Curadoria convidada |

O curador Miguel Petchkovsky selecionou um grupo de artistas que discutem temas como memória, hibridismo cultural e representação histórica do tempo. A mostra contou com 11 vídeos, exibidos no auditório, e o programa foi organizado em temas ligados às localidades:

"África do Sul - Representação do Tempo"

"Angola - Individuação em Massa" 

"Diáspora"
 

"Moçambique - Basicamente Falando". 

Artistas

Obras

Texto de curadoria Miguel Petchkovsky, 2003

Re-Presentando o Tempo*

A imagem do tempo.

O tempo da imaginação.

O tempo é algo subjetivo, a menos que seja articulado ou definido por nós. O tempo também é formado em torno de uma repetição de momentos que são fixados num espaço físico ou emocional. Filosoficamente, o tempo é uma repetição de momentos implantada em nossa consciência, onde nossa imaginação e memória a processam como experiência na qual nós e outros podemos nos engajar. Reapresentar o tempo é uma arrogância que a criatividade presume em todas as suas variadas formas, e como tal é um acalentado patrimônio humano que estabelece a função e a compreensão entre culturas. Como um ato político, o tempo pode ser apagado para re-representar a história, a fim de facilitar ou enfatizar poder. Um exemplo disso é a destruição da escultura de Buda pelo Taliban durante a guerra do Afeganistão, a atitude passiva dos militares norte-americanos para evitar a destruição da biblioteca e do museu de Bagdá, ou a espoliação, durante o período colonial, da história cultural africana, agora parte de uma reconstrução etnográfica de significado que reafirma a dominância do pensamento colonial.

A recente Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul nos lembra a importância da revelação traumática como mecanismo para tornar visível um passado subexposto, para que um novo futuro possa ser imaginado individual e coletivamente. Sujeitar uma nação, um povo ou um indivíduo a uma espécie de amnésia imposta em conseqüência de manipulação política e/ou econômica nos alerta para a importância de como nos posicionamos dentro do tempo histórico e contemporâneo. Nesse contexto, é fundamental analisar de que modo a manipulação do tempo corrói nossa noção de memória e de que maneira essa memória pode ser um agente poderoso na reconquista das identidades e da dignidade humana perdidas.

Em Angola o conceito de tempo tem sido historicamente definido e influenciado. O tempo histórico define a psique de um povo, até recentemente sujeito a uma devastadora guerra civil com conseqüências materiais e emocionais. Indivíduos discutivelmente nunca estão sozinhos, caso sejam considerados integrantes de uma estrutura social. Localizar o indivíduo numa totalidade social ou coletiva define a noção africana de Ubuntu. Desconstruir, isolar e traumatizar o senso coletivo do indivíduo fragmenta a memória que coletivamente nos integra ao constructo político e social. Acentuando o trauma de 30 anos de agitação social (guerra), as telenovelas brasileiras, por exemplo, criaram um culto do indivíduo que assim fragmentou qualquer forma de engajamento coletivo tradicional. A sociedade civil angolana reconhece isso e começou a implementar uma metodologia social que investe na criatividade ou na expressão artística individual que promove a idéia de coesão social.

A videoarte ainda não é plenamente compreendida ou mesmo adotada por artistas africanos, tradicionalmente privados das informações básicas e dos discursos globais sobre essa disciplina. Artistas angolanos vivendo na Diáspora, junto com cineastas, começaram a fazer experiências com uma nova linguagem visual que dará frutos no futuro. Em Moçambique o vídeo ganhou impulso significativo depois da mostra com curadoria do artista sul-africano Jose Ferreira, atualmente radicado em Londres. Essa mostra foi o primeiro evento importante de vídeo realizado em Moçambique e resultou numa nova geração de artistas fazendo experimentos com essa forma de arte, a despeito das limitações tecnológicas óbvias e da resistência do mercado. A prática da videoarte cada vez mais se engaja numa crítica sociopolítica específica. Os públicos não são tradicionalmente passivos, como tendem a ser quando confrontados com o cinema. Eles estão desenvolvendo uma atitude crítica que vê o trabalho de arte como uma desconstrução do texto cultural. Há uma visão aceita de que os públicos não são grupos anônimos prontamente categorizados, mas que consistem em indivíduos que participam cada vez mais da construção de significado e estrutura social.

A África do Sul pós-apartheid é mais bem ilustrada pelas endêmicas divisões de classe em conflito dentro de uma arena tecnológica imposta, que define a idéia específica de uma modernidade implacavelmente imposta. É possível fazer parte ou vivenciar essas colisões culturais em espaços públicos — ao presenciar, por exemplo, um sangoma tradicional fazendo uma operação de crédito num caixa automático. Esses hibridismos nos oferecem uma interessante substância para desconstruir os clichês intelectuais normais que definem as transições sociais africanas contemporâneas. Artistas sul-africanos têm conseguido se posicionar no discurso criativo internacional contemporâneo porque parecem ter reconhecido a capacidade da imagem criativa para criticar um sistema social falido (o apartheid). Embora as portas de importantes instituições e escolas de arte ocidentais estejam cada vez mais acessíveis, elas continuam fechadas para a maioria na África. Essas divisões cruciais resultaram numa linguagem visual social que se desenvolve em paralelo à crítica internacional dominante — que, ironicamente, não representa ou reflete os públicos que pretende representar. Numerosas estratégias culturais estão sendo planejadas para empregar a questão de linguagem e poder numa busca que legitima o “autêntico” e estimula uma crítica sobre a representação da memória.

A co-opção de “outros” selecionados da periferia numa narrativa criativa dominante serve para efetuar o gesto simbólico de assimilação ou inclusão cultural. Essa inclusão seletiva sugere que a narrativa marginalizada está sendo criticamente empregada como parte de uma nova sensibilidade expandida de inclusão cultural. É importante reconhecer a futilidade de repaginar o não-familiar para o consumo e endosso da narrativa dominante. Essa separação crítica é perigosa: torna o “outro” cada vez mais remoto e refratário e não entende os méritos formais e conceituais da pluralidade cultural como um contraste crucial à idéia de homogeneização, inerente ao ideal de uma zona de atividade econômica e cultural universalmente reconhecida e adotada.

Um grupo de artistas foi selecionado para questionar temas como memória, hibridismo cultural e a representação histórica do tempo. Foi solicitado a eles que formulassem uma linguagem que evoluísse de uma necessidade interior para exteriorizar/exorcizar o tempo e a memória. Os artistas escolhidos são Andries Botha (escultor e videoartista), Greg Streak (videoartista, escultor e teórico), Jay Pather (artista performático e videoartista), Muchekwa Langa (pintor e videoartista), Stephen Hobbs (videoartista e artista gráfico), Jose Ferreira (videoartista), Angela Ferreira (artista multimídia), Berry Bickle (artista multimídia), Virginia Mackenny (pintora e videoartista) e Minnette Vári (videoartista). Se reconhecemos que a arte vive apenas na próxima fração de tempo, então devemos pensar em criatividade no contexto do novo contemporâneo. “Re-presentando o tempo” é um gesto curatorial para reconhecer a cultura como catalisador social e enfatizar o discurso criativo Sul-Sul como um elemento do discurso cultural contemporâneo.

* Editado por Andries Botha

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "Deslocamentos - 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, p. 125 a 127, São Paulo, SP, 2003.