Entrevista 2004

DESCONSTRINDO O TEMPO

Os artistas brasileiros Angela Detanico e Rafael Lain receberam na Alemanha um dos mais importantes prêmios internacionais de arte e mídia, o Nam June Paik Award. Em entrevista à DW-WORLD, Detanico fala do significado de tempo e espaço em seu trabalho e da importância do deslocamento nas imagens de Flatland - sua obra premiada. 

DW-WORLD: O júri que concedeu a Flatland o prêmio Nam June Paik 2004, na Alemanha, aponta na obra "processos de transformação e de desconstrução de dados visuais e sonoros que remetem à realidade, seja esta composta por paisagens naturais, espaços sociais ou acontecimentos históricos". O delta do Rio Mekong é desconstruído por vocês a partir de quais referências e com que intenção? 

ANGELA DETANICO: Nossa viagem ao Rio Mekong foi ao mesmo tempo um processo de descoberta e de revisão de alguns conceitos que carregávamos conosco. O rio e seus canais são a mais importante via de transporte da região, utilizada notadamente para o escoamento da produção agrícola colhida das margens férteis do delta. É, portanto, um espaço movimentado, por onde circulam barcos com diferentes tamanhos e funções. O comério é habitualmente praticado no rio: nosso barco era abastecido por comerciantes de verduras, grãos e peixes, que chegavam em canoas. Junto às cidades, organizam-se os mercados flutuantes, onde se vai às compras de canoa. A ocupação das margens nas zonas rurais também reflete a importância cotidiana do rio: os habitantes o "incorporam", utilizando-o para o banho, o preparo da comida, a lavagem da roupa, a pesca. As crianças brincam na água. A água, que foi, durante nossa viagem, o principal ponto de vista a partir do qual observamos o Vietnã do sul e seu povo, seus hábitos domésticos, suas atividades comerciais, sua arquitetura e a organização de suas cidades.

Vocês desconstroem uma paisagem que já é, por princípio, "estranha" a vocês, pois está situada no Vietnã. Pode-se dizer que este trabalho parte da perspectiva do estrangeiro, daquele que está de passagem, ou seja, que é uma obra que só é possível graças ao deslocamento?

AD: A despeito das visitas que fizemos a cidades e vilarejos rurais, o ponto de vista do barco, um ponto de vista em movimento, de passagem, parece-nos o melhor para descrever nossa relação com a região. Aberta, curiosa, mas forçosamente enquadrada pela nossa condição de viajantes ocidentais. Foi a partir desse ponto de vista, portanto, que decidimos problematizar nossa relação com o ambiente e com os habitantes. Flatland é uma tentativa de concretizar essa experiência, fortemente marcada pela geografia do delta. O título refere-se à geografia, e notadamente à nossa revisão do conceito geográfico do delta: nosso conceito da região - e portanto nossa expectativa - era moldada pelo conceito ocidental do delta, que designa - e descreve - tal formação do um ponto de vista cartográfico, do alto. Em vietnamita, fala-se nas terras planas. Adota-se, portanto, o ponto de vista de quem habita essas terras aplainadas pelo rio e seus canais, de quem organiza sua vida de acordo com a horizontalidade da paisagem. Essa presença absoluta da horizontalidade é também crucial para o trabalho.

Em Flatland, vocês trabalham com uma distensão da categoria de tempo através da imagem e, ao mesmo tempo, "prendem" o observador no presente usando o som captado das margens. Você poderia falar um pouco a respeito dessa forma de lidar com o tempo e o espaço no trabalho de vocês?

AD: Em Flatland, a construção temporal reflete o paradoxo de tempo vivido pela experiência do espaço. A geografia plana, repetitiva, familiarizou-nos rapidamente ao lugar. Tanto que experimentávamos o tédio, às vezes... Mas ainda que acostumados com a aparência da região, continuávamos conscientes da nossa ignorância, da nossa pouca compreensão da vida nesse lugar que vínhamos descobrir. Por isso o tempo paradoxal do trabalho. As imagens que o compõem são frames dos vídeos que gravamos das margens, a partir do barco, e com a linha da margem cruzando horizontalmente o monitor. Cada um desses frames foi decomposto em colunas de pixels, a unidade mínima da imagem de vídeo digital. No total, 640 colunas, largura do frame de vídeo. Então, cada coluna foi estendida horizontalmente até a largura original, gerando um frame formado por linhas horizontais. A distensão da imagem é uma tentativa de concretizar a experiência da horizontalidade proporcionada pelo delta do Mekong. Estendidas no tempo, transformadas em uma sucessão de quadros, cada uma das imagens originais transforma-se em uma seqüência, revelando-se pouco a pouco ao espectador. A paisagem desacelara-se, mostra-se pouco a pouco. No entanto, o vídeo provoca a sensação de velocidade: a sucessão dos quadros de imagem lembra a paisagem vista em alta velocidade, como da janela de um trem. O único vínculo com o tempo presente é dado pelo som. Flatland é, portanto, um trabalho sobre a experiência do tempo. Não fala sobre o tempo cronológico, mensurável, medido pelo relógio, mas do tempo vivido, do afeto, da memória, da sensação. Outros de nossos trabalhos evocam a experiência do tempo e sua relação com o espaço, notadamente a instalação site specif 5 times 10 steps. Nele, cinco escadas de mão de madeira têm sua altura determinada por elementos do espaço que ocupam: em relação a uma janela, a um muro, a uma porta, enfim, chegando-se a escadas de alturas diversas. Quando apresentado pela primeira vez no Palais de Tokyo, em Paris, este projeto foi definido em relação à imponente escadaria que conduz ao segundo andar do prédio, sendo as escadas posicionadas em diferentes degraus. Suas alturas variaram entre 640 e 170 centímetros. No entanto, o número de degraus de cada escada - dez - permanecia constante, fazendo com que os intervalos entre os degraus crescessem ou diminuíssem de acordo com a altura de cada escada. Na mais baixa, os degraus ficaram muito próximos, criando, pela deformação do objeto, uma manipulação de ordem espacial, uma sensação de aceleração; na mais baixa, o grande afastamento dos degraus criava a percepção de uma desaceleração.

O prêmio Nam June Paik tem por objetivo fortalecer uma rede internacional de artistas que trabalham com novas mídias. Há algum projeto de parceria que envolve o trabalho de vocês e artistas de outros lugares do mundo, ou especificamente instituições alemãs, que tenha sido iniciado após a divulgação da premiação?

AD: Antes mesmo da entrega do prêmio, iniciamos uma colaboração com os curadores Hans D. Christ e Iris Dressler, diretores do Hardware Medien Kunstverein de Dortmund, envolvidos na organização do prêmio. Participamos de um workshop organizado pelo Kunstverein, onde encontramos vários jovens artistas, na maioria alemães. A partir de janeiro de 2005, Iris e Hans serão diretores do Württembergischer Kunstverein, em Stuttgart, e atualmente estudamos nossa participação no primeiro grande projeto que a dupla conduzirá na instituição. E vem deles também o convite para apresentar Seoul/Killing Time na 3rd_media_city_seoul_2004 [Bienal de Mídia Digital de Seul]. 

VILELA, Soraia. "Desconstruindo o tempo". Disponível em: .