Ensaio Jacqueline Lacasa, 2007

Às vezes me sinto feliz

“Às vezes sinto uma felicidade prazerosa e macabra, muito parecida à de Glenn Close cozinhando o coelho da filha de Michael Douglas.” Miss Tacuarembó, Dani Umpi

Montevidéu, 16 de junho de 2007, três da manhã. Acabo de chegar da casa de shows Central, onde havia uma festa-homenagem ao Pachamama, um dos clubes noturnos outrora emblemáticos da cidade. Dani Umpi aparece em cena junto a um grupo particular de pessoas que tensionam a percepção entre o que pode se denominar pop ou kitsch.

Don’t You Want Me, o hit do Human League na década de 1980, é a música eleita pelo Dani Umpi performer, e o público fica seduzido e à espera. Pouco depois, entra o grupo Palangano, vozes perfeitas, movimentos grotescos cuidadosamente projetados e um estado de emotividade que contagia, nem sempre presente na cena montevideana, caracterizada pela sobriedade e pelo recato, ainda que se trate de arte e de prazer.

Dani se sobressai por um momento, com seu corpo delineado, naturalmente caprichoso, dedica a canção a seus amigos e a todos os que participaram do Pachamama. Ao vê-lo sair do palco, pode-se pensar no improvável que é fixar Dani Umpi em apenas um clichê, porque ele possui a capacidade de se colocar em tantos quantos deseje ou em tantos quantos o espectador possa encaixá-lo.

A razão para essa mobilidade está longe do acaso. Corresponde, isso sim, ao fato de que o pilar que contém sua figura e estratégia conceitual se sustenta em muitos campos de produção que se vinculam por zonas de contato: melodrama, ambigüidade, ficção e cotidianidade abrem espaço a outros territórios possíveis.

Essas zonas têm uma interconexão precisa, funcionam como dispositivos carregados de afetividade e de conceitos que mobilizam a passividade do espectador. 

Alter ego

A obra de Daniel Umpiérrez é multinodal e rizomática. Seu posicionamento no campo artístico denota várias formas de operar dentro de uma estratégia conceitual que se consolida como work in progress. Não se pode fazer uma leitura só, sem pensar no vaso que se conecta a outro ponto da rede. 

Nelson Daniel Umpiérrez Núñez nasceu em Tacuarembó em 1974 e reside desde 1993 em Montevidéu, onde se formou bacharel em publicidade e comunicação artística e recreativa. Paralelamente a essa formação, foi desenvolvendo sua atividade como artista visual, integrando originalmente um grupo de ação artística denominado Movimiento Sexy, para depois continuar sua carreira de forma individual, navegando tanto no terreno da curadoria (um bom exemplo é a mostra Tics, no Cabildo de Montevideo, em 2004), quanto no da crítica, por meio de um de seus alter egos, a arquiteta Adriana Broadway.

Entre os nodos que podem ser freqüentados, também a escrita é um dos destaques. De suas obras narrativas, as três que até o momento ganharam edição são: Aún soltera (2003, Ediciones de Eloisa Cartonera, Buenos Aires), Miss Tacuarembó (2004, Interzona, Buenos Aires) e Sólo te quiero como amigo (2006, Interzona, Buenos Aires). 

Sua literatura propõe visitar micromundos a partir de uma técnica direta que reduz a distância com o leitor, em um estilo similar ao das telenovelas, o que tem levado a que o comparem a Manuel Puig, o conhecido escritor de, entre outras obras, O beijo da mulher-aranha. Também deu a conhecer sua poesia em edições da galeria bonaerense Belleza y Felicidad.

Em sua atividade como cantor, vem traçando um perfil único como performer. A mise-en-scène e a escolha das músicas criam, desde o álbum Perfecto, atmosferas insólitas e sedutoras que transitam do canto lírico à bossa nova, passando pelo pop internacional e o folclore. Nelson Daniel Umpiérrez Nuñez foi criando Dani Umpi: artista visual, cantor, escritor e performer; a arquiteta Adriana Broadway, crítica e curadora; e Nelson Nilson, estudante de arquitetura politicamente correto. Todos são integrantes e intérpretes desse maquinário de criação que poderia ser visto como uma grande telenovela.

Todos esses aspectos se fazem presentes nos vídeos selecionados para o FF>>Dossier – Ilarié, Compraré, Try to Remember, No hay cómplices, Zona urbana e Wonderland –, porque neles surge a faceta do performer que escolhe, com agudez, música e atmosfera, aproximando-nos de universos e situações que se movem ao ritmo das histórias que escapam de um aparelho de televisão.

Cotidianas

Em Ilarié, Dani Umpi intervém no Museo Juan Manuel Blanes, espaço destinado às belas artes e que contém um dos acervos mais importantes do Uruguai. Em suas paredes, a modernidade é uma via de acesso a um passado não tão distante. O artista se apropria do espaço museológico com certa irreverência, rompendo talvez o silêncio sacro que propõe o museu. Isso se denota não só na música de Xuxa, mas em sua própria vestimenta, uma palheta contundente de laranja forte que corta os eixos impostos pelo espaço.

O vídeo propõe um passeio duplo por um local que, de modo simbólico, estabelece a relação não-linear entre artista, espectador e espaço museológico. A câmera cria continuidade entre artista (que intercepta o olhar) e obra histórica. A mise-en-scène é anacrônica; os movimentos, a voz e a apropriação do espaço, com uma quota de capricho, revelam parte do que o artista desenvolverá nos anos seguintes.

Ficcionais

Compraré e Try to Remember são dois trabalhos que compartilham zonas de ficção. No primeiro vídeo, a cena se desenvolve na parte traseira de um carro, em que o cantor e membro do star system passeia em um conversível acompanhado de duas damas enquanto canta a balada de José Luis Perales. O passeio não acontece pela ampla avenida de uma grande cidade, a canção não tem glamour e as damas não se ajustam ao protótipo esperado. No entanto, a ficção se desenrola de forma completa e verossímil, como em um road movie cult.

Na segunda obra, o artista reitera sua chegada a um espaço em que a cenografia propõe contemplar o absurdo. A razão se valida na espera dos amigos em uma festa-surpresa, que o cumprimentam com bexigas, serpentinas e bolo de aniversário. A melodia se repete a cada cena, interpretada por um novo artista. O homenageado muda seu estilo e a surpresa a cada seqüência. A espontaneidade termina sendo um estímulo para o simulacro. Já não importa quantas homenagens possam ser feitas, tudo aponta para a “diferença e repetição” deleuziana, para poder indicar e pensar mais além do que se toma como previsível.

Formatos ambíguos

No hay cómplices é quase uma obra de music hall. Umpi se move dentro de um estrito registro estabelecido pela coreografia. Tudo se define com simetria, cada personagem está contido em sua função e cada peça cai em um lugar preciso. O artista põe corpo e voz, revelando uma personalidade mordaz e sensual, a serviço do prazer ou da loucura amorosa. Nesse jogo quase histérico, o alcance da perfeição formal da coreografia não impede que haja frescor e sedução.

Zona urbana potencializa a ambigüidade da proposta artística, já que é o registro do programa homônimo da TV aberta uruguaia. Para promover seu espetáculo, Dani Umpi apresenta, com o músico Adrián Soiza, uma performance na qual canta enquanto corta vegetais. Inesperadamente, começa a atirar os alimentos à equipe de jornalistas do programa. A apresentação culmina em batalha generalizada, até que os jornalistas deixem seu lugar de supostos espectadores. O vídeo gera todo tipo de questionamento: qual é a verdadeira performance? Qual é o papel do artista? Qual é a função dos meios de comunicação de massa? Sem dúvida, o registro é eloqüente, e Dani Umpi surge como um super-herói de série televisiva que luta por seu universo com armas tão particulares quanto certeiras.

Melodramáticas

Wonderland. Cada território tem suas próprias maravilhas, cada setor de produção intelectual ou artística também. Os ritos, as festas e as entregas de prêmios a determinada trajetória são, sem dúvida, uma tela para produzir e ser visto. Dani Umpi foi indicado para uma premiação como jovem revelação do ano. Isso o leva a participar de um evento que se realiza anualmente no Uruguai. 

Com glamour em escala montevideana, ou seja, com recato e discrição, os convidados vão chegando à festa. Umpi cumprimenta, circula e em seu braço leva o bracelete de Charly García “Say no more”. Senta-se à mesa e, a partir desse instante, a fronteira entre simulacro e verdade se dilui. Animando a festa, com a cumplicidade de muitos colegas, começa-se a exagerar a felicidade pela premiação do artista. Entre euforia e confusão, o objetivo é festejar Dani. 

A festa termina, o jovem sem seu prêmio se senta sozinho na escadaria de entrada do salão de festas. Ao filmar o próprio evento, o artista intervém no lugar público e nos meios de comunicação. Sem abandonar a ironia, se expõe, mas, sobretudo, expõe essa cenografia como criação e, portanto, ficcionaliza a crescente ilusão e a decepção, como em uma telenovela virtual.

Dândi Umpi

Slavoj Zizek denomina “imaginário virtual” a experiência fenomenológica que estrutura nossa relação com outras pessoas e objetos a partir da representação de imagens idealizadas que apagam elementos que tornariam insuportável ou impossível nossa experiência. Como exemplo, menciona que, quando interagimos com outra pessoa, nos esquecemos que o outro transpira ou sente fome. Dani Umpi exacerba o imaginário virtual até levá-lo ao limite. A solenidade é subvertida, o drama é convertido em espetáculo, e a felicidade é meramente outra categoria dentro do imaginário virtual. O frescor com que sabe se salvar desse labirinto lhe permite seguir o fio de Ariadne enquanto mantém conversações com Dionísio.

Nessa metamorfose programada, não há prévio aviso e as condições inverossímeis a que nos submete o artista dão lugar à criação de um universo com um imaginário particular, que filtra e desativa os dispositivos convencionais de assimilação da arte. Nesse território, Dani Umpi passeia como um dândi, distinguido por sua particular elegância, entre a cultura de consumo massivo e a imensa capacidade de indicar que a verdade (Zizek dixit) só pode ser alcançada adotando uma postura subjetiva, comprometida e parcial sobre a criação artística.

Crítica, curadora, jornalista de arte e artista plástica, Jacqueline Lacasa (Montevidéu, 1970) assumiu em 2007 a direção do Museu Nacional de Artes Visuais do Uruguai. À frente da instituição, está implementando seu projeto Museo Líquido, que inclui a criação de uma midiateca e a intensificação na recepção de artistas e mostras internacionais. Em 2006, coordenou a edição de Palimpsestos: escritos sobre arte contemporáneo uruguayo 1960-2006 - Cuadernos de arte contemporáneo, e esteve no encontro da Associação Internacional de Críticos de Arte em Paris. Formada em psicologia, integra a Associação Uruguaia de Críticos de Arte e a FAC - Fundação de Arte Contemporânea do país. Como artista, participou da 9ª Bienal de Havana (2006) e da Bienal de Arte do Mercosul de 2005 e criou o periódico La hija natural de JTG (Joaquín Torres García). 

Entrevista Denise Mota, 07/2007

O melodrama tragicômico parece ser a base sobre a qual repousam e da qual nascem todas as suas criações. É isso mesmo?

Totalmente. Essa visão distorcida da realidade e dos sentimentos dá uma força incrível às coisas, permite ver os detalhes em grande escala, fora de órbita. É a máxima descontextualização na vida cotidiana, uma visão inspirada e plástica, que todo mundo pode ter. Ao mesmo tempo em que é artística, a ressignificação constante de tudo é também cotidiana. O humor para mim é essencial. Fazer de uma bobagem algo extremo tem um encanto que me alucina. Gosto dos produtos melodramáticos, sejam eles criados consciente ou inconscientemente. Gosto dos lugares-comuns que geram, das emoções intensas que despertam, dos mecanismos que utilizam. Diálogos de telenovela, cartas e canções de amor, Xuxa cantando uma música contra as drogas para uma garota em uma cadeira de rodas. Como algo tão simples pode dar lugar a uma experiência do “sublime”? Por que emociona tanto? As dores de amor são um motor poderosíssimo.

A partir de uma obra, Dani Umpi Records, você mudou não só o rumo de sua carreira, mas sua própria personalidade artística, abandonando o nome Daniel Umpiérrez para renascer como o personagem Dani Umpi. Esse também foi o ponto de inflexão para sua guinada em direção a áreas como música e literatura? 

Minha experiência dentro da arte institucional em meu país foi decisiva. Sem querer fazer uma crítica danosa, poderia dizer que houve coisas lindas e coisas patéticas. O mais patético é que a prática artística, minha atividade como artista contemporâneo, criou em mim muito preconceito. Isso de tudo ter de ter um statement, uma justificativa, um porquê, me limitou muitíssimo. Sempre fui uma pessoa dispersa, com uma sensibilidade de zapping. Ter uma produção simbólica que abarque tantas linguagens (música, literatura, arte) gera desconfiança. O meio premia a continuidade e a insistência. A maioria das carreiras dos artistas é construída a partir da perspectiva da redundância discursiva. Sentia que devia me definir apenas por uma linguagem. Até que vi que não tinha por que fazê-lo. O que há de estranho em escrever, cantar, criar obras? Para mim era a coisa mais natural do mundo. Era o que fazia. Os artistas que me interessavam eram assim: Yoko Ono, David Byrne, Boom Boom Kid. O fundamental foi encontrar um lugar a partir de onde produzir. Não um lugar físico, mas um espaço mental e social. Quando fazia exposições, sentia que mostrava coisas a pessoas que não estavam interessadas naquilo. Sentia que ninguém estava interessado em arte. Comecei a operar dentro dessa lógica maligna. Eu mesmo ia às mostras e tudo me parecia uma bobagem, uma divagação. Felizmente, saí desse estado. Ao começar a cantar, vi que havia, sim, gente interessada em minhas coisas, tanto do mundo da arte quanto gente que nunca pisou em um museu ou galeria. Senti muita liberdade porque criei um espaço próprio, e sem tirá-lo de ninguém. Sinto que sou algo à parte. Isso me permite estar dentro e fora. O que é paradoxal é que, em vez de ter uma obra dispersiva, fui adquirindo cada vez mais coerência. Agora me dou conta de que sempre falo das mesmas coisas.

Sob o alter ego de Adriana Broadway, você faz uma análise um tanto cruel de sua obra, afirmando que Dani Umpi trata de teatralizar diferentes visões de sua intimidade. A realidade ficcionalizada se torna mais fácil de digerir e atrair interesse?

Meu personagem Adriana Broadway é muito cruel comigo porque tem uma formação acadêmica. Como sou muito preconceituoso com essas pessoas, então dei a ela esse tique. A realidade é muito pior do que isso de “teatralizar visões de minha intimidade”, porque muitas vezes não há intimidade, não há experiência sobre esses assuntos, os inventei totalmente. Como posso falar de problemas amorosos se há séculos não tenho namorado, nem me apaixono? Não é minha intimidade recriada, mas ficcionalizada, fantasiada. É uma visão idealizada do estar apaixonado. Por alguma razão, isso me atrai. Vocês têm um gênero musical encantador, que é a música sertaneja. Esses homens duros, do campo, sofrendo por amor e cantando quase em falsete, fazendo metáforas tão delicadas, contando histórias tão dramáticas. Muito melhor do que o tango. Isso me interessa muito. Não sei se é mais fácil de digerir, porque essas coisas às vezes doem, mas é fato que existe algo que nos obriga a escutar essas músicas. O emocional sempre interessa e é saboreado. Estou convencido de que as pessoas querem histórias. Por isso os livros de auto-ajuda trazem tantos exemplos, casos ilustrativos, e funcionam tanto. Sem falar das religiões e de seus derivados.

O caráter de chacota de parte de seus trabalhos não deixa de apontar e acentuar a crítica a ícones e preconceitos culturais contemporâneos. Levar Xuxa ao Museu Blanes, misturar um cantor essencialmente uruguaio como Fernando Cabrera com Voyage Voyage, assumir-se como artista desafinado, tudo parece embutir um ataque a conceitos como alta e baixa cultura, arte e cultura de massas, bom e mau gosto. No Brasil, um importante comunicador, Chacrinha, popularizou o dito: “Eu vim para confundir, e não para explicar”. Esse também é o seu caso?

Sim, sim, sim! Adoro a comparação com Chacrinha. A confusão é sumamente necessária porque permite reapresentar as coisas. Acredito na mistura dos extremos, na convivência de tudo com tudo (na verdade, a coisa mais natural do mundo). Sou meio antigo, anos 1990, Benetton; acho a mistura poderosa e saudável. As coisas estão muito divididas. Não critico os ícones; o que faço é parodiar a mim mesmo. Por isso encaro minhas imperfeições como se fossem virtudes. Quando canto, uso roupa de homem e de mulher indistintamente ou, por exemplo, um vestido de farrapos e sapatos caríííííííssimos, que não poderia comprar nem com o trabalho de três meses. Na verdade, entre a alta e a baixa cultura, sempre fiquei na baixa. Mas é fato que as misturo.

Seu universo e a persona artística que você construiu oferecem coerência dentro das regras do paradoxo. Você é um “moderno” que conta com a simpatia das senhoras, alguém que assume a homossexualidade, mas é criticado por parte da comunidade gay, um iconoclasta que reverencia as imagens. Qual é o centro e a ambição por trás de suas investigações e propostas artísticas? 

Veja, tudo são etiquetas, lugares em que as pessoas te colocam. Algumas pessoas dizem que sou “moderno” ou “glamouroso”. Sei que não sou, mas por que se diz isso? Não tem a ver comigo exatamente, mas com outros mecanismos. A ambigüidade é mobilizadora, provoca. Também dá liberdade. Por que um homossexual tem de agir de um modo determinado por um estereótipo? O que é ser “moderno”? Por que se valorizam os iconoclastas? Por que não se podem reverenciar as imagens? Que imagens devem ser reverenciadas? São conceitos muito relativos, e me surpreende que as pessoas não se dêem conta disso. Acho que é necessário relaxar mais. Esforçar-se para se encaixar em algum lugar é desgastante e não dá certo. O melhor é o movimento. Por que as senhoras não podem ir aos meus shows? Em alguns ambientes do rock, me sinto incômodo, não entendo os códigos. Com as senhoras, me entendo perfeitamente, adoro tomar chá, falar de plantas. Apesar disso, canto, e muitas vezes, em festivais de rock. Tento ver os diferentes cenários como lugares válidos para a produção simbólica. Não que seja a mesma coisa fazer uma performance na TV e em uma galeria. Mas tudo convive. A televisão, por exemplo, está constantemente gerando produção simbólica de alto impacto. A baixa cultura existe. Xuxa não vem da arte e só entra na arte se um artista a ressignifica. No entanto, o “planeta Xuxa”, com sua simbologia, existe e incide fortemente na sociedade em nível artístico, estético, ideológico. Nenhum livro de arte registra isso, porque a história da arte corre paralela à história do mundo. Dou para minha mãe um catálogo de alguma bienal e é como se lhe desse um livro de mecânica quântica. Não digo que teria de ser diferente. Quero dizer que há outros espaços para produzir e mostrar. A “polpa” do meu caroço está em vários lugares. Não só no “campo da arte”. 

Você se surpreendeu ou achou divertido ser tema de um ciclo de debates no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires? Dani Umpi virou tema de estudo?

Fiquei surpreso e envergonhado. Uma parte de mim queria ir para escutar o que se dizia, mas meu ego não é tão grande. Para mim era muita responsabilidade ser citado no título de um ciclo sobre o pop em um lugar tão importante no meio em que transito. Sempre que me colocam como artista representativo de minha geração, me constranjo. Não quero representar nada. Nunca pensei que pudesse chegar ao momento de ser analisado. No entanto, supõe-se que o artista busque isso.

Em toda a sua obra, a aura de ficcionalização é evidente. O simulacro é a chave para entrar nesse mundo?

Totalmente. Minha formação acadêmica foi em ciência da comunicação, no final dos anos 1990. Baudrillard era uma espécie de Paulo Coelho, um pensamento best seller para minha geração. É impossível para mim ver as coisas a partir de outra ótica.

North, o CD-piada que se transformou em um sucesso e abriu um novo caminho em sua carreira, foi curiosamente gravado em 11 de setembro de 2001. Você saiu do estúdio e se inteirou de que o mundo havia entrado em colapso? Foi esse um momento de “ficcionalização” involuntária na sua vida, quando se ausentou da talvez maior “ficcionalização real” deste século?

Ui, nunca havia pensado nessa tarde nesses termos! Que interessante o que você diz e que estranho que eu nunca tenha pensado nisso. Em primeiro lugar, o CD North não foi uma piada com Jaime Roos, como muito se disse. Basta escutá-lo para começar a rir, não de Jaime Roos, mas de mim. Nessa época eu fazia parte do coletivo Movimiento Sexy (do qual fizeram parte Martín Sastre e Paula Delgado, entre outros jovens artistas uruguaios), e nessa tarde nos reunimos para fazer uma obra. Entre uma gravação e outra, assistíamos à TV e não entendíamos o que estava acontecendo. Acho que continuamos a não entender essa cena realmente.

“Gosto de ficar bem com todo mundo. Nisso sou honestamente falso”, você disse uma vez. Viver, dentro e fora do contexto artístico, é um “fazer-de-conta”?

Não. Já não vivo mais nesse esquema de que “tudo pode ser uma obra”, já não “faço de conta”. Não porque isso esteja errado, mas porque não me interessa. O que me interessa é fazer. Mas nem tudo o que faço é uma obra. Aprendi muito sobre isso quando tive de enfrentar uma situação com um fator ético importante. Decidi fazer uma série de “cadernos de viagem” com alguns fãs. Eu lhes escrevia e eles me respondiam, e assim sucessivamente, até completar os cadernos. Tencionava mostrar esse material, utilizá-lo como obra. Mas muitos fãs usavam os cadernos como diário, me contavam coisas pessoais. Eu também guardava tudo o que me davam nos shows, bonecos, cartinhas, porque tomava isso como “uma obra”, algo que teria como destino uma galeria. Mas nas cartas as pessoas contavam coisas de suas vidas. Eu não poderia mostrar isso, seria falta de respeito. Então decidi viver essas “ações” como o que são, sem releituras. Não “fazer-de-conta” que era um cantor e que experimentava artisticamente a partir desse lugar.

Em 2004, a mostra Tics, sob sua curadoria, recebeu o qualificativo de “um dos acontecimentos inovadores do ano” por parte do jornal uruguaio La República. O que você busca como curador?

Sou muito curioso. Gosto de me fascinar, de satisfazer minha capacidade de assombro. Talvez por isso seja muito pouco retrô, revisionista, nostálgico. Gosto do novo, da produção emergente. Tics formou parte do projeto Adriana Broadway; foi uma mostra com curadoria dela. O roteiro curatorial se baseava em obras realizadas de uma maneira compulsiva ou neurótica. Incluía obras de artistas bastante reconhecidos em meu país, trabalhos de artistas que nunca haviam exposto, de gente que não se considerava artista e de crianças.

Muita gente que te vê cantar não conhece seu trabalho como artista plástico, e alguns setores da arte convencional não consideram sua obra musical arte. Como você se posiciona em meio a essa situação “anfíbia”, entre dois mundos?

Gosto muito dessa noção do “anfíbio”. Vejo essa situação como algo muito interessante. Não gera desconforto, ainda que às vezes me canse um pouco ter que ficar justificando e explicando o que faço. As pessoas não têm por que saber que eu escrevo, nem ver minha música como algo “artístico”. Tampouco peço esse tipo de valorização “integral”. O que acontece é algo geral, que não tem muito a ver comigo. Nem todas as pessoas interessadas na arte atual também têm interesse em música, nem as pessoas interessadas em narrativa acompanham também a arte atual. E nem falar dos produtores, dos curadores. Quanto mais específicos forem os interesses, mais fechados estão para outras linguagens.

Você definiu Dani Umpi como o garoto que tenta mostrar suas habilidades na festa de fim de ano da escola para ser aplaudido. Pode ser que este seja o conceito inicial do personagem, mas o êxito de Dani Umpi deriva de outros elementos, não?

A mise-en-scène que faço quando canto ao vivo ou nos clipes é festiva. Gosto da festa, me interessa. Quase todas as canções são “dançantes”. Por outro lado, me preocupo que tecnicamente seja um bom produto, bem feito, competente. A imagem é original em meu meio, e acho que isso funciona. Talvez o relativo êxito derive do “espírito” de tragicomédia. As canções têm letras desesperadoras, mas são alto-astral. Mostro-me como um “divo antidivo”, uma estrela imperfeita, humana. Mas não é que isso agrade a todo mundo. Muita gente não me suporta.

Uma das razões para a popularização de seu trabalho é que você o prepara na medida para, senão cativar, ao menos chamar atenção. Ressignificar a cultura estabelecida operando com os códigos do mercado é outra brincadeira séria de Dani Umpi?

O mercado é a única instância que me recebe como “artista multifacetado”, que não estranha que eu escreva, cante e faça obras de arte, porque vê tudo como virtudes que contribuem para a soma. O mercado vê números. Para mim, é mais um cenário, que me permitiu coisas incríveis: quando uma música minha entrou no Top Ten da MTV Latina, competi com Madonna e Shakira. Isso é uma obra? Não sei, mas que um artista como eu esteja nessa situação me parece significativo.

Quais seus próximos projetos ou desejos ou obsessões?

Estou muito entusiasmado com o convite do Videobrasil, Encontros, Dossier, e com o Brasil. Em outubro vou expor no Rio de Janeiro, em Niterói. Já que estarei nessas terras, quero conhecer Elke Maravilha. Sua manager se colocou em contato com o meu, porque parece que escutaram uma música que eu dedico a ela, Vira Elke Maravilha, e ela gostou. Fiquei nas nuvens. Na verdade, o que planejo é fazer no Rio um lugar para conhecê-la, um céu azul cheio de papéis picados.

Biografia comentada Denise Mota, 07/2007

Daniel Umpiérrez é filho da mesma terra que deu ao mundo – juram de pé junto os historiadores uruguaios – Carlos Gardel. A fama do cantor de tango mais conhecido do planeta não foi o bastante, no entanto, para que Tacuarembó se livrasse da condição de ser nada mais do que apenas uma entre as diversas localidades dedicadas à produção rural no país.

Mais próximo do Brasil do que do Rio da Prata, a 390 km da capital Montevidéu, a vida em Tacuarembó transcorre sem sobressaltos e com muito calor. De modo não muito diferente do que se pode verificar hoje, o cotidiano nos anos 1970 se preenchia de festas folclóricas, comemorações tradicionais, encontros na paróquia, na praça, em torno ao coreto, no parque, na casa de amigos.

Por dezoito anos, essas distrações tipicamente interioranas emolduraram o microcosmo de Daniel Umpiérrez, enquanto seu imaginário ia sendo abastecido pelo caldeirão caótico oferecido pela televisão, janela que o conectou a um mundo em tudo dissonante do que via ao seu redor. Seriados importados, novelas brasileiras, Iggy Pop e Elke Maravilha fulguravam nessa caixa de luz e som à qual o garoto prestou muita atenção.

A maioridade trouxe a chegada a Montevidéu. Decidido a tornar-se artista, não demorou a se descobrir mais confortável com seu universo interior do que com os apelos e possibilidades que a capital lhe oferecia. Tentou o convencional: produzir dentro das expectativas das artes plásticas de seu país, criar uma “obra” coesa, coerente, conseqüente. O incômodo não desapareceu. Tinha a “impressão de que ninguém se interessava” por suas coisas, como diz em entrevista neste Dossier.

Uma espécie de experimento-piada-catarse veio resgatá-lo da apatia vocacional. Em 2001, com o propósito de satirizar as estratégias de marketing do mundo fonográfico, o artista inventa o selo Dani Umpi Records, sob o qual grava uma paródia em inglês de um disco clássico do cancioneiro uruguaio (algo como se fossem vertidos standards de Caetano Veloso tendo por base traduções automáticas ao estilo das oferecidas pela internet) e um álbum com versões dançantes e sampleadas de outros hinos contemporâneos de seu país.

Destinados a restritas salas de museus e galerias, os CDs terminaram escapando do circuito da arte e passaram a tocar na FM montevideana. Nasce Dani Umpi, cantor, performer e o que mais aparecer.

Liberado da camisa-de-força em que se sentia envolto, dá vazão aos muitos heterônimos com que sempre conviveu e – a unir todas as suas personas – elege como leitmotiv as pequenas e triviais tragédias e milagres humanos liquidificados pelo dia-a-dia. Territórios usualmente apartados do mundo da arte, como salões de beleza ou quadras de baby futebol, tornaram-se as arenas onde divulgou seus primeiros shows, aos quais hoje comparecem punks, unders, roqueiros, mauricinhos e senhoras de meia-idade.

Com Dani Umpi também nasceram os romances Miss Tacuarembó, Aún soltera e Sólo te quiero como amigo, flashes da banalidade cotidiana filtrados por um humor tão ácido quanto onipresente.

“Cada vez estou mais fora da arte como instituição e, simultaneamente, mais dentro dela, porque agora que não mantenho um ritmo constante de mostras e apresentações, começaram a se interessar pelo meu trabalho e por minhas obras antigas, a analisar o que fiz e a comprar minhas obras. Isso fez com que eu percebesse que, na verdade, sempre falei das mesmas coisas, sempre fui muito coerente e monotemático demais, naïf demais. Basicamente falo de namorados, rupturas e encontros amorosos com um discurso e uma ótica infantis, adolescentes, como se a vida fosse uma comédia televisiva onde existem apenas os afetos e seus conflitos ridículos”, afirma.

Quase nunca, no entanto, é adocicada a realidade que emerge de seus escritos, em que a alienação ou o desespero são menos escolhas que condições a que estão condenados os personagens. Como uma vizinha que se debruça todas as tardes à janela para observar a vida alheia, na aparência, o hábito talvez guarde um quê de serena, enternecedora e inofensiva decadência, mas os frutos extraídos dessa atividade podem vir carregados, para além da familiaridade, de perturbação, surpresa e repulsa.

Em Miss Tacuarembó, a personagem Natalia sai para dançar, se droga e, minutos antes de passar por uma bad trip, anota: “Continuo pulando, mas algo me incomoda; abaixo os olhos e percebo que perdi uma sandália. Tento encontrá-la pela pista, mas é impossível com toda essa gente amontoada. De repente, a vejo entre as pernas de umas garotas que se acham Björk em seu primeiro disco e dançam como bonecas idiotas, fazendo caras infantis e acariciando os coquinhos ridículos em suas cabeças, aparentemente cansadas de carregar a mochila transparente e vazia que têm nas costas. Jogo-me na pista. É uma cama, uma piscina, uma poltrona dessas que existem nos salões de cabeleireiro caros”. 

A inspiração principal, diz Umpi, vem das conversas com amigas: “Muitas vezes copio diretamente o que elas dizem e fazem, coloco textualmente em uma canção ou em outra coisa. Interessa-me muito esse discurso, seus lugares-comuns, suas alucinações”.

Para além do exercício ficcional, como um Fernando Pessoa esquizofrênico, o artista não só multiplicou como passou a encarnar suas criações, que assumiram produções artísticas, curadorias, manifestações. Entre elas está Nelson Nilson, estudante de arquitetura politicamente correto, deprimido por ter sido abandonado pela namorada. Na pele do jovem, o artista participou de protestos de rua, desenhou maquetes “bastante psicóticas” e freqüentou cursos na Faculdade de Arquitetura da Universidad de la República, onde chegou a dar uma aula.

A paixão também definiu a personalidade de Willy Will. “Will era um adolescente muito bonito, que estava apaixonado por mim e que me escrevia cartas de amor”, conta Umpi. Para dar vida à história, o artista enviava mensagens ardentes para si mesmo: as colocava no correio e as direcionava para o estúdio do qual fazia parte. “Um delírio.” 

Por fim, a mais complexa e ativa criatura foi Adriana Broadway, arquiteta e curadora. “Eu escrevia em revistas, curava mostras na cena montevideana, cobrava como se fosse Adriana. Fiz coisas que adorei, como comentar a Bienal de São Paulo para uma revista sem ter ido à exposição. Nesse caso, não havia abordagens sobre a vida afetiva, era algo mais... conceitual. Falava de arte, de mercado, da crítica local, dos diferentes agentes e de coisas que cada vez me interessa menos analisar e criticar.” 

Hoje conhecido o suficiente para não poder mais passar despercebido em evento ou ato público de seu país, Umpiérrez deixou os alter egos de lado para alimentar o único que lhe permite ser ele mesmo (e algo mais) sem que precise mudar de roupa, aparência ou humor. Isso torna crescentemente mais difícil dissociar autor e personagem, posição que agrada ao artista. “O único que continua vivendo é Dani Umpi. Eu continuo a viver nele. Já não trabalho com o fake, senão a partir de mim mesmo.”

Referências bibliográficas 07/2007

Umpi cantor
Página oficial do artista, dá ênfase a seu trabalho discográfico. Tem fotos de shows, exemplares de videoclipes e de registros de apresentações, amostras em MP3 de suas músicas e dos covers que faz de canções de outros artistas, além de pequenos trechos de seus três romances. 

Umpilândia

O artista alimenta seu fotolog com atualizações quase sempre diárias. Imagens de sua intimidade, de encontros com amigos, mensagens de fãs e de conhecidos se integram a dicas culturais e sugestões de links que incluem de Maitê Proença a Milli Vanilli.