O desejo de elaborar uma narrativa simbólica à altura das questões deixadas como herança por nosso passado colonial pauta a produção recente dos artistas do Sul global. Revista à luz das questões que se tornaram mais e mais prementes desde então, a cartografia desenhada pelas duas últimas edições da Bienal Sesc_Videobrasil serve de base ao recorte apresentado aqui. Partindo de uma convocatória aberta, mecanismo que permite perscrutar zonas não mapeadas da produção artística e revelar pesquisas ainda não chanceladas pelo sistema da arte, essas bienais viram emergir duas vertentes principais: as práticas artísticas que borram as fronteiras com a ciência e entre as ciências para ampliar nossas concepções de mundo, e o uso artivista do vídeo, por grupos minorizados, para reforçar práticas comunitárias, defender direitos ameaçados e reafirmar a utopia de reconstruir o mundo a partir de coletividades ligadas a identidade e afeto.

Questões como o impacto da colonização em nosso imaginário e na forma de conceber a relação entre humanidade e natureza perpassam boa parte das obras. Juntas, elas ensaiam uma reviravolta. Povos originários questionam posições tradicionais de poder e, ora apropriando--se da narrativa, ora articulando-se com olhares não indígenas, compartilham sua visão de um território poético, cotidiano e atual. A escravização e o sequestro da memória identitária que a acompanha são objeto de um ritual de reversão; e o passado mágico do Mali, encarnado na cultura do Dogon, ressurge como força criadora, capaz de mover minérios, ou na forma de espíritos das florestas que dançam para conduzir os mortos à terra de seus antepassados.

A necessidade de fazer reverberar em toda a sua potência histórias não hegemônicas dá ao vídeo um fôlego narrativo que antes era privilégio do cinema. Ao mesmo tempo, e quase na mesma medida, os artistas mobilizam o poder da imagem para criar espaços e metáforas. Um fragmento de oceano revela a memória das atrocidades de um longo regime autoritário; fantasmas em chamas simbolizam o que resta de uma cultura devastada pela guerra; e um bando de vacas, contidas por uma cerca, nos acossa – ou nós, a elas. 

Não surpreende que uma produção pautada pela ideia de resistência e pela vocação política floresça em um momento de retrocesso e incerteza. A potência da arte que emerge do Sul já não pode ser ignorada pelo circuito internacional, nem se relativiza a importância dessa perspectiva em um concerto global. Como as bienais internacionais que buscam desenhar um panorama mais diverso da produção global, nossa ambição é devolver a arte à sua dimensão crítica. Colocadas em contato, as inquietações dos artistas de regiões de passado colonial não só dramatizam o percurso dessa construção histórica, mas também nos indicam outras formas de estar no mundo.