Biografia comentada Teté Martinho, 2006

Partindo ora de um olhar que contempla, ora de provocações cuidadosamente elaboradas, a obra de Cao Guimarães (Belo Horizonte, 1965) se constitui numa variante muito particular de cinema, que preserva o silêncio e a relativa precariedade da criação solitária - fiando-se no gesto e na idéia, jamais na parafernália - e flutua livre, acima dos gêneros e dos formatos. A força conceitual das artes plásticas e o exercício cinematográfico “da ação, do tempo, do olhar” convergem em seu trabalho, compondo um corpo único que se impõe com igual impacto nos mundos do cinema e da arte.

A imagem é, desde sempre, o denominador comum entre os movimentos do artista. Formado em filosofia pela UFMG, trabalha primeiramente com fotografia, produzindo, nos anos 1990, obras que se referem com freqüência à linguagem do cinema, em cenas construídas e personagens inventadas. Exemplo do que o crítico de arte Tadeu Chiarelli chama de “uma fotografia inconformada com seus limites”, suas imagens evoluem para a exploração da própria fisicalidade, aproximando-se do instalativo em Decalques, no Projeto Arte Cidade III (1997): nas paredes em ruínas do Moinho Central, São Paulo, expõe fotos ampliadas em vinil de traços e resquícios deixados em muros anônimos por casas demolidas.

OTTO, eu sou um outro, road movie doméstico rodado com Lucas Bambozzi em 35mm e selecionado para o 12º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil (1998), prenuncia a descoberta da imagem em movimento. Nos anos seguintes, durante um período em Londres em que faz mestrado em fotografia na Westminster University e aprofunda o contato com a arte contemporânea, experimenta com uma câmera Super-8 herdada do avô, cujo hábito de fazer e exibir filmes caseiros se constituía em tradição familiar. Com o que descobre ser uma ferramenta a um só tempo plástica e ágil, o artista cria uma espécie de diário filmado, feito de “pequenas impressões do cotidiano”. Os filmes, remetidos pelo correio para revelação e devolvidos uma semana mais tarde, criam no artista a impressão de que está mantendo uma correspondência consigo mesmo.

As imagens prontas são projetadas e regravadas em vídeo, ao longo de um processo que batiza “cinema de cozinha” e que pressupõe “auto-suficiência em todas as etapas” da criação de filmes. Essa é a matriz do delicado The Eye Land, fruto de uma parceria duradoura com a artista plástica Rivane Neuenschwander. Histórias do não-ver, realizado no mesmo contexto, nasce de um exercício menos contemplativo: o artista pede a outras pessoas que o busquem em casa e o levem, vendado, por trajetos desconhecidos. A experiência é descrita em fotos cegas e narrada em textos, que se coordenam em um livro-objeto.

De volta ao Brasil, ao formato Super-8 convertido em vídeo digital, soma-se a música da dupla O Grivo, de Belo Horizonte, com quem Guimarães estabelece uma fértil colaboração. Plásticas, de vocação instalativa, as idéias que seguem sendo compartilhadas com Rivane têm um ponto nevrálgico em Sopro (2000), “pequeno drama da forma” no qual uma bolha de sabão flutua na paisagem. Reflexão poética sobre vida e morte, interior e exterior, ausência e presença, a obra é adquirida pelo Guggenheim Museum de Nova York e integra a mostra competitiva do 13º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil (2001), assim como Word/World, no qual os dois artistas intervêm com as palavras do título em uma colônia de formigas, colhendo as imagens sugestivas que nascem da interação entre insetos e idéias.

No mesmo período, Guimarães dirige com Lucas Bambozzi e Beto Magalhães o primeiro de uma série de cinco longas-metragens: O fim do sem fim, que percorre dez estados brasileiros em busca de personagens com ofícios em extinção. Ainda que impregnado de um silêncio incomum no gênero documental, a obra é, na trajetória do artista, a que mais se aproxima de seus cânones. No ano seguinte, Volta ao mundo em algumas páginas registra uma ação realizada com Rivane Neuenschwander na Biblioteca Pública de Estocolmo. A performance consiste em recortar um mapa-múndi em pequenos fragmentos e inseri-los em livros da biblioteca escolhidos a esmo. A obra integra a mostra competitiva do 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil (2003).

Rua de mão dupla, que nasce do projeto de instalação para a 25ª Bienal de São Paulo e se converte em longa-metragem, registra ações organizadas a partir de um jogo: duplas de pessoas que não se conhecem trocam de casa simultaneamente por 24 horas, e usam câmeras para compor, a partir do que encontram, uma idéia de quem é outro. “Através de uma câmera de vídeo os participantes inserem sua personalidade (pelo olhar) na personalidade de um outro ausente. Solidões se (con)fundem em algum momento deste fluxo de olhar e ser olhado”, conclui o artista. Mais do que os pressupostos equivocados, a obra desvenda o que cada um revela de si ao manejar a câmera, no ritmo da procura, na escolha do que olha.

Se Nanofania (2003), que participa do 14º Videobrasil, remete de volta à bolha de Sopro, agora multiplicada e repetidamente desfeita, numa alternância cadenciada e plástica, o longa A alma do osso, do ano seguinte, caminha mais uma vez na direção do mundo do outro. Sem perguntas e sem pressa, o filme mergulha no universo de um eremita septuagenário que habita uma caverna no interior de Minas Gerais. Melhor exemplo do que a abordagem do diretor e a relação que estabelece com seu personagem - marcada pela ética e pelo “mistério” - são capazes de criar, o filme é um sopro de luz na cena documental e ganha os grandes prêmios nas categorias nacional e internacional do 9º Festival de Documentários É Tudo Verdade (2004). No ano seguinte, o evento volta a premiar o artista, pelo curta Da janela do meu quarto (2004), seqüência in natura captada de um quarto, ao acaso, e exemplo de sua crença na arte que não é feita, mas se faz sozinha.

Com Concerto para clorofila (2004), exercício poético e formal em torno de elementos da natureza, Guimarães é duplamente premiado no 15º Videobrasil: ganha o Prêmio Estado da Arte, do júri, e o Prêmio Videobrasil de Residência no Gasworks, que o leva de volta a Londres no fim de 2006 para realizar um projeto no complexo de estúdios e galerias. Com o cineasta Marcelo Gomes (Cinema, aspirina e urubus), co-editor de Clorofila, o artista conclui este ano o segundo filme da trilogia iniciada com A alma do osso, e no qual promove o encontro de dois andarilhos, um nordestino e um gaúcho, em Minas Gerais. Os dois filmes devem estrear comercialmente ainda em 2006, ao lado de Acidente, poema dirigido com Pablo Lobato e composto por 20 nomes de cidades mineiras.