VIDEOBRASIL 40 | 13º FESTIVAL

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postado em 23/06/2023

Na ressaca do 11 de setembro, festival foca em trabalhos que fundem diferentes áreas artísticas

   

Em sua primeira edição realizada no novo milênio, o décimo terceiro festival trouxe novidades significativas em sua estrutura e programação, sintonizadas com o universo virtual e digital que se estabelecia de modo cada vez mais acelerado. A tradicional mostra competitiva, por exemplo, foi dividida em duas, uma para o vídeo e outra para as novas mídias (CD-ROMs e a chamada webart). Mas outros fatores também fizeram do 13º Videobrasil Festival Internacional de Arte Eletrônica*, realizado entre 19 de setembro e 21 de outubro de 2001 no Sesc Pompeia, um evento particular na história do VB: pela primeira vez houve um hiato de três anos entre a realização das edições, tempo no qual foi organizada a Mostra Africana de Arte Contemporânea (2000); além disso, o festival teve abertura uma semana após os atentados de 11 de Setembro, que impactaram todo o debate político e cultural ao redor do globo e tiveram consequências diretas no próprio evento.

 

 

O caos e tensão causados pelo 11 de Setembro foram responsáveis pela ausência de alguns dos convidados internacionais, especialmente dos EUA e Canadá, dada a paralisação dos voos nestes países. Entre eles estava o homenageado Gary Hill, norte-americano atuante desde o fim dos anos 1960 que, em carta ao Videobrasil, falava sobre a “tristeza profunda” que se abatia sobre ele: “Estamos exaustos e atônitos, sem conseguir fazer qualquer coisa, de fato”. Ainda assim, suas três instalações e a mostra com 26 de seus vídeos produzidos entre os anos 1970 e 1990 foram grandes destaques da edição. A apresentação da obra de Hill se relacionava diretamente com o tema escolhido para o festival – Fluxos, fusões e assimilações –, dado o hibridismo e a multidisciplinaridade da produção do californiano, bastante crítico a uma “louvação” da tecnologia por si só.

Em entrevista à Helio Hara, o autor destacava: “Ser humano significa ser tecnológico, mas é preciso apropriar-se da tecnologia e não ser apropriado por ela. (...) Eu me cerquei de máquinas de fazer arte e às vezes penso que é apenas para que eu as refute”. Ao jornal Valor Econômico, Hill ressaltava ainda que, mesmo em uma época na qual a tecnologia tornara-se tão fascinante, preferia usar como instrumentos centrais “o corpo, a fala e a linguagem”. Este diálogo e integração entre a fisicalidade, o uso das palavras e a exploração do tempo surgiam nítidos nas instalações de som e vídeo apresentadas: Wall Piece (2000), na qual um homem atira-se repetidas vezes contra uma parede proferindo palavras e causando impactos que alteram projeções e efeitos de luz; Remembering Paralinguay (2000), vídeo em que uma mulher emana de um ponto distante, emitindo sons em falsete até chegar a um close muito próximo; e Anotações sobre as cores  (1998), uma versão em português da instalação Remarks on color (1994), gravada agora com uma criança brasileira.

Outro homenageado do 13º festival foi o gaúcho Rafael França (1957-1991), artista com uma carreira curta, porém intensa e diversificada, morto precocemente aos 33 anos. Dono de uma produção “rebelde e corajosa” – como destacava a curadoria – em vídeo, instalação e performance, França ganhava uma retrospectiva com sete de seus vídeos, além de um documentário dirigido por Alex Gabassi e Marco Del Fiol para a série Videobrasil Coleção de Autores (lançada um ano antes com filme sobre William Kentridge). A homenagem ajudava a destacar um artista ainda pouco conhecido do público, que iniciara sua trajetória com o grupo de intervenção urbana 3NÓS3 (ao lado de Hudinilson Jr. E Mario Ramiro) e seguira com uma obra pioneira, que ao mesmo tempo tratava de questões de gênero consideradas tabu à época e inovava nas possibilidades narrativas da videorte. 

Para as mostras paralelas foram convidados 10 curadores de nove países, responsáveis por selecionar vídeos – e alguns CD-ROMs e sites – que dialogassem com o tema das fusões e transformações no universo da arte eletrônica. Nesta linha, o curador peruano José-Carlos Mariátegui reuniu quatro vídeos realizados pelo italiano Gianni Toti (1924-2007) no final dos anos 1990, todos relacionados a culturas ameríndias – “uma terra de esperança para a humanidade”, dizia ele. Para Mariátegui, apesar de Toti ser considerado o “pai da videopoesia”, seria difícil defini-lo como “um artista da mídia”, pois sua experiência como poeta, cineasta, dramaturgo, jornalista e ativista político “levou-o além da estética da imagem para nela encontrar uma maneira de representar o mundo como ele é, confrontando o processo de criação com a sociedade”. Tanto o italiano quanto o peruano – que integrou o júri da Mostra Competitiva – estiveram no festival.

Outra mostra de destaque foi "Identidade, Sexualidade e Política", para a qual o dominicano radicado no México Priamo Lozada selecionou oito trabalhos da artista Ximena Cuevas. Considerada um dos principais nomes da arte contemporânea mexicana, com produção em vídeo e performance, Cuevas “procura sem descanso as camadas de mentiras cobrindo as representações cotidianas de realidade e explora sistematicamente as ficções de identidade nacional e gênero”, nas palavras de Lozada. O curador, que esteve em São Paulo no 13º festival, foi o principal articulador da cena de vídeo do México nos anos 1990 e 2000, até morrer precocemente em 2007, no mesmo ano em que assinava a curadoria do pavilhão daquele país na Bienal de Veneza.

O curador inglês Michael Mazière, por sua vez, selecionou para “A necessidade poética” trabalhos de artistas que operam “entre filme e videoarte, cinema e galeria, cubo branco e caixa preta”, como Breda Beban e Daniel Reeves. A australiana Lynne Cooke, que mais tarde se tornaria curadora-chefe do Museo Reina Sofía (Madri), reuniu trabalhos de realizadores norte-americanos que misturavam gêneros de maneira “irônica, bem-humorada e sutil”. Uma série de obras que experimentavam a internet como espaço de criação artística surgiam em outras duas mostras: “Net Art: um espaço público de experimentação”, com curadoria do francês Pierre Bongiovanni, e “Link_Age”, com seleção da brasileira radicada na Espanha Claudia Gianetti. Fechavam a programação de mostras paralelas "A Retomada da Palavra pelo Indivíduo", com cerca de 20 vídeos franceses escolhidos por Gabriel Soucheyre; "Labirinto de Sobrevivência Poética", com seis vídeos belgas reunidos por Paul Willemsen; "Realidade Digital Grega", com curadoria de Dodo Santorineos; e "Vídeos Canadenses Recentes", com trabalhos selecionados por Hank Bull.

 

Competição em duas categorias

Dado o número recorde de trabalhos inscritos e a variedade de mídias que se difundiam – resultando em um hibridismo inédito – a mostra competitiva foi dividida nas categorias “vídeos” e “novas mídias”. O crescimento da importância do Videobrasil também o fazia atrair artistas de cada vez mais regiões do globo e, nas palavras de Solange, “se refletia no aumento da qualidade dos trabalhos”. Para a mostra de vídeos, voltada somente à produção do Sul Global, a comissão de seleção formada por Solange Oliveira Farkas e Eduardo de Jesus analisou 488 trabalhos, dos quais escolheu 99 de 13 países. Vários dos participantes já eram ou se tornaram presenças constantes no festival, como os brasileiros Carlos Nader, Cao Guimarães, Kiko Goifman e Patricia Moran e os estrangeiros Akram Zaatari (Líbano), Claudia Aravena (Chile), Gabriela Golder (Argentina), Guillermo Cinfuentes (Chile), e Jamsen Law (Hong Kong).

O primeiro prêmio foi para Framed by Curtains, do mineiro Eder Santos, uma incursão poética no dia-a-dia da cidade de Hong Kong, recém-devolvida à China; o segundo lugar ficou com Shameless Transmission of Desired Transformations Per Day, do libanês Mahmoud Hojeij, filme que aborda a vigilância sexual a mulheres solteiras em Beirute; e o terceiro premiado foi Vera Cruz, de Rosângela Rennó, realizado em ocasião dos 500 anos do “descobrimento” e baseado na ideia de que seria “impossível” fazer um documentário sobre aquele acontecimento. Receberam prêmios de Menção Honrosa a australiana Linda Wallace, o goiano Luiz Eduardo Jorge e o paulistano Wagner Morales.

Para a mostra de novas mídias (CD-ROMs e arte em ambiente online), aberta também às nações ricas do globo, foram analisadas 156 obras e selecionadas 35, de 15 países. “Mais do que mero recurso de produção, essas mídias produziram uma alteração na forma de percepção das imagens, gerando trabalhos absolutamente inquietos e híbridos”, escreveu Solange. Nesta categoria, ficou com o prêmio principal Mutter, do argentino Marcello Mercado, webart inspirada no pensamento do matemático Kurt Gödel que combina uma narrativa em cartoon com imagens das ruas de Colônia (Alemanha), captadas por câmeras de controle de tráfego. O segundo lugar foi para Uncle Bill, hipermídia de ares sombrios da australiana Debra Petrovitch que mistura fragmentos de memória de uma mulher criada em ambiente violento; e o terceiro prêmio ficou com The Central City by Stanza, do artista inglês Stanza, trabalho no qual ambientes tridimensionais gerados a partir de imagens de Londres podem ser controlados pelo usuário.

Apesar de sempre ter dado grande importância aos troféus físicos que concedeu desde a primeira premiação, em 1983, com objetos de design atrelado às características das edições, foi a partir do 13º festival que o Videobrasil iniciou, nesta área, uma estratégia mais definida de comissionamento à arte contemporânea. Em 2001, marcando mais um passo na aproximação da associação com a produção que extrapola o universo da arte eletrônica, a artista Carmela Gross foi convidada para conceber o troféu, criando uma peça feita em placa de metal banhada a prata que dialogava diretamente com a ideia de encontros e fusões que pautaram o festival.

Também ligadas ao eixo temático, o Videobrasil apresentou uma série de performances durante a programação, como já era tradição. Entre elas estavam Concerto para pirâmide, orquestra e sacrifício, de Eder Santos, obra com referências às culturas pré-colombianas que mesclava música, dança e projeção de imagens; Live Images / PVC / A mulher e seu marido bife, três experiências imersivas nas quais Luiz Duva misturava música eletrônica, narrativas visuais descontruídas e ações de performers; e Entre, dos gaúchos Angela Detanico e Rafael Lain, performance que combinava ao vivo elementos visuais e tipográficos aos sons da banda Objeto Amarelo. Detanico e Lain também participaram da comissão de seleção da mostra principal e foram responsáveis pela identidade visual do festival, que remetia a imagem de células vivas em divisão, iniciando uma longa parceria com Videobrasil.

Também chamaram grande atenção do público as duas performances que completaram a programação: Coverman, do brasileiro Alexandre da Cunha, obra com referências à arte relacional de Lygia Clark que trata da preservação da vida e da fragilidade física, simulando a realização de procedimentos médicos e práticas de salvação; e Politik, de Marcello Mercado – autor conhecido por performances em que se utiliza de elementos e referências perturbadoras –, trabalho que propõe uma discussão sobre vigilância, violência, desejo e manipulação. Nela, enquanto interage com um tubo que penetra seu corpo, o argentino exibe em monitores cenas de pessoas torturadas durante a ditadura militar que assolou seu país até 1983.

 

Acervo e videoteca

Criada em 1991 com foco na manutenção do acervo reunido ao longo dos festivais, a Associação Cultural Videobrasil chegava em 2001 com mais de 2 mil títulos em sua coleção. Dado o crescente valor cultural e histórico do material, a instituição intensificou o foco em sua conservação, organização e divulgação para o público. Um artigo publicado à época na revista mexicana Reflex dava um bom panorama do assunto: “A Associação conserva a maior coleção de arte eletrônica do país, com trabalhos criados por artistas brasileiros e estrangeiros de diferentes gerações. Essa impressionante e crescente base de dados, que ajuda também a transformar a arte eletrônica, inclui vídeos, CD-ROMs e webart com temas como política, sexualidade, memórias individuais e coletivas, mostrando assim a riqueza, a diversidade e as potencialidades destes meios de expressão”.

Para dar circulação a este material, iniciativas como as itinerâncias das mostras em outras cidades se intensificaram. Além disso, no 13º festival, uma Videoteca criada no próprio ambiente do Sesc Pompeia possibilitava ao visitante que não conseguiu acompanhar a programação acesso às obras apresentadas e, também, à vídeos do acervo, organizados em antologias e retrospectivas de artistas nacionais e estrangeiros. Em cópias VHS, estavam ali obras premiadas nas edições anteriores, de nomes como Carlos Nader, Eder Santos, Jacira Mello e Sandra Kogut, entre outros.

Videoartista, curador e pesquisador, Eduardo de Jesus iniciou na edição de 2001 uma longa e profícua parceria com o Videobrasil, sendo responsável naquele ano não só pela seleção de trabalhos, mas pela coordenação do Videojornal (boletim audiovisual diário do festival) e do Wallpaper, projeto responsável pela projeção, nas paredes do Sesc Pompeia, de imagens geradas ao vivo, informações sobre a programação, bastidores e avisos sobre o início dos eventos.

Mirando o novo milênio, sua arte, seus fluxos, fusões e assimilações, Solange defendia na imprensa a vitalidade do 13º festival, considerando-o o mais vigoroso de toda a história do Videobrasil até ali – não só pelo seu porte e estrutura, mas pelas escolhas curatoriais e artísticas contundentes assumidas naquele momento. “A videoarte tem como característica flertar de maneira intensa com outras linguagens. É essa certa promiscuidade, criticada pelos conservadores, que lhe dá essa força”, dizia ao Estado de S.Paulo. “Esta é a arte de um novo século. As pessoas estão se apropriando de todas as linguagens. As fronteiras é que desabam.”

Por Marcos Grinspum Ferraz

*a nomenclatura utilizada para intitular a principal mostra organizada pelo Videobrasil, hoje chamada Bienal Sesc_Videobrasil, passou por adequações ao longo dos anos. As mudanças se deram a partir da percepção dos organizadores sobre as características de cada edição, especialmente no que se refere ao seu formato; duração; periodicidade; parcerias com outras empresas e instituições; e à expansão das linguagens artísticas apresentadas. Os principais reajustes no título das mostras foram: inserção do nome da empresa parceira Fotoptica entre a 2ª (1984) e a 8ª (1990) edições; a inclusão da palavra “internacional” entre a 8ª e a 17ª (2011) edições, a partir do momento em que o evento passa a receber de modo intensivo artistas e obras estrangeiros; o uso do termo “arte eletrônica” entre a 10ª (1994) e a 16ª (2007) edições, quando se percebe que a referência apenas ao vídeo não dava conta dos trabalhos apresentados; a inclusão do nome do Sesc, principal parceiro da mostra nas últimas três décadas, a partir da 16ª edição; e a substituição de “arte eletrônica” por “arte contemporânea” entre a 17ª edição e a 21ª (2019) edições, a partir do momento em que o foco se expande para as mais variadas linguagens artísticas. A mais recente mudança significativa se deu em 2019, na 21ª edição, quando o nome festival é substituído por bienal, termo mais adequado a um evento que já vinha sendo realizado bianualmente e com uma duração expositiva de meses, não mais semanas.

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Imagens:
Acervo Histórico Videobrasil 
Isabella Matheus/Acervo Histórico Videobrasil

1. Cartaz do décimo terceiro Videobrasil, por DetanicoLain.

Galeria 1
1. Gary Hill.
2. Angela Detanico, Rafael Laim, Eduardo de Jesus, Gilbertto Prado e Solange Oliveira Farkas. Foto: Renato Cury
3. “Coverman”, de Alexandre da Cunha.
4. “Framed by Curtains”, de Eder Santos.
5. Priamo Lozada.
6. Politik, de Marcello Mercado. 
7. “Remarks on color”, de Gary Hill.
8. “Remembering Paralinguay”, de Gary Hill. 
9. “Uncle Bill”, de Debra Petrovitch.
10. “The Central City by Stanza”, de Stanza.

Galeria 2
1. Gianni Toti e Solange Oliveira Farkas.
2. Protótipo do troféu, por Carmela Gross.
3. Priamo Lozada e Eder Santos.
4. Carlos Nader.
5. Obra de Rafael França.
6. Videoteca do festival.
7. Danilo Santos de Miranda e Solange Oliveira Farkas.
8. “Mutter”, de Marcello Mercado.
9. “Staying alive”, de Ximena Cuevas.
10. Público na abertura da edição.