As obras que compõem a exposição são fruto de um edital para comissionamento de projetos de artistas do Sul lançado em 2014 pelo Festival. O novo mecanismo reafirma a vocação do Videobrasil para descobrir e apostar em proposições artísticas relevantes nessas regiões. Realizadas com acompanhamento dos curadores do Festival, as obras de Ting-Ting Cheng (Taiwan), Cristiano Lenhardt (Brasil), Carlos Monroy (Colômbia) e Keli-Safia Maksud (Quênia) inauguram o Galpão VB, espaço de exposições, pesquisa e outras atividades de ativação do Acervo Videobrasil.

Artistas

Obras

Texto da comissão de seleção 2015

A partir de estratégias distintas, os quatro projetos aqui apresentados abordam as tensões existentes entre a produção simbólica de diferentes regiões do mundo. Ao investigar a natureza das múltiplas identidades forjadas no contexto do Sul geopolítico, e como a cultura produzida nessa ampla região é construída, ganha circulação e se legitima, eles sublinham as nuances, lacunas e os desvios de percepção que constituem a pluralidade dos olhares que lançamos sobre o mundo.
Nesse sentido, o colombiano Carlos Monroy toma como objeto de pesquisa o fenômeno da lambada, ritmo que ganha força no Brasil dos anos de 1990. A partir da apropriação brasileira de uma canção boliviana posteriormente plagiada por produtores franceses, a lambada representa um dos maiores sucessos comerciais da indústria fonográfica nacional. Suas repercussões mais recentes surgem em uma série de novas e controversas manifestações culturais hipersexualizadas, como certas modalidades do pagode e do funk carioca, que desconhecem faixas etárias ou estratos sociais, tal sua capilaridade nos meios de comunicação. Na construção da sua pesquisa, Monroy incorpora a questão dos direitos autorais como um elemento estruturante, tornando a apropriação de imagens preexistentes em vídeos da internet seu principal recurso para a elaboração de uma narrativa que mescla ficção e pesquisa documental e apresenta um potente painel da cultura latino-americana na contemporaneidade.
As mesmas tensões entre expressões culturais locais e elementos estrangeiros estão presentes na obra da queniana Keli-Safia Maksud. A artista investiga a disseminação de dois produtos europeus no continente africano: o sabão e os tecidos estampados. Abordando os discursos associados a eles, Keli discute os elementos que formam sua identidade e os reinscreve a partir de uma visada crítica. Sua obra parte de uma trouxa feita com os tradicionais tecidos com padronagens “africanas”, que vão sendo embranquecidos por alvejantes. As narrativas que derivam dessa ação central reelaboram, poética e politicamente, os temas centrais de sua produção.
A interseção entre representação e simbologia é um dos temas que atravessa toda a prática da taiwanesa Ting-Ting Cheng. Seu The Atlas of Places Do Not Exist, uma extensa coleção de livros sobre lugares que não existem, olha para o mundo como um conjunto de territórios imateriais e levanta questões que remetem ao universo do próprio Videobrasil – afinal, o Sul global é também um lugar que não existe, carregado de símbolos aqui colocados em diálogo. Ecoando temas do Festival, a biblioteca criada por Cheng constitui um mapeamento de diversas questões que marcam nosso universo simbólico.
Superquadra-saci, de Cristiano Lenhardt, explora em sentido análogo a existência e a inexistência dos lugares. Nesse vídeo, o artista atravessa diferentes camadas de enfrentamentos ficcionais para construir exercícios de uma política da liberdade e do pensamento utópico. Ao mesclar o cotidiano ao sobrenatural e ao monstruoso, Lenhardt faz de personagens esquecidos moradia e refúgio, como se lembrasse que, atrás de cada coluna modernista, há um “Saci-Pererê” – um “Ser-Índio” – escondido, como uma espécie de assombração.
Entre o universo fantástico e a biblioteca, a indústria cultural e a publicidade, o que temos é um vislumbre da instabilidade que constitui as identidades e os lugares de fora do centro. É essa a paisagem de disputas, às vezes radicais, que vemos, ao lançar o olhar para um panorama do sul.
Bernardo de Souza, Bitu Cassundé, João Laia e Júlia Rebouças