Ensaio Paul Wells, 08/2008

Entrando pela porta giratória: o retrato animado da mais antiga profissão por Dave e Alex Beesley…

Apesar do impacto profundo exercido pelo setor de animação independente sobre a história da animação, que desafia o pressuposto de que o cinema de animação é em geral compreendido como o ‘Cartoon Norte-Americano’, a animação ainda é tida como uma mídia ‘inocente’; mero entretenimento para crianças. Tal visão limitada, é claro, permitiu aos artistas da área de animação, até mesmo nos estúdios da ‘Era de Ouro’ de Hollywood, explorarem de modo adequado as liberdades do formato, criando obras verdadeiramente desafiadoras e, em alguns casos, subversivas. O cinema de animação desafia, de maneira uniforme, as ortodoxias do cinema tradicional ‘não-animado’, oferecendo maneiras diferentes de imaginarmos a nós mesmos e repensando o ‘realismo’ embutido nas representações convencionais do mundo material. O mais humilde desenho animado pode reinventar o Universo; um uso mais consciente e dedicado da mídia pode rever atitudes e proporcionar insights.

Revolving Door, de Dave e Alex Beesley, é um exemplo retumbante de como a animação pode ser usada para desafiar as limitações do registro fotográfico. O filme – que enfoca a vida de uma prostituta chamada Gillian nas ruas de St. Kilda, o bairro da ‘luz vermelha’ em Melbourne – usa a animação para redefinir os códigos e convenções do documentário, buscando provocar debate, discussão e, em última instância, mudança social. Em primeira análise, essa combinação de ‘animação’ e ‘documentário’ pode sugerir uma parceria entre elementos que não combinam – animação, a matéria da imaginação e fantasia; documentário, o gênero da não-ficção e do ensaio interrogativo. Essa abordagem nega a presença da ficção em formatos não-ficcionais, é claro, e o fato de que todas as formas mediadas, sejam elas documentários ou não, contêm um alto grau de subjetividade.

A animação tem um longo histórico de envolvimento com o documentário, remontando a O naufrágio do Lusitânia [The Sinking of the Lusitania], 1918, de Winsor McCay, que imitava os formatos de noticiário e propaganda cinematográfica da época, aparentemente retratando o ataque dos alemães ao Lusitânia e, em seguida, a tragédia de seu naufrágio. Entretanto, o filme de McCay é um dos primeiros filmes de animação a demonstrar que a ‘não-ficção’, longe de ser ‘objetiva’ em seu uso aparentemente não-midiático de material factual ou do mundo real, é na verdade tão construída quanto qualquer outro formato cinematográfico. Ironicamente, porém, o artifício óbvio da animação, ao expor os termos e condições pelos quais o documentário adquire seu caráter de autenticidade, não contribui para sugerir que as abordagens utilizadas em documentários sejam falhas ou enganosas, mas para agregar outra dimensão à sua reivindicação da ‘verdade’. Do mesmo modo, ao colocar em primeiro plano o seu ilusionismo deliberado e sua subjetividade inerente, o documentário animado destaca a visão do autor, e conseqüentemente define o filme como um ensaio com um argumento ou ponto de vista específico.

Em Revolving Door, isso permite aos Beesley retratar Gillian oscilando entre a inocência infantil e a malandragem de rua, uma tensão capturada por meio da sobreposição da animação e das imagens reais ao estilo “cinema-verdade”, em alguns casos amplificando uma imagem em particular através do exagero, e em outros diluindo uma imagem para obter outros tipos de efeito persuasivo. Quando Gillian injeta heroína em si mesma, por exemplo, ironicamente há algo de chocante na forma explícita como a sangria é retratada, tamanha a adaptação das platéias ao sangue de ‘ketchup’ que jorra nos filmes não-animados. Do mesmo modo, o uso de traços desenhados sobre o rosto de um cliente em busca de prostitutas nas ruas da área de St. Kilda serve para proteger seu anonimato e retratar o problema da meretriz como um fenômeno social abstrato, e não apenas a expressão das preferências sexuais de um indivíduo. Isso é particularmente importante porque o cliente é surpreendentemente franco ao admitir sua necessidade de sexo casual, seu temor em ser infectado e, principalmente, sua compreensão da prostituição. Ele afirma “Não vejo qual o problema… como isso pode ser um crime? É um crime sem vítimas – é loucura – elas ganham dinheiro, eu me divirto…” Essa afirmação se torna uma das mais ressonantes no filme, porque a essa altura já vimos que Gillian está longe de ser responsável por suas escolhas, sofrendo com a dependência de drogas, o abuso policial e a brutalidade de clientes violentos. Em termos simples, a existência da mais antiga profissão do mundo, tida como normal e natural, negou a ela seu reconhecimento como questão social significativa. Num mundo em que a indústria do sexo é cada vez mais incorporada à sociedade, os Beesley querem abrir os olhos do público mais uma vez para mostrar as conseqüências reais e inaceitáveis da prostituição.

Inicialmente, o filme foi planejado para ser um documentário ‘convencional’, filmado durante um longo período de tempo, utilizando câmeras portáteis para transmitir uma sensação de dinamismo e energia, numa tentativa de capturar e evocar a adrenalina das prostitutas que trabalham nas ruas. O registro daquilo que os Beesley descrevem como ‘energia crua’ era intrínseco à idéia de comunicar uma experiência vivida, e não uma visão excessivamente ‘midiática’, mas ficou claro que as questões sociais que o casal queria abordar estavam embutidas no ‘espetáculo’ daquilo que eles estavam filmando e não eram suficientemente reveladas pelo filme. As animações sobrepostas começaram a definir alguns dos aspectos mais complexos e contraditórios do material, e as abordagens por meio das quais a criação de documentários atua como possibilidade de revelar o tema com mais clareza para ela mesma. Há a insinuação implícita de que a própria Gillian pode ter renderizado a imagem, por exemplo, por vezes refletindo sua própria ingenuidade e impotência diante de sua experiência. Ao mostrar um cartaz renderizado de Girls in the Night, com a chamada ‘a verdade tensa e aterrorizante sobre as filhas delinqüentes da cidade grande’, os Beesley fazem uma referência humorística aos idiomas fantasiosos falados pelas garotas de rua dos filmes B, distantes da realidade da existência dolorosa e sem glamour de Gillian. Ao mostrar Gillian olhando-se no espelho, eles também apresentam uma clara metáfora para o confronto dela com sua própria identidade, quando lembra de sua infância e da sensação de abandono que sentiu quando foi levada para a instituição, de onde acabou fugindo para vender seu corpo nas ruas. Mais uma vez, os Beesley insistem na idéia de que problemas sociais têm causas e sintomas, que muitas vezes residem nas escolhas que algumas pessoas são obrigadas a fazer como resultado de sua história e situação econômica. O documentário dá uma voz ao tema; o documentário animado reforça o tema ao insistir na presença do autor como seu fiador político.

Na animação, a visão do autor é sempre subentendida e freqüentemente trazida para o primeiro plano no ilusionismo auto-reflexivo do formato, mas a presença autoral é especialmente significativa no documentário animado, como criadora de condições retóricas para a crítica política e estética. Assim, um filme como Revolving Door funciona como uma reação à animação convencional, altamente estruturada, gerada por computador, ‘neo-tradicionalista’, personificada pelo trabalho exemplar da Pixar, bem como à animação digitalmente independente e auxiliada pela computação que é subjacente a muitos estilos de imagem em movimento. Conseqüentemente, sua abordagem ao estilo retrô, desenhada à mão, reforça seu aparente caráter imediato e espontâneo. Em essência, embora nominalmente comparável a Waking Life ou O homem duplo [A Scanner Darkly], de Richard Linklater, no sentido de sobrepor a animação ao material filmado, Revolving Door é mais seletivo em sua abordagem, e tem como objetivo chamar atenção para a relação com as imagens reais, em vez de reinterpretá-las. Além disso, Linklater efetivamente reanima uma ‘performance’, ao passo que os Beesley reanimam uma ‘ação social’, usando a animação para enfatizar o ‘registro’ trágico do vício em drogas, da indiferença e brutalidade dos clientes, e a impotência social das garotas de rua diante da oposição da classe média.

Os Beesley apresentam uma narrativa provocadora e eticamente engajada, demonstrando a ‘síndrome da porta giratória’, que coloca mulheres em um ciclo perpétuo de dívidas, que torna sua situação inescapável. Essa mensagem é transmitida com clareza, mas o casal também quer se distanciar da idéia de que o ‘documentário’ só funciona como formato cinematográfico, e sugere que ele deveria atuar como um fenômeno vivo, permanente, de registro e responsabilidade social. Conseqüentemente, um site extenso (www.beeworld.net.au/rdoor) foi criado para agregar outra dimensão à narrativa de Gillian. Os Beesley afirmam que ‘o site do filme agrega uma dimensão inteiramente nova à história de Gillian; mais uma vez, a meta é romper com os paradigmas tradicionais da web, em uma tentativa de construir um site que seja tátil, heurístico e aberto a descobertas acidentais. O site também funciona como poderosa ferramenta de marketing global – o que é particularmente espantoso, uma vez que não fizemos propaganda do site e estamos recebendo, em média, mais de quinhentas visitas por dia, o que nos mostrou o incrível potencial da web. Para nós, Revolving Door é um protótipo de apresentação para projetos futuros – multiplataforma, com componentes transmitidos (lineares) e interativos (web)’.

Os Beesley resistiram à ‘mentalidade de rebanho’ que tem acompanhado certos aspectos da utilização de software de animação digital, e encontraram a maneira adequada de servir à sua mensagem. Socialmente engajado e tecnicamente inventivo de modo a permitir acessibilidade sem sacrificar o impacto ou a ambição artística, Revolving Door mostra o caminho para um modelo bem-sucedido de informação pública. Trata-se de ensinar sem pregar; visão sem supervisão. Enquanto a cultura das tecnologias de animação digital oferece uma voz a todos e, de modo implícito, incentiva o investimento e a experimentação, ainda é verdade que as ferramentas mais pertinentes têm de ser escolhidas para desenvolver uma idéia da forma mais enriquecedora e reveladora. O envolvimento e o desenvolvimento da incursão dos Beesley pelo documentário animado provou que essa afirmação é verdadeira; passado, presente e futuro unidos em um modelo de expressão progressivo e pertinente.

Professor da Loughborough University, no Reino Unido, Paul Wells é autor de livros e documentários sobre animação, um de seus principais temas de estudo. Além do recente Re-imagining Animation (Ava Publishing, 2008), em que analisa a obra Revolving Door, publicou livros como Animation and America (Rutgers University Press, 2002) e Animation: Genre and Authorship (Wallflower Press, 2002). Autor do documentário Cartoons Kick Ass (para o Channel Four inglês), também é escritor e diretor de teatro e TV.

Biografia comentada Denise Mota, 08/2008

Revolving Door (“porta giratória”) não é apenas o título do premiado documentário de Alexandra e David Beesley. É também a expressão usada para designar o perverso ciclo que condena prostitutas em diversas partes do mundo a afundar-se em dívidas – e, por conseqüência, depender cada vez mais da atividade sexual – a cada vez que são presas pela polícia no exercício do trabalho e têm de pagar multas para recuperar a liberdade. 

Mais do que documentaristas interessados no universo da indústria sexual, o casal sabe do que está falando: quando adolescente, Alexandra viveu na pele os dissabores e riscos cotidianos da prostituição, depois de deixar sua Inglaterra natal para adotar a Austrália como país. “Essencialmente, eu não tinha família, não tinha dinheiro nem casa, então fui trabalhar nas ruas”, descreve a diretora. 

O olhar de quem sabe em primeira mão o que é perambular, sob sol e chuva, à procura de clientes, a experiência junto a entidades que dão assistência a trabalhadores sexuais em Melbourne e o envolvimento em projetos de televisão comunitária desembocariam no primeiro documentário de Alexandra, PCV: Prostitute’s Collective of Victoria (1989). 

No filme, a diretora apresenta as diversas atividades da organização e coloca em debate aspectos que desenvolveria sob outras formas, em projetos posteriores: a discriminação inerente à visão que a sociedade dedica à prostituição; e as relações de poder que se estabelecem entre prostituta e cliente. Sobretudo, olha para a prostituição como um trabalho e seus praticantes como pessoas – constituídas de ambições, interesses e valores tão comuns ou anedóticos como os de qualquer outra. 

O registro da vida nas ruas também deu a Alexandra um companheiro. Durante a realização de suas produções audiovisuais, conheceu David. Começaram a trabalhar juntos, casaram-se em 1990 e juntaram forças – ele, como diretor e operador de câmera; ela, como pesquisadora e produtora – para imprimir o frescor que transborda da série televisiva britânica Red Light Girls (1998). Com direção-geral de Mark Jones, a série foi exibida em diversos países europeus. 

Longe da típica prostituta amargurada, sem perspectiva de vida, explorada e marginalizada, as garotas australianas “da zona da luz vermelha” captadas pelo casal têm padrão de vida confortável e muitos planos, pelos quais trabalham. Dirigem seus próprios carros, fazem ginástica diariamente, meditam; almejam ser estrelas de Hollywood, conquistar o mundo da moda ou aposentar-se e ter filhos. “Essa abordagem foi tão bem-sucedida e renovadora que fomos enviados a Los Angeles para fazer o mesmo com os personagens norte-americanos da série”, contam os cineastas. 

Alguns projetos depois, em 2001 Alexandra e David fundaram sua própria produtora, a Beeworld. Sediados em Melbourne, atuam como diretores, produtores, roteiristas e animadores em trabalhos que articulam linguagens e plataformas, de documentários a sites e instalações. Revolving Door (2006) é o primeiro documentário de animação da dupla. 

A obra, que tem muito de autobiográfica, fez Alexandra revisitar um passado cheio de más recordações, mas também de questionamentos de interesse público: o impacto da prostituição sobre a população do subúrbio praiano e boêmio de St. Kilda, em Melbourne; a atuação da polícia; os dilemas implicados na decisão de prostituir-se. “Revolving Door foi um trabalho muito difícil para mim, já que é uma viagem extremamente pessoal”, diz a diretora. 

Exibido, entre muitas outras mostras ao redor do mundo, no St. Kilda Film Festival, em junho de 2007 – projeção que teve um sabor especial para os realizadores, já que este é o mesmo local em que Gillian, a protagonista de Revolving Door, trabalha –, o filme não termina na tela e se estende para o mundo virtual. No site da companhia dos Beesley, um link guia o internauta a um acervo de materiais adicionais sobre a vida da personagem, como documentos acerca de suas passagens por instituições públicas, seu diário pessoal, sons e imagens. 

A plataforma eletrônica também é parte do mais recente projeto de Alexandra e David, The Tale of the Right Hand of Spider Lil, conto de horror sobre uma prostituta do século 19 que utiliza novamente animação. No território dos registros contemporâneos, a dupla prepara ainda Gunya Girls, documentário que acompanha a trajetória de mulheres que estiveram presas em um centro de detenção juvenil na Austrália.

Referências bibliográficas Denise Mota, 08/2008

Beeworld
Página oficial dos artistas e de sua empresa, a Beeworld. No conteúdo, biografias do casal, descrições de projetos e um link para Revolving Door, onde materiais adicionais sobre a vida de Gillian – protagonista do documentário –, entrevistas e imagens podem ser consultados. 

Imagens australianas
Site do ACMI - Australian Centre for the Moving Image, fundado há mais de sessenta anos. Sediada em Melbourne, a entidade foi uma das primeiras organizações da Austrália dedicadas ao audiovisual e às novas mídias. 

Austrália na tela
Um banco de dados com informações sobre o cinema australiano, além de estatísticas e de uma lista de festivais e concursos são os atrativos da página mantida pela agência estatal Screen Australia, que fomenta a produção digital para cinema e televisão no país. 

Para entrar no clima
Assim como acontece em São Paulo, o clima de Melbourne – onde vivem Alexandra e David Beesley – é uma loteria. Checar a previsão do tempo na cidade nesse site é uma das tarefas rotineiras do casal de realizadores. 

Bonecas de papel
Uma das grandes paixões de Alexandra Beesley são as bonecas de papel, e a primeira incursão virtual da diretora no tema se deu através dessa página, com links para jogos e livros sobre o assunto, e coleções de bonecas atualizadas constantemente.