Nessa performance, a indonésia Melati Suryodarmo usa de concentração absoluta para caminhar, de salto alto, sobre pedaços de manteiga, na iminência do escorregão e da queda. A crença no corpo físico como espelho dos universos interiores move a performer.

Integrante do Independent Performance Group, fundado pela artista sérvia Marina Abramovic, Melati experimentou o método radical da mestra, que costuma levar seus discípulos ao limite da capacidade emocional com exercícios, jejum e meditação.

Artistas

Obras

Texto de curadoria 2005

Exergie - Butter Dance

No trabalho de Melati Suryodarmo (Surakarta, Indonésia, 1969), o corpo físico é o espelho do que acontece nos universos interiores, o plano onde se revelam ideias, sentimentos, preocupações e habilidades -  como a de andar rente ao risco e manter o equilíbrio. “Na medida em que somos conscientes de nossa existência física individual, o corpo pode ser um parâmetro para a mente. Acredito que o corpo contém todos os rumos psicológicos que influenciam nossa vida presente e futura”, diz a artista indonésia, que integra o Independent Perfomance Group, grupo de performance fundado pela artista sérvia Marina Abramovic. “Exergie – Butter Dance” é reflexo de sua crença no corpo-espelho. Na obra, Melati caminha, de salto alto, sobre pedaços de manteiga, na iminência do escorregão e da queda. O ato exige dela concentração absoluta, auto-superação constante e respostas velozes a desafios que mudam a cada segundo.

“O conceito de ‘Exergie’ atingiu minha dimensão psicológica mais profunda e condiz, portanto, com qualquer situação que eu esteja vivendo. Cada vez que a realizo, me deparo com experiências novas. Meus trabalhos estão baseados num conceito principal que é sólido e que pode crescer e progredir com a minha vida”, diz a performer. Aluna de Marina Abramovic de 1994 a 2002, ela experimentou o método radical da mestra, que costuma levar seus discípulos aos limites da capacidade corporal e emocional por meio de exercícios, jejum ou meditação. “Além de me ensinar disciplina e profissionalismo, Marina me apoiou na busca da compreensão e consciência de minhas raízes culturais e do meu ser individual, especialmente através dos métodos físicos e mentais que compartilhou comigo”, diz a artista.

Formada em relações internacionais, Suryodarmo reúne também, em seus trabalhos, elementos do teatro nô, do butô e de danças orientais, para tratar de identidade, energia, relações entre o corpo e o ambiente que o cerca e política. Suas obras posteriores a “Exergie” incluem “Lullaby for the Ancestors” (2001), em que, num longo vestido lilás, domina um cavalo branco, e “The Promise” (2002), quando, envolvida num traje vermelho, segura o fígado de um animal, órgão comumente associado, em seu país, à ocultação de problemas. “Nunca vou escolher um assunto que seja irreal ou que não esteja conectado com minha vida. Só posso falar dos temas que me interessam e que tenho certeza de entender. Mesmo quando falo de política, o objetivo não é representar uma opinião geral, mas minha visão pessoal sobre isso.” 

Agora, a artista se detém sobre o silêncio, tema do próximo projeto. “Se eu quero que o mundo mude, tenho que começar por mudar a mim mesma. A parte mais importante da atitude individual frente a uma situação política é ter confiança na mente e respeitar os outros da mesma forma como você se respeita.”

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 06 a 25 de setembro de 2005, p. 150 a 151, São Paulo, SP, 2005.

Texto de curadoria 2005

Performances

Centrada no corpo, efêmera, imprevisível, a performance é um gênero de arte que envolve confrontamento e risco. Política, subverte a relação entre obra e público, que é convidado não a suspender sua descrença para acreditar em uma ficção, mas a testemunhar um acontecimento. Tanto ao transitar entre disciplinas quanto ao esquivar-se delas, torna-se a expressão de uma arte em que as fronteiras entre gêneros deixam de fazer sentido. Talvez por isso seja apontada como manifestação artística contemporânea por excelência.

Foi a observação desse fenômeno, sobretudo na maneira evidente como ele reverbera na arte eletrônica – cada vez mais politizada e vinculada à presença do artista –, que motivou a reunião desse expressivo grupo de performers dentro do Festival. Brasileiros, norte-americanos, asiáticos, africanos, eles representam vertentes diversas de um gênero de hibridismos infinitos, que se presta ora a dissolver os limites entre as expressões artísticas, ora a apontar questões sociais para compartilhar cicatrizes universais.

Uma das mais marcadas entre essas vertentes, a performance que se constitui abertamente em gesto político é representada, entre outros, pela artista nova-iorquina de origem cubana Coco Fusco. Ela comanda uma intervenção urbana que encena um ritual de sujeição comum nas prisões militares norte-americanas, vista aqui como uma espécie de performance compulsória em que o corpo é violentamente usado contra o próprio homem. Também é da observação de situações refletidas na mídia e na sociedade que vêm os registros reunidos em “Futebol”, trabalho da Frente 3 de Fevereiro que repercute um episódio de racismo; e a angustiante sensação de tragédia iminente eleita como objeto pelo grupo feitoamãos/F.A.Q.

Não menos políticas na essência, as obras da queniana Ingrid Mwangi e da indonésia Melati Suryodarmo são fruto de uma concepção de performance para a qual o corpo é o campo onde se projetam inquietações nascidas no âmbito da experiência estritamente pessoal. Mwangi, que criou para o Festival “My Possession”, usa voz e movimento para falar de uma existência em deslocamento. Em sua “Exergie – Butter Dance”, Melati, que estudou performance com Marina Abramovic, vale-se da iminência do acidente – e, não raro, do acidente em si – para produzir um nível concentrado de intensidade sem usar qualquer estrutura narrativa.

De formas muito diversas, Marco Paulo Rolla e Detanico Lain representam a performance que nasce das artes plásticas. Ao invés de abandonar o cubo branco, paradigma do espaço expositivo contemporâneo, Marco Paulo se apropria de seu rigor formal em performances que falam do irromper desconcertante do acaso num mundo de placidez e equilíbrio. Angela Detanico e Rafael Lain ambientalizam suas paisagens pixelizadas e se incluem na cena para manipulá-las ao vivo, no intuito de acentuar seu teor de representação digital – e, em última instância, de entender como a representação constrói as imagens do mundo.

Plástica, música e vídeo são os elementos fundadores de um gênero de performance particularmente vigoroso no Brasil. Os trabalhos inéditos do grupo Chelpa Ferro e do artista Eder Santos que o Festival exibe são exemplares. No Chelpa Ferro, Barrão, Luiz Zerbini e Sergio Mekler ampliam seu espectro de ação ao produzir música e objetos ruidosos, que posicionam no palco como peças de uma instalação. “Engrenagem”, que reúne Eder Santos, os músicos Stephen Vitiello e Paulo Santos e a performer Ana Gastelois, é uma releitura que reafirma o talento do artista para multiplicar, com o vídeo, o efeito visual de atos performáticos de dança, música, drama e poesia.

Tanto Eder Santos quanto o Chelpa Ferro passaram antes pelo Festival, como atestam as obras incluídas na mostra Antologia Videobrasil de Perfomances. Eder criou para o Videobrasil uma série histórica de trabalhos performáticos; Zerbini, Barrão e Mekler usaram o nome Chelpa Ferro pela primeira vez no 12º Festival, em 1998. Não deixa de ser simbólico, portanto, que seus novos trabalhos fechem a programação do 15º Videobrasil. Em meio a este amplo panorama do mais contemporâneo dos gêneros, eles representam uma vertente de performance que foi pioneira no cenário brasileiro – e que o Festival se orgulha de ter acolhido desde o nascimento.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. "15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil - 'Performance.'": de 6 a 25 de setembro de 2005, p.96-97, São Paulo-SP, 2005.