessa menos analisar e criticar.” 

Hoje conhecido o suficiente para não poder mais passar despercebido em evento ou ato público de seu país, Umpiérrez deixou os alter egos de lado para alimentar o único que lhe permite ser ele mesmo (e algo mais) sem que precise mudar de roupa, aparência ou humor. Isso torna crescentemente mais difícil dissociar autor e personagem, posição que agrada ao artista. “O único que continua vivendo é Dani Umpi. Eu continuo a viver nele. Já não trabalho com o fake, senão a partir de mim mesmo.”