Momento luminoso

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postado em 19/07/2017
O curador Gabriel Bogossian fala sobre o trabalho de Claudia Andujar com os Yanomami na luta contra a herança colonial brasileira

Claudia Andujar, uma das principais fotógrafas brasileiras contemporâneas, teve seu trabalho marcado pela convivência com o povo Yanomami, do qual se aproximou no começo dos anos 1970. Dia 29 de julho, sábado, às 15h, ela participará de uma conversa com o público e com o curador Gabriel Bogossian, no encerramento da exposição Nada levarei quando morrer, aqueles que me devem cobrarei no inferno.

Andujar participa da exposição, que está em cartaz no Galpão VB, com duas obras: o slideshow Catrimani e a fotografia Casulo humano (rito mortuário Yanomami). Além disso, uma fotografia sua é ponto de partida para a instalação Yano-a (Wakata-ú – Terra Indígena Yanomami), de Gisela Motta e Leandro Lima; e, na Sala de Leitura, estão disponíveis para consulta os livros Yanomami, Marcados e No lugar do outro.

Na entrevista a seguir, Bogossian fala sobre a importância do trabalho de Andujar como resistência estética e política à expansão territorial promovida pelo Estado brasileiro na segunda metade do século 20.


Da série Catrimani, exposta no Galpão VB

 

No encerramento da exposição, você vai mediar a conversa de Claudia Andujar com o público e, antes disso, fará uma breve apresentação do trabalho dela. Quais aspectos desse trabalho você pretende destacar?

Penso que é importante iluminar o contexto histórico de produção da obra da Claudia, os fatos materiais que fizeram com que ela tenha percebido, como artista, um lugar de ação possível dentro de uma situação bastante adversa. Entendo que o trabalho da Claudia é um momento luminoso numa época em que o progresso mostrou seu lado mais destrutivo.

 

Você se refere à ditadura militar?

Sim, mas não só. A história do Brasil é uma história de expansão territorial por meio da invasão e conquista de terras indígenas. O empreendimento colonial que começou no século 16 agiu principalmente em duas frentes: pela escravização de trabalhadores africanos e pela eliminação dos povos originários. Com raízes no fim do século 19, mas intensificando-se ao longo de todo o século 20, foi posto em prática um projeto moderno desenvolvimentista que se viu obrigado a eliminar a escravidão, mas que fez isso sem resolver completamente o problema do trabalho. É o que vários intérpretes do Brasil chamam de modernização conservadora, quer dizer: na prancheta o desenho é moderno, mas no canteiro de obras as relações de trabalho são pré-modernas. Já a questão da invasão das terras indígenas forma um contínuo sem grandes modificações. O projeto estatal brasileiro é explicitamente colonial ainda hoje.

 

Como se dá essa colonização durante o século 20?

Penso que é interessante destacar três momentos. Em primeiro lugar, os dois governos de Getúlio Vargas (1930–1945 e 1951–1954), especialmente o primeiro. Vargas incentivou os primeiros projetos dos irmãos Villas-Bôas, mapeou o Mato Grosso etc. O segundo momento é o intermezzo democrático entre 1954 e 1964. Nesse período, a inauguração de Brasília é um marco interessante, que pode ser tomado como ápice simbólico da conquista do Centro-Oeste, um desdobramento ou auge do programa desenvolvido por Vargas. No penúltimo programa público da exposição, o Paulo Tavares falou bastante sobre a relação da construção de Brasília com o povo Carajá, que vivia na região, e sobre os traços colonialistas da perspectiva do Lucio Costa.

O terceiro momento é o que se dá nas décadas de 1960 e 1970, com a expansão rodoviária da ditadura militar. Esse é o mais radical dos três ciclos, o mais violento, porque os objetivos eram mais ambiciosos e a oposição era menor. Isso favoreceu uma ação radical do Estado na conquista dos territórios indígenas.

 

Que tipo de radicalismo foi esse?

Parte dos burocratas militares da ditadura era formada na Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, e consumia uma bibliografia nacionalista, paranoica, típica da Guerra Fria, que pregava a defesa das fronteiras, a necessidade de integração nacional, inclusive do território amazônico, que estaria em constante risco de invasão. Essa mentalidade resgatava uma certa figura mítica do engenheiro militar, e foram criados batalhões de engenharia para abrir estradas.

O principal instrumento desse plano de colonização interna, então, é um grande programa de expansão rodoviária, que eles botaram em prática completando rodovias abertas nos governos anteriores ou, em casos mais ambiciosos e violentos, abrindo rodovias numa velocidade inédita até então. Para isso, foi feito um esforço tanto de controlar a informação que chegava ao público externo quanto de limitar os órgãos estatais que poderiam, internamente, tensionar esse processo.

Isso se deu principalmente com a Fundação Nacional do Índio (Funai), que foi criada em 1968 para substituir o Serviço de Proteção ao Índio (SPI). A Funai já nasceu herdeira dos vícios da SPI e emparedada por um governo que tinha um projeto diferente daquele que alguns servidores queriam que cumprisse. É interessante notar a ambiguidade desse órgão, que é desenhado pelo Estado para ser um intermediário com os povos indígenas, mas é uma intermediação que varia de acordo com os interesses estatais do momento.

 

A Claudia Andujar chegou aos Yanomami pela Funai?

Não, ela chegou primeiro pela revista Realidade, que publicou em outubro de 1971 uma edição especial sobre a Amazônia.

A Amazônia é um tema-produto recorrente do capitalismo editorial brasileiro, volta e meia ela é revisitada — como o Natal ou o Carnaval. Daria para fazer uma exposição só pensando em como a imprensa brasileira aborda a Amazônia: a Veja tem uma meia dúzia de edições especiais, o Globo Repórter tem inúmeras reportagens e por aí vai. A Realidade era um dos produtos editoriais mais sofisticados do grupo Abril na época e publicou essa edição, que foi bastante cara, contando com a participação de vários jornalistas e fotojornalistas — entre eles a Claudia.

 

Nessa época, os Yanomami já tinham feito contato com os colonizadores?

Já, desde as primeiras décadas do século 20 eles tinham contatos esporádicos com piaçaveiros, caçadores e outras pessoas que eventualmente entrassem no território. Eles também tinham um contato relativamente estável com uma missão católica que ficava próxima ao rio Catrimani, a Missão Catrimani.

Mas voltando à revista Realidade, é interessante notar que esse primeiro registro da Claudia está integrado a um produto editorial que tinha um projeto bastante claro: noticiar a Amazônia, naquele contexto, é ao mesmo tempo vender a Amazônia. Paralelamente às várias reportagens, você vê uma série de publicidades impressionantes, que explicitamente procuram vender o território, assim como várias empresas defendendo seus empreendimentos na Transamazônica: madeireiras, postos de gasolina, bancos etc. E a revista tem quatro fotos da Claudia, inclusive a capa.

 



Acima, foto de Claudia Andujar na revista Realidade (out. 1971). Abaixo, peças publicitárias veiculadas na mesma edição: "Terra virgem. Terra que precisa ser possuída", diz o anúncio do governo de Goiás; "À Amazônia que vai substituir a subalimentação, o desemprêgo, os vazios inabitados e cobiçados, pelo progresso, desenvolvimento, riqueza e bem-estar", diz o anúncio da Petróleo Sabbá S.A.

 

Então a série Catrimani, que está exposta aqui no Galpão VB, começou a ser desenvolvida para a Realidade?

Não exatamente. A série é desenvolvida depois desse trabalho de fotojornalismo — talvez, mais precisamente, a partir dele. As imagens publicadas na revista não fazem parte da série. Elas têm uma doçura parecida, um olhar voltado para o ambiente doméstico dos Yanomami, mas não é exatamente esse registro.

Depois desse trabalho para a revista, a Claudia seguiu trabalhando ininterruptamente com os Yanomami até 1977, quando o governo a expulsou do território por causa do seu ativismo. Uns anos depois, entre 1981 e 1983, ela voltou para lá para ajudar no projeto de vacinação dos indígenas. Em 2008, essas fotos foram reunidas na série Marcados.

O que me parece importante destacar é que, em todos esses momentos, a produção da Claudia está tensionando o projeto de colonização interna do Estado brasileiro, porque um dos argumentos que justificava esse projeto era o de que a Amazônia era uma terra vazia, despovoada. Ao retratar o povo Yanomami com esse olhar afetivo e respeitoso, a Claudia produziu, de dentro desse ciclo de violência, um desvio, um antídoto discursivo contra a voracidade estatal, a favor das vítimas do Estado brasileiro.

 

O trabalho fotográfico dela continua depois dessas séries?

Sim. Ela tem um trabalho muito importante como ativista, é fundadora da Comissão Pró-Yanomami [link], por exemplo, mas na fotografia ela também segue trabalhando. A série Sonhos, por exemplo, é uma combinação de imagens produzidas desde 1976 até o começo dos anos 2000, revisitando um material bastante extenso, visando a representar o transe xamânico. O próprio livro Yanomami é uma espécie de desdobramento da abordagem que ela desenvolve na série Catrimani, com o foco no cotidiano e nas relações afetivas, mas a partir de outros pressupostos técnicos, como a fotografia em preto e branco e a investigação sobre a luz no interior das malocas.

Todo o período de presença dela com os Yanomami faz com que ela produza material que vai ser organizado, editado e processado posteriormente, às vezes em séries, às vezes um pouco disperso.

 

Em sua opinião, a recepção do trabalho da Claudia não costuma ter esse viés histórico destacado por você?

O livro Marcados traz um pouco desse viés ao tentar entender o lugar do trauma na obra dela, principalmente por conta do ensaio da Stella Senra, intitulado “O último círculo”. Em geral, porém, a recepção tende a se concentrar em um encantamento pelo diferente, pelo outro. Não acho que a obra justifique isso, mas sim que os intérpretes estejam, em geral, pouco instrumentalizados para situar o trabalho dela com relação à história do indigenismo paraestatal, por exemplo, que ganha força a partir do surgimento da Funai, como contraposição ao que ela tem de herança da SPI e de função colonizadora.

A fotografia da Claudia surge em diálogo com esse indigenismo paraestatal, sobretudo o vinculado à Igreja Católica. Ela é uma interlocutora importante desse ativismo, especialmente porque produz um discurso muito potente, luminoso mesmo, de uma força poética inédita.

 


Casulo humano (rito mortuário Yanomami), fotografia exposta no Galpão VB

 

SERVIÇO

O QUE: Conversa com Claudia Andujar. Mediação de Gabriel Bogossian
QUANDO: 29 de julho, sábado, às 15h
ONDE: Galpão VB (Av. Imperatriz Leopoldina, 1.150, São Paulo)

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