Com uma miríade de estratégias, que vão do resgate de tradições culturais ancestrais à iconoclastia, de reflexões sobre os significados de imagens de grande circulação à construção de ruínas, os cinco artistas convidados para o Festival atestam a potência das vozes que falam do Sul e desde o Sul. De formas diversas, os brasileiros Sônia Gomes e Rodrigo Matheus, o artista português Gabriel Abrantes, o malinês Abdoulaye Konaté e a marroquina Yto Barrada tratam do tecido social esgarçado que compõe o cenário político contemporâneo.

Afora Liberdade, os filmes de Gabriel Abrantes participaram de uma mostra de filmes. Uma visão iconoclasta da história, da arte e do cinema marca seuss filmes, que subvertem elementos de gênero hollywoodianos - a comédia romântica, a ficção científica, o filme de ação - para falar dos impactos da globalização, de questões de gênero, da falência das utopias. Usando personagens frequentemente impulsionados pelo desejo sexual, explora a fricção entre os eixos tradicionais de poder e os novos atores do cenário pós-colonial. Em busca dos lugares onde, afirma, "as formas contemporâneas de visa estão sendo inventadas", filmou em Angola, Haiti, no Sri Lanka e no Brasil.

Artistas

Obras

Texto da comissão de seleção 2015

Cinco artistas e uma miríade de estratégias contemporâneas atestam, aqui, a potência da produção que emerge do Sul e fala ao mundo. O malinês Abdoulaye Konaté transpõe o ambiente da pintura para gerar uma nova linguagem, articulando sua rigorosa formação artística a elementos da cultura tradicional de seu país, notadamente a tapeçaria. O uso extraordinário da cor e o rigor das composições não se desvinculam de um discurso politizado, que expõe questões não só africanas, mas também universais. Inspiradas no encontro que teve, em 2014, com uma tribo guarani de Ubatuba-SP, suas tapeçarias falam de culturas ameaçadas.


Partilhando a escolha dos têxteis como universo expressivo, a brasileira Sônia Gomes nasceu em Caetanópolis-MG, que abriga uma das primeiras fábricas de tecidos do Brasil. Ainda criança, num arroubo de inconformidade, decidiu fugir de casa; para tanto, enrolou e amarrou pedaços de tecido, formando uma trouxa. Mais tarde, a trouxa se tornaria a forma seminal do pensamento que conforma toda sua produção artística. Aqui, ela experimenta uma escala que desafia a intimidade do corpo. Cada curva ou reentrância, tecido ou pele, fala de um sujeito singular, ou de um coletivo que compartilha história e cultura.


A contrastar com essa organicidade, a obra do paulistano Rodrigo Matheus demanda engenharia pesada para suspender tambores e criar uma estrutura de balanços, pesos e contrapesos que lançam o público numa zona de instabilidade com paralelos na provisoriedade das relações econômicas e sociais contemporâneas. O trabalho deriva da observação da história do Sesc Pompeia, e pretende devolver a ele parte do que o artista chama de “arruinamento” da cidade nos últimos cem anos.


As dinâmicas da representação e o impacto da circulação de imagens na construção de identidades são os temas da artista francesa de ascendência marroquina Yto Barrada. Sua Wallpaper é paradigmática. O contato diário com esse tipo de representação – papéis de parede com paisagens longínquas são comuns em lojas e cafés do Marrocos – sublinha a fricção entre a vida real e o desejo de pertencer a outra realidade, entre o real e a ficção de uma vida de facilidades à espera do outro lado.


Os filmes de Gabriel Abrantes – que nasceu nos Estados Unidos de pais africanos, vive em Lisboa e se considera um artista português – expõem o atrito, também sutil, entre eixos de poder tradicionais e emergentes. Com uma visão iconoclasta da história, da arte e do cinema, suas narrativas analisam a forma como a cultura global está sendo transformada pela ascensão de novos atores e os impactos das identidades emergentes em culturas antes hegemônicas. Interessado em “lugares onde formas contemporâneas de vida estão a ser inventadas”, filmou em Angola, Haiti, Sri Lanka e no Brasil.


A trama do tecido social rugoso e esgarçado que compõe o cenário político em princípios do século 21 constitui uma malha crítica de fibras orgânicas e industriais, pondo à prova as relações temporais e tecnológicas que articulam a poética coletiva destes artistas e estabelecendo diálogos entre vozes que falam desde o Sul.


Bernardo de Souza, Bitú Cassundé, João Laia e Júlia Rebouças