Entrevista 2003

Atualmente, verifica-se nas culturas locais o desafio de reinventar as memórias pessoais e coletivas, sem deixar que elas se esvaziem frente aos fluxos de comunicação global. A seu ver, como este desafio se traduz nas experiências da artemídia?

“A mutação antropológica realiza-se sem a interferência de nossa vontade” Bruno Guiganti A saturação de informações, imagens, sons, decorrente dos fluxos de comunicação global contamina a memória de forma irreversível. Mas acredito que o perigo do esvaziamento da memória pessoal ainda não existe. O que ocorre é a mutação por contaminação. No momento da criação artística, como no caso deste vídeo, “Vida por Um Fio”, o passado habita o presente através da obra e a contaminação existe desde a primeira gestação. Pois o processo de resgate da memória é realizado sempre com a intervenção do momento atual. A artemídia nesse contexto não se configura como simples suporte para a materialização da memória; ela é determinante para o próprio processo criativo. As características técnicas são ferramentas, mas também fonte para o insight criativo, remodelando as imagens e sons originais do subjetivo. Em “Vida por Um Fio”, foi realizado o processo de materializar uma memória afetada pela diáspora, ou seja, pelo deslocamento temporal e espacial da artista (Sheila Hara). Tratava-se de fragmentos da sua infância (tempo) no Líbano, um país (espaço) distante, com uma cultura muito diversa desta em que ela vive atualmente. O elo perdido entre a artista e esse mundo remoto acabou transformando essas reminiscências em imagens embaçadas, que simulam uma aproximação impossível com os objetos originais (a infância, a mãe, as tradições libanesas). Esse processo se intensificou com o meu olhar, que acabou filtrando uma vez mais essas imagens; acabei incorporando ao vídeo sensações provocadas pelo próprio contato e troca com a Sheila, enquanto investigávamos suas memórias e seu trabalho nas artes plásticas, e a relação entre ambos. Dessa simbiose, a obra começou a tomar forma, mas sempre em mutação; a criação foi contínua, não houve uma definição do que deveria ser esse vídeo. Pelo contrário, ele era sempre, a cada momento, uma coisa efêmera. Afinal, trabalhando à quatro mãos (e duas cabeças) com uma matéria tão intangível quanto a memória, a contaminação de cada momento era inevitável. Por isso, o resultado é imagens desprendidas de um contexto, de uma lógica, de uma narrativa. É fragmento de um mundo interior filtrado várias vezes e de várias formas. Ao longo da elaboração do vídeo, nossas experiências cognitivas foram se afetando, por isso posso dizer que a memória, inicialmente objeto da obra, acabou se atualizando com o processo criativo. A memória pessoal/coletiva pode encontrar na videoarte um suporte e um alimento, preenchendo-se novamente, incorporando novos elementos, tomando um corpo, ainda que amorfo. Mas será que esse novo corpo se anula frente aos fluxos de globalização? Será que a contaminação vai além e absorve as memórias? Assim como em algumas tribos africanas diziam que a fotografia “roubava a alma”, será que essas preocupações revelam simplesmente uma cautela frente ao desconhecido? Talvez seja “... impossível prever a amplitude e o ritmo das transformações ocorridas, ainda nos é impossível prever as mutações que afetarão o universo digital...” (Pierre Levy, Cibercultura).

Associação Cultural Videobrasil