Curadoria convidada |

O 17º Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil abre-se a todas as manifestações artísticas, dando curso a sua progressiva aproximação com o campo das artes visuais. A mudança, que torna o Videobrasil o primeiro festival brasileiro de arte contemporânea, é uma etapa expandida de um processo intuído não apenas no âmbito do Festival, mas também das ações da Associação Cultural Videobrasil, em parceria com o SESC. Em 25 anos dedicados a mapear, promover, difundir e divulgar a produção de vídeo – brasileira e, mais tarde, de todo o eixo geopolítico do Sul –, fomos parte ativa tanto da conquista de um circuito para o meio quanto de suas mudanças de peso e de papel, como ferramenta e manifestação, no cenário contemporâneo.

A ambiciosa exposição Seu corpo da obra, primeira individual de Olafur Eliasson na América Latina, sublinha de forma contundente, e muito feliz, a mudança de escopo do Festival. Fruto de uma poética intrincada e de uma investigação ampla, que envolve questões das ciências e da filosofia, a obra de Eliasson nos lembra constantemente de que as práticas artísticas só se completam, de fato, na fruição do público. As experiências que propõe tratam da exploração das sensações e visam o diálogo aberto com o público, questionando a preponderância do objeto sobre o sujeito e convidando o espectador a perceber-se construindo a obra. Esses aspectos tornam o trabalho de Olafur Eliasson paradigmático – uma experiência transformadora da arte contemporânea.

Conduzida pelo curador convidado Jochen Volz, Seu corpo da obra abraça São Paulo, descrevendo um percurso que tem como vértices alguns de seus espaços mais significativos, tanto do ponto de vista da fruição da arte quanto de uma arquitetura que gera campos potentes para a experiência. A releitura desses espaços e das tradições arquitetônicas que eles representam – notadamente, o modernismo brutalista e engajado de Lina Bo Bardi e Paulo Mendes da Rocha – é o presente adicional de Eliasson para a cidade.

As relações que o artista estabelece com as ideias que constroem o SESC Pompeia, o SESC Belenzinho e a Pinacoteca do Estado – e, de forma menos explícita, mas não menos sensível, com a vertente da arte contemporânea brasileira que supõe a presença de um sujeito cocriador da obra, personificada sobretudo em Hélio Oiticica – são o objeto primordial deste livro. Primeiro nesse formato editado no Brasil sobre a obra de Eliasson, ele reúne ensaios que reverberam e aprofundam as conexões geradas no contexto da exposição, expandindo no tempo o efeito de sua passagem e contribuindo para o pensamento sobre a relação entre arte e cidades.

Outro encontro incitado pelo Festival, e registrado aqui, resulta numa proposição que temos orgulho de comissionar: a obra Sua cidade empática, instalação na qual Eliasson se serve, para alimentar experiências relacionadas ao fenômeno conhecido como afterimage – a retenção de cores e formas pela retina exposta à luz –, de imagens de São Paulo captadas pelo olhar particularíssimo do cineasta brasileiro Karim Aïnouz. Criadores com pontos de aproximação importantes, os dois artistas colaboram, ainda, em um novo filme da série Videobrasil Coleção de Autores, com lançamento previsto para 2012. O filme tem como objeto a obra de Eliasson e será dirigido por Aïnouz, a convite do Videobrasil.

A arte propicia o enriquecimento da experiência humana, por meio de vivências sensíveis, e revigora olhares acerca do momento em que vivemos. Parceiros desde 1992, o SESC e a Associação Cultural Videobrasil promovem o encontro da diversidade de expressões, ao mediar modos distintos de perceber e conceber as experiências do olhar.

Solange O. Farkas
Presidente da Associação Cultural Videobrasil e curadora geral do 17º Festival
Danilo Santos de Miranda
Diretor Regional do SESC São Paulo

Artistas

Obras

Texto de curadoria Jochen Volz , 2011

Introdução

Seu corpo da obra, primeira mostra individual de obras do artista islandês-dinamarquês Olafur Eliasson na América do Sul, abarca três locais de exposição em São Paulo, como parte do 17º Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil. Eliasson concebeu várias das instalações da mostra em reação direta à cidade, e às situações arquitetônicas e funcionais que caracterizam as instituições-anfitriãs: SESC Pompeia, Pinacoteca do Estado de São Paulo e SESC Belenzinho.

Com Seu corpo da obra, Eliasson insere deliberadamente suas esculturas e instalações em situações espaciais que são marcadas pela ambiguidade entre interior e exterior. No SESC Pompeia – uma antiga fábrica de tambores com áreas internas e externas, galpões abertos e ruas, transformada em centro cultural pela arquiteta Lina Bo Bardi numa obra que se estendeu de 1977 a 1982 –, as obras de Eliasson dialogam com os aspectos públicos do aprendizado e do lazer na cidadela, uma cidadezinha dentro da cidade. Seu caminho sentido, Hemisférios compartilhados 1-6 e Seu corpo da obra, todas de 2011, assim como Waterfall (Cachoeira), de 1998, e The structural evolution project (Projeto de evolução estrutural), de 2001, correspondem de modo sutil aos humores, ritmos e objetivos diversos com os quais os usuários compartilham, pacificamente, os espaços coletivos do SESC Pompeia: a Área de Convivência, um galpão versátil que oferece equipamentos de leitura e estar, uma biblioteca e áreas de exposição, além de espaço para o lazer e a contemplação; e o Solário Índio, um deque de madeira usado para banhos de sol. Na Pinacoteca, Eliasson usa o espelho como ferramenta óptica e se serve da geometria para tratar de modos de perceber e dialogar com a arquitetura do prédio, clássica, mas incompleta, retrabalhada pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha em uma intervenção célebre. Microscópio para São Paulo, de 2011, transforma o primeiro pátio da Pinacoteca em um caleidoscópio gigantesco, acessível por duas das pontes introduzidas por Rocha para criar uma circulação alternativa pelo prédio. No Octógono, o espaço central do edifício, Eliasson instalou Take your time (Tome seu tempo), de 2008, exibida pela primeira vez na mostra homônima do artista no Museum of Modern Art e no P.S.I Contemporary Art Center, em Nova York. Esfera de luz lenta, no vestíbulo do museu, e Seu planeta compartilhado, no Belvedere, ambos de 2011, são trabalhos novos, desenvolvidos para a exposição na Pinacoteca. E, no recém-inaugurado SESC Belenzinho, Eliasson apresenta Sua fogueira cósmica, 2011, uma projeção de luz de mudança contínua em uma galeria que parece estar explicitamente afastada da área de entrada do prédio, animada e multifuncional, que fica logo a sua frente.

A exposição é uma introdução de amplo alcance à produção artística e à pesquisa de Eliasson, compreendendo de obras do início de sua carreira a vários projetos novos, criados especialmente para São Paulo. Entre estes últimos está Sua cidade empática (2011), criada em colaboração com o cineasta brasileiro Karim Aïnouz e exibida no SESC Pompeia. Um desenvolvimento das experiências anteriores de Eliasson com o fenômeno da pós-imagem, ou afterimage, o filme consiste em sequências de projeções de cores que criam, no olhar do espectador, uma pós-imagem no tom complementar. Sua cidade empática conta com imagens em movimento em preto e branco, superpostas às formas mutantes vermelhas, verdes e brancas. Esses clipes foram filmados por Aïnouz em diferentes locações sobre e sob o Minhocão, conhecido elevado paulistano, e sugerem passagens alternativas que atravessam a cidade.

No centro da pesquisa artística de Eliasson estão os processos de percepção e construção da realidade. Obras que incorporam leis conhecidas da física, da neurociência ou da óptica convidam o espectador a experimentar fenômenos naturais como neblina, luz, cor e reflexo. Apesar de suas instalações geralmente começarem como montagens para experiências, Eliasson se interessa menos no aspecto científico desses experimentos do que no engajamento ativo do espectador em sua interpretação, por meio do corpo, dos sentidos e do conhecimento. Seu trabalho deixa claro que boa parte do que percebemos não tem existência física, exterior, mas, na verdade, dá-se no âmbito do nosso sistema sensorial e no cérebro. Os filtros azul e amarelo de Seu corpo da obra, por exemplo, fundem-se em verde apenas em nossa retina, não no espaço. Do mesmo modo, em Sua cidade empática, a consciência de nossa atividade visual real casa-se com o reconhecimento de lugares de São Paulo; dessa maneira, vemos que nossa autopercepção está unida à percepção daquilo que nos rodeia. As instalações de Eliasson funcionam como ferramentas que modificam nossa visão do mundo, e o prazer lúdico de seu trabalho consiste, em última instância, em nada mais do que a alegria de perceber, aprender e compreender a nós mesmos.

Seu corpo da obra foi concebida como uma experiência única, na qual as impressões se acumulam e convergem no corpo do espectador que vê seus três “capítulos” diversos, no SESC Belenzinho, no SESC Pompeia e na Pinacoteca do Estado. Mas, no caminho entre um e outro, seguindo a geografia temporária que a exposição traça para São Paulo, a pessoa é lançada de volta à realidade e a sua própria vida, cheia de responsabilidades e decisões a tomar – fatores essenciais na vivência da arte.

Pelo caminho, pode-se encontrar, ao acaso, uma série de intervenções sutis espalhadas pela cidade. Your new bike (Sua bicicleta nova), 2009, por exemplo, consiste em uma série de bicicletas modificadas, com as rodas substituídas por espelhos, que foram estacionadas e atadas a postes e outros equipamentos urbanos. As bicicletas são um projeto em curso, iniciado em Berlim em 2009. Outras intervenções podem aparecer pela cidade ao longo do decurso da exposição; elas podem ter permanecido ali ou apenas ter existido temporariamente, por alguns momentos, durante as visitas preparatórias de Eliasson a São Paulo.

Este livro é parte da exposição, e não meramente seu registro. É um retrato do processo de aproximação de Eliasson com São Paulo; inclui séries fotográficas retratando as pancadas de chuvas de verão, lojas de luminárias da rua da Consolação e edifícios públicos que capturaram o interesse do artista com seus espaços radicais de concreto, que abrigam escolas, museus e centros comunitários. Também há imagens dos experimentos que Eliasson fez com espelhos nas ruas de São Paulo. Essas séries não têm caráter documental; elas são o resultado da investigação que o artista realizou sobre a cidade e sobre as maneiras como ela é percebida e contextualizada, investigação que serve de matriz para o desenvolvimento de seu trabalho.

No âmbito internacional, poucos artistas, na última década, detiveram-se de forma tão explícita no papel do espectador como coprodutor da obra de arte, um conceito que vem prevalecendo na produção brasileira desde os anos 1960. Menos artistas ainda conseguiram, de forma tão articulada, fundir a fenomenologia e a noção de conscientização individual e coletiva, e o princípio de consciência ética e política no âmbito da sociedade. Guilherme Wisnik e Lisette Lagnado, acadêmicos e críticos de São Paulo, contribuem com sua visão muito particular da produção artística e da pesquisa de Olafur Eliasson. Com mais de cinquenta catálogos e livros publicados no mundo todo ao longo dos últimos quinze anos, esta é a primeira publicação sobre Eliasson produzida na América do Sul. Espero que ofereça o estímulo inicial para uma reflexão enriquecedora sobre sua obra, em diálogo – ainda que, talvez, partindo de polos geográficos e conceituais opostos – com o contexto da arte contemporânea brasileira e latino-americana.

VOLZ, Jochen (org). Olafur Eliasson: Seu corpo da obra. São Paulo: Associação Cultural Videobrasil/Edições Sesc SP, 2011, p. 35 - 39.

Texto crítico Lisette Lagnado, 2011

O que torna um espaço produtivo?

"O telefone, naquela época, ainda não era de uso tão corrente como hoje. E, no entanto, o hábito leva tão pouco tempo para despojar de seu mistério as forças sagradas com que estamos em contato que, não tendo obtido imediatamente a minha ligação, o único pensamento que tive foi que aquilo era muito demorado, muito incômodo, e quase tive a intenção de fazer uma queixa. Como nós todos agora, eu não achava suficientemente rápida nas suas bruscas mutações, a admirável magia pela qual bastam alguns instantes para que surja perto de nós, invisível mas presente, o ser a quem queríamos falar e que, permanecendo à sua mesa, na cidade onde mora (no caso de minha avó era Paris) sob um céu diferente do nosso, por um tempo que não é forçosamente o mesmo, no meio de circunstâncias e preocupações que ignoramos e que esse ser nos vai comunicar, se encontra de súbito transportado a centenas de léguas (ele e toda a ambiência em que permanece mergulhado) junto de nosso ouvido, no momento em que nosso capricho o ordenou."

Marcel Proust, Em busca do tempo perdido1

I

Digamos que o leitor não tenha sequer lido a linha biográfica: “ Olafur Eliasson, artist, born 1967 in Copenhagen”.

Para quem procura informações, a página do site oficial do artista oferece algumas imagens, sob uma tarja branca indicando os projetos atualmente em curso2. E todas revelam uma paisagem urbana com nomes de cidades que evocam um repertório de lugares distantes da linha dos trópicos: Aarhus, Kiev, Harpa3, Berlim, Kanazawa. Somente a última foto destoa da série e reproduz um animal – se houver tempo, será comentada nas considerações finais (já deixo aqui uma observação: o bicho tem pelo mesclado, preto e branco, e aparenta-se com Dolly, ovelha geneticamente manipulada)4.

Há um documentário de oitenta minutos por JJ Film que abre com o artista lançando a seguinte interpelação: O que torna um espaço produtivo?5 Antes de levar adiante a projeção do filme, fiz uma pausa para soltar o parafuso do enunciado e explorar uma primeira dobra: o que estaria em questão, o que tal pergunta mostra?

Decerto a dúvida, além de figura retórica infalível para mobilizar a atenção do ouvinte, transmite uma alta voltagem fenomenológica. Que tipo de “bem” o espaço estaria apto a produzir? Investigação típica do domínio da filosofia. Ela, que se ocupa do lugar da matéria desde a Grécia antiga, reverbera no contexto das ciências físicas e se estende até os limites do sistema solar.

Dois problemas devem logo ser antecipados: na origem da especulação (“O que torna um espaço produtivo?”), não se sabe ainda a finalidade – trata-se de conhecer? E, segundo problema: strictu sensu (dirijo-me aos puristas que zelam pelas disciplinas e categorias do conhecimento), Olafur Eliasson não é nem cientista, nem filósofo. Então vamos lá: como interrogar o espaço no âmbito da experiência artística?

II

A primeira lição de estética nos vem geralmente de forma inesperada, quando sequer está decidida a partilha entre literatura e filosofia. A juventude costuma conjugar as duas formas de linguagem como se fossem cara e coroa de uma mesma moeda. O nome de Maurice Merleau-Ponty ajuda a entornar a balança. Para muitos, a iniciação no campo da estética acontece com esse autor e é capaz de alongar-se uma vida inteira: percepção de uma experiência sensorial além do Cogito das palavras, na qual o sujeito ganha espessuras indefinidas, porém uma mais atraente que a outra. Sua escrita articula de tal maneira o sensível com o mundo objetivo que consegue dar uma multiplicidade de texturas onde parecia haver um corpo unidimensional. Essa descoberta de uma eloquência que clama por instâncias não verbais (faz-me lembrar de alguns poemas de Fernando Pessoa) aumenta a porosidade da percepção.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, não haveria uma única tônica em destaque, mas várias, simultâneas e não excludentes: a realidade visível e sensível, material e imaterial, contemplando mútuas influências (e separações) entre natureza e tecnologia. Em Merleau-Ponty, a ideia de um ambiente provido de uma membrana transparente em sua volta chega quase a dispensar a metáfora, tão fina é a película que separa o mundo real do sujeito. Ouvindo Olafur Eliasson, pergunto-me se seremos brindados, ou não, com alguma pista que revele a presença da intuição no método. O dedo continua na tecla pause, suspendendo mais um pouco o fluxo discursivo do artista. Enquanto não o deixo falar, meu pensamento voa em direção ao “trabalho abstrato” (Karl Marx). O que torna o espaço “substância criadora do valor”?

Mania tendenciosa de introduzir termos de economia política – gritam os formalistas que acreditam ser possível isolar a dimensão estética na pergunta de Olafur Eliasson.

Entretanto, a inteligência criativa negocia-se no mercado tal qual um produto. Se pudesse, o regime capitalista eliminaria o grau de incerteza que ainda perdura a respeito e dominaria até a energia instintiva de produtividade. Esse processo está em curso, ignorando o diagnóstico de Herbert Marcuse em Eros e civilização, e os intangíveis efeitos em matéria de subjugação da consciência humana. Nada poderá reverter perdas de sensibilidade, apenas pequenas lutas contra a ação destruidora do espaço total.

III

Descobre-se, por outros itinerários sugeridos na homepage, que Olafur Eliasson escolhe inserir suas obras em pontos que concentram uma tensão entre arquitetura e urbanismo, no cruzamento entre a escala humana e multidões. De vinte anos para cá, os procedimentos que adotou deixaram o espaço interior para o exterior, a clássica observação da uma janela iluminada (Window projection, 1990), e passaram de um ambiente doméstico para áreas que requerem aparatos mais complexos.

Ora, se o dispositivo da montagem da obra determina a experiência da arte, onde (em quem) está a criação? O estúdio deve estar equipado com aparelhos que o habilitam a alcançar a matéria das estrelas, penso eu, antes de verificar que participam da equipe atual cinquenta funcionários técnicos, entre cientistas e profissionais do sistema da arte.

A eventualidade de um anexo correlacionado ao Institut für Raumexperimente (Instituto para Experiências Espaciais), dirigido pelo próprio Olafur, acende uma recordação recente. A última vez em que deparei com um currículo pessoal mencionando um laboratório foi com o LIC de Sergio Bernardes, Laboratório de Investigações Conceituais, cuja missão consistia em integrar o Sistema Solar, o Sistema Homem e o Sistema Terra6. Excentricidades à parte, os experimentalistas carregam a pecha da falta de objetividade e precisão. Supondo que seja verdade (coisa que não é), que tipo de disfunção (benéfica) extrair de combinações heteróclitas?

A iniciativa era tão fora do comum que seu proprietário acabou inventando um órgão paraestatal e queimou fortunas em prol de um trabalho científico sem aplicações imediatas. Insatisfeito com uma profissão restrita ao atendimento da alta burguesia, o arquiteto investiu em projetos voltados à qualidade de uma inelutável urbanização da vida cotidiana. Nesses tempos, também, o ambiente era propício a utopias, Brasília despontando no horizonte. O autor do pavilhão brasileiro na Expo de Bruxelas de 1958 não poupou esforços afim de projetar o que chamou de “primeira civilização tropical”7. Só revertendo a intervenção do homem sobre o curso das águas, pleiteava, seria possível “resgatar o papel histórico dos rios – dos caminhos da civilização”. Para transformar um vasto sertão em bacias hidrográficas, implantar uma malha de aquedutos e imaginar a metrópole do futuro, foi preciso traçar um programa ambiental por meio de um escritório de arquitetura, misto de laboratório de investigações científicas, políticas e filosóficas, oficina de artista e instituto de pesquisa do meio geográfico-social.

Mesmo com a promessa de distribuir riquezas nacionais com graus de participação e oferecer soluções para diminuir o custo de transporte de carga e de passageiros, a fala “desenvolvimentista” de um Laboratório imerso em pleno capitalismo selvagem e no auge da Guerra Fria constituía uma temática tensa. Agrada-me, contudo, essa mistura entre ciência e delírio, enredados na busca de uma alternativa “própria e original” para um continente não hegemônico; a predisposição para a discussão coletiva, reunindo colaboradores de áreas distintas; a ingerência de um grupo menor sobre assuntos de um país, sem receio de extrapolar linhas de expertise, em suma: ideias sem certificado de origem nem garantia, alimentando o sonho acordado de uma força que não precisa de autorização para manifestar o tempo que há de vir.

IV

A era espacial propulsionou a representação de viajantes cósmicos flutuando sem gravidade. É claro que teve repercussões no imaginário artístico, independentemente de seu domínio das leis do universo. Mas artista nenhum precisa dominar a teoria da relatividade geral para integrar em sua vida o significado do contínuo espaço-tempo. Isso também vale para os críticos, colocados no lugar de “sujeito suposto saber”8. A título de exemplo, o “Manifiesto Blanco” de Lucio Fontana (escrito em Buenos Aires, 1946) exerceu um papel decisivo no processo formativo de várias gerações e, no meu caso, uma vez livre da pena imposta por símbolos (incompreensíveis), pude transitar com menos precariedade por noções como campo inclinado, energia cinética, potencial ou elástica.

Na linguagem da arte, o “tetradimensional” (ou “arte integral”) não perde seu caráter incomensurável, mas se autoexplica por meio do rasgo da tela de Fontana: “A matéria, a cor e o som em movimento são os fenômenos cujo desenvolvimento simultâneo integra a nova arte”9. O mesmo pode ser dito do deleite estético que toma o visitante quando este adentra os penetráveis sonoros concebidos por Jesús Soto, artista que se serviu de efeitos óticos (movimento e luz) para realizar a integração do tempo na obra10. Em termos pedagógicos, seu “quadrado que vibra” desmonta a aridez de um curso de geometria sem abrir mão da magia de um certo enigma suspenso no ar.

E assim poderíamos nos entregar durante horas à brincadeira de levantar as melhores obras para esclarecer fórmulas que tornam impalpável a física.

É evidente que ficam fora de cogitação dois cenários perniciosos à arte: a ilustração científica, em que o objeto está meramente a serviço de uma didática, e as obras cuja mensagem se esgota na manipulação da aparelhagem tecnológica. Se a instalação sobrepõe a complexidade da mídia sobre o significado político-poético da obra, estamos diante de um truque. Esse equívoco é recorrente quando a tecnologia usada ainda tem pouco tempo de existência – de repente, vem-me à memória uma mostra primária de holografia que vi em São Paulo no início dos anos 1980.

Imagens que encontro agora no site de Olafur Eliasson alternam projetos híbridos de mundo natural e artificialidade, luz, brilho e sombras, nevoeiros e espelhos, arco-íris, poliedros, cristais … Tudo o que vive – planta, bicho11, homem, mulher – além de apto a se multiplicar, produzir um outro simétrico, está apto à produção de um si-mesmo. Seu verdadeiro significado, a questão identitária, foi escamoteada, de fato, pela figura do clone, mas esse personagem não importa aqui. Dentro da pergunta inicial, havia, portanto, um grau implícito de consciência reflexiva: o que torna um espaço produtivo requer também uma interioridade.

O reconhecimento desse valor desconhecido até aqui me obriga a levar em consideração uma inesperada natureza subjetiva. Deduzo que a compreensão do espaço, na perspectiva de Olafur Eliasson – influente nome da arte contemporânea que o público brasileiro poderá conhecer melhor graças à mostra Seu corpo da obra que será composta por várias exposições simultâneas em São Paulo12 –, depende de uma troca. Sem uma reciprocidade entre exterior e interior, objetivo e subjetivo, o espaço não respira, não tem forma nem performa. A informação permite soltar a tecla pause e ouvir mais um pouco de uma fala que já consegui isolar.

V

A pergunta sobre o espaço produtivo procurava salientar uma qualidade, arrancar-lhe uma mais-valia. Esse valor implícito é o da vivência coletiva – uma interrogação que se afasta da esfera das banalidades e coloca o dedo na ferida mais inflamada dos tempos atuais: a integridade do corpo social. “O que o torna o espaço provocador, excitante, envolvente, inclusivo, hospitaleiro e tolerante?” Tal série de adjetivos não poderia ser mais esclarecedora: enquanto os primeiros termos assinalam um sujeito participativo (provocador, excitanteenvolvente), os três últimos implicam agrupamentos maiores, povos ou nações (inclusivo, hospitaleiro e tolerante). Em qual hemisfério pretende ter relevância? “Quando faço uma coisa, quero que essa coisa esteja no mundo, de modo sincero, honesto e responsável.” Não resta dúvida quanto à vontade de conquistar ressonância política. Entretanto, o que dizer de seu alcance ideológico? Pensar em grupo indica uma necessidade e uma vocação para o jogo – e isso toma tempo13.

Olafur Eliasson reexamina as hipóteses consagradas pelo médico e fisiologista Étienne-Jules Marey sobre o corpo em movimento14. A exemplo do mestre, repete o ensinamento baseado em disponibilizar seu próprio estúdio-laboratório a turmas de estudantes. A atitude requer, é verdade, um instinto de comunicação. Em termos de eficácia, supera a vulgarização da ciência. Não é fácil desmantelar mal-entendidos que se repetem por força de hábitos aferrados a crenças. A visão newtoniana do espaço perpetua a convicção de que o ambiente que rodeia as coisas presentes no mundo é um receptáculo ou uma substância inerte – donde o senso comum que insiste em tratar espaço e atmosfera como sinônimos. Todavia, do ponto de vista de um artista, a atmosfera é uma resultante obtida a partir de experiências do corpo em contato com um espaço bem concreto: temperatura, cheiro, coloração, densidade, trepidação…

Sabe-se que Marey estudou sem trégua como filmar uma percepção invisível a olho nu. A decomposição do movimento lhe deu condições de aumentar a capacidade sensorial do olho, ou seja, ampliar a visibilidade do mundo exterior. É como se o órgão da visão lograsse enxergar uma parcela até então oculta, porém o faz sem deslizar para o campo da metafísica. Ao contrário: a investigação não saiu um segundo da realidade quando questionou os malditos limites dos nossos órgãos transmissores-receptores. A façanha dependia da dissecção do instante: dissecar com intenção de ampliar o elemento desertor. Era indispensável que aquilo que passa batido sem deixar vestígios fosse flagrado na sua efemeridade e ausência de norte. Isso confirma outras declarações do artista em busca de uma fenomenologia da paisagem15: no campo da cultura, as janelas do museu portam-se como uma moldura, “e você olha através do enquadramento para ver o quadro do quadro do quadro…”16.

Mas o que pode ser “anterior” e “exterior” à reflexão? O que nos dizem nossos sentidos seria de uma ontologia pré-reflexiva, que antecede a linguagem verbal e instituições (arte e ciência)?

VI

Se o cartão-postal ilustra um monumento memorável, a imagem da arte do segundo milênio tem data e lugar exatos para os frequentadores de museus: 16 de outubro de 2003, Londres, Turbine Hall, Tate Modern, The weather project. De lá para cá, os registros na internet dessa instalação ultrapassam várias centenas de milhares de ângulos, visões e perspectivas, nenhum igual ao outro, e, no entanto, todos igualmente extraordinários e impactantes. A grande imprensa não hesitou em associar o museu-templo com o Templo do Sol, ventre de ouro sagrado do império dos incas.

A sociedade do espetáculo gerou a sociedade da distração, onipresente na agenda educativa. Como garantir inscrições de conhecimento na civilização do zapping e assegurar um ganho de experiência, se além dos 140 caracteres a atenção foi programada para autodestruir-se? Até que ponto a distração que marca o tempo do agora tem alguma analogia com a noção de “distração” (Zerstreuung) de Walter Benjamin?

Assim como as caixas do sabão em pó Brillo expostas na vitrine de uma galeria nova-iorquina sinalizam ao crítico Arthur Danto que 1964 é a hora de mudar de paradigma, o The weather project também veio sancionar novas formas de pensamento. A cada um, sua revolução. Meio século atrás, os produtos de Andy Warhol foram necessários para abarcar a última modalidade de indistinção entre arte e não arte, objeto de arte e artigo para limpeza, entre o lugar onde é possível fruir, da arte, e o espaço destinado a consumos de necessidade básica, galeria e supermercado, apartados por uma linha moral. Digno de um jogo de mestre, o The weather project desatou a rigidez da era das exposições museológicas e reinventou noções que se achavam perdidas ou em declínio: o encanto pela arte, pela beleza, a contemplação, a duração, a arte como plano de imanência. “How does light define space? How does it influence the way we experience the world?” (Como a luz define o espaço? Como influencia nossa maneira de ter uma experiência do mundo?17)

Não estou escrevendo aqui sobre este projeto em particular e nem pretendo trazer à tona a farta bibliografia que já gerou, mas o que me interessa abordar diz justamente respeito a uma escala de fruição prazerosa que não consigo encontrar em outro exemplo tão contemporâneo. Todo discurso é um enredo artificial para escapar da balbúrdia e, necessariamente, um ardil para dissimular conflitos. Qualquer que seja o campo em que nos situemos, o desacordo vigora. São partes inconciliáveis de uma única contenda: a impossibilidade de libertar a forma-arte de sua condição de mercadoria.

É bem verdade que ideias oriundas do capitalismo europeu, do início da década de 1920, continuam mobilizando imaginários, mas caberia, antes de evocar “personagens conceituais” como o flâneur, verificar o que o tempo presente ainda guarda em termos de semelhança com os “palácios da distração”. Até que ponto podemos enxergar no fluxo de visitantes da Tate Modern as massas que afluíam para os majestosos cineteatros na Berlim de Siegfried Kracauer?

VII

Gostaria de falar do jogo e da distração na sociedade tecnológica e da artificialidade da aura. Em outra entrevista (Berlim, 6 de julho de 2009), Olafur Eliasson conta que desde o início de sua carreira, mesmo jovem e ainda inseguro, uma certeza estava posta: o interesse na desmaterialização do objeto artístico18. O imaterial, é conhecido, inibe a arte-mercadoria, arte-fetiche, arte para colecionadores: chega de fabricar objetos. Mas será possível conceber uma “aura” a despeito da desmaterialização do objeto?

A experiência da “aura” nunca mais foi a mesma depois do ensaio engajado de Benjamin; nem é o caso de comparar madonas com meninos em retábulos e cartazes da revolução russa. Um impacto segue outro na teoria estética, e cada um de seus desdobramentos traduz um instante de verdade restrito. Esta é a definição do ritmo inerente à modernidade. E não há melhor bode expiatório que a cultura de massa quando se trata de vilipendiar a arte que se rende à espetacularização. Ora, The weather project não construiu sua reputação em cima da irrealidade nem da alienação, já que o mecanismo que permitiu a montagem esteve posto a nu, e o público pôde ter acesso à desmistificação dos efeitos mágicos de uma grande mise-en-scène.

Toda vez que um artista adota uma linguagem que ainda não consta em catálogo, a análise volta para o mesmo lugar. Isso significa que persistimos no erro de pesar produtos culturais fabricados hoje com a mesma balança usada para avaliar o “aqui” e “agora” de um pequeno óleo sobre madeira, pintado entre 1503 e 1506, medindo 77 centímetros por 53 centímetros, atribuído a Leonardo da Vinci e exposto no Musée du Louvre.

Não se trata de invocar a inocência da arte. Ao contrário, proponho reler duas frases de Paul Valéry datadas de 1934 (“A conquista da ubiquidade”, Peças sobre a arte): “Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo são, há cerca de vinte anos, o que sempre haviam sido. É de se esperar que tão grandes novidades transformem toda a técnica das artes, agindo assim sobre a própria invenção e chegando mesmo, talvez, a maravilhosamente alterar a própria noção de arte”19. Interessante observar o contexto da citação acima: Benjamin a coloca para preceder seu preâmbulo ao ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Tampouco cabe depreciar o ingresso de novos formatos, aplicativos para smartphone, tablet etc., um sistema inventivo e sustentável de pirataria. 

Ora, não somente o conselho de Valéry está longe de ser efetivamente revisitado a cada vinte anos, como o “capitalismo continua conduzindo o jogo”, e a indústria cultural não prestou nenhum serviço à Revolução. O que resta a fazer para evitar a lata de lixo? A problemática aberta por Benjamin deve ser revista, sob risco de servir um novo totalitarismo; as atas do processo estético na era digital exigem uma outra reviravolta, mas quem se arrisca na pirueta? E de que adianta urdir outra teoria da recepção, se sua estrela oscila da lamentação dos tempos de outrora ao entusiasmo juvenil do futuro?

Olafur Eliasson desloca o interesse da recepção da obra para um convite à experiência da exposição. Sua demanda de um “terceiro ponto de vista” expressa a inadequação (ética?) dos artistas que constroem um mundo de artificialidade à guisa de compensação. Regime de sobreaviso aos teóricos da cultura diante das inovações tecnológicas20

Isto dito, as ferramentas intelectuais que validam a arte feita hoje não tomaram conta por completo da temporalidade instaurada na civilização do virtual e da imagem digital. Deixou desprotegida a questão da recepção, zona assombrada da cultura contemporânea, um lugar onde se digladiam judiciosos argumentos de boa parte do século XX.

Para mencionar os dois argumentos mais caros a Benjamin, a notícia impressa sobre papel e o audiovisual, o primeiro entrou em estado de entropia e o segundo explodiu a ponto de o mundo virtual tomar o lugar do real. Mesmo sem o hic et nunc dos templos profanos, há algo que continua sendo validado usando a lente (magnífica) de uma situação histórica completamente diferente. Seguindo essa lógica, teorizar uma percepção estética exclusivamente comprometida no momento presente segue protelado. Indefinidamente.

Qual a linha que define e separa o lazer do entretenimento? Assim como “distração” não é “divertissement”, lazer não é diversão. Escrevi sobre isso quando resolvi trazer o conceito de Crelazer de Hélio Oiticica para o presente, traçando analogias com duas obras de Dominique Gonzalez-Foerster, Park – A Plan for Escape (2002) e Cosmodrome (com Jay-Jay Johanson, 2001–2007), que relacionam arquitetura, ambiente e cinema21. O jogo, escreveu Oiticica, é a razão de ser das Cosmococas22. Lembro-me de mencionar uma distração necessária para que a criação pudesse se dar. Mas será que há distração sem espera? Sair do tempo da contemplação é sair do tempo da atenção. É abdicar da duração. E eu preciso dela, duração, porque não há distração que não seja esquecimento do tempo. 

Apenas dois anos separam o texto de Benjamin (1934) da redação de Homo ludens (1936) de Johan Huizinga. Enquanto o último precisou esclarecer como e por que, depois de homo faber e homo sapiens, “nosso tempo” merece recolocar em circulação a questão da ludicidade, o primeiro lança um alerta a respeito do declínio da experiência. Não há jogo que não seja entrega ao vazio e à liberdade.

VIII

Roland Barthes espera a entrega de uma carta; Sophie Calle recebe o anúncio do final de uma relação amorosa por e-mail ou SMS, tanto faz. O modelo contemporâneo da instantaneidade e da abertura da vida privada na cena pública acarreta outras estruturas de percepção e sensibilidade, expectativas, promessas e sabotagem da espera. A distração, atitude não contemplativa, é a morada do sonho, a margem imprescindível para a criação. O problema é quando os processos se invertem, e a criação passa a ser um apêndice da distração. O que se perde na teoria da distração é o componente da duração.

A tecnologia abalou e abala irreversivelmente as formas de expressão. Nesse sentido, a arte precisa incorporar a redução da distância comunicativa. Diminuir a velocidade, desacelerar o ritmo é uma das molduras pedagógicas válidas até agora para elevar impressões até a consciência. Inútil continuar abraçado a uma teoria cujos paradigmas que lhe serviram de base já não descrevem a realidade. Cada época acolhe seu lote de invenções técnicas. Simplificando muito: produção significa trabalho, e há tempo que o verbo “criar” pertence ao mesmo léxico que indústria, remix e cut & paste. Narrar a história, qualquer uma, condena seu sujeito ao descompasso. O tempo passa enquanto escrevemos. Para o historiador Eric Hobsbawm, aquele século iniciado com a Primeira Guerra Mundial (1914) terminaria com o colapso da União Soviética, em 1991. Talvez tenha se precipitado em determinar um fim aos sistemas totalitários e circunscrever a “era dos extremos”: a humanidade desconhece o que ainda a espera.

Sem a possibilidade de estender o instante (do latim instans, “iminente, próximo, vizinho, ameaçador, urgente”), não haverá inscrição corporal. E sem inscrição corporal, que tipo de registro (recepção) pensar (imaginar)? Entretanto, sem a espera, não há acontecimento. Apenas catástrofes. A questão da espera produtiva tem seus dias contados. Em Proust, “chegar mais cedo” ou “antes da hora” era determinante para o desenvolvimento do desejo de narrar. Quanta esperança e quanto temor concentrados em meia hora. O personagem podia estar pronto, mas ainda faltava o telefone tocar; talvez o aparelho sequer tocasse e fosse melhor ir-se e deixar de esperar; talvez tocasse e ninguém mencionasse o nome de Albertine.

Por fim, o que tanto surpreende na obra de Olafur Eliasson? Não se trata de sustentar que suas maiores obras possibilitam qualquer “resgate” de uma experiência estética dada como perdida: o que foi já foi e, mesmo que um semblante retorne, seu espectador há de ter outros atributos, antenas inimagináveis para guiá-lo. É preciso levar a sério mudanças de sensibilidade, como a perda da memória do contato físico. Sondar a profundidade do terreno revelará minas tão preciosas quanto explosivas. Como seria The weather project na cidade subtropical e desértica de Lima, em comparação a Londres, onde a umidade também alcança picos elevadíssimos?

Anacrônico

Mas, Olafur, será que poderia ser diferente? Você postularia uma percepção destituída de um contexto? Imagino que você tenha o desejo de compreender a origem da criação, que proporciona a bênção da fruta, da fartura e da coisa rara. Imagino que você se interesse pela biologia, com tantas metáforas relativas a organismos vivos, femininos e fecundos. Não é pouco para uma pesquisa artística. Contudo, não parece suficiente.

Seria fundamental garantir a continuação desse monólogo interior que já dura dois meses. E se a caminhada não desembocar em lugar algum? E se não for nada do que pensei, será como uma proposição científica que não encontrou prova. Será um fiasco? Por isso, a curiosidade – a sua, a nossa – é o método e o treino, uma engenharia em benefício do insólito, olhar atento sobre chispas de nada até que um mínimo se torne fenômeno.

1 Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, vol. 3, O caminho de Guermantes, tradução de Mario Quintana. Porto Alegre/Rio de Janeiro: Editora Globo, 1981, p. 100.

2 http://www.olafureliasson.net (acesso maio–julho de 2011).

3 Harpa não é uma cidade, mas, dentro deste ensaio, faz sentido que seja tratada como tal (http://en.harpa.is/about-harpa/in-house-operations/). Espero que a sequência do texto consiga justificar o argumento, quando chegar a hora do flâneur e quando o leitor avisado perguntar de Moscou, Paris, Marselha, Berlim ou Nápoles.

4 É a terceira vez que renovo o prazo de entrega deste artigo. Não queria abusar do recurso, tão fácil, tão comum hoje, de inserir conversações por e-mail, mas, não havendo mais tempo, copio a resposta que recebi: “Grey sheep is an ongoing project linked to the studio, expanding the studio’s activities through the initiation of a dialogue between associated artists and a local audience. The name refers to a type of rare Icelandic sheep”. (“Ovelha cinza é um projeto contínuo ligado ao ateliê, expandindo as atividades do ateliê e induzindo um diálogo entre os artistas associados e o público local. O nome se refere a um tipo raro de ovelha islandesa.”)

5 Olafur Eliasson. Space Is Process. Direção de Henrik Lundø e Jacob Jørgensen. Copenhague: JJ Film, 2010 (http://www.jjfi lm.dk/en/productions/art/olafur_eliasson/).

6 Para maiores informações, remeto ao texto de Lauro Cavalcanti, “Sergio Bernardes: um modernista a la deriva”. In: Lisette Lagnado (org.), Desvíos de la deriva. Experiencias, travesías y morfologías. Madri: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, 2010.

7 Cf. Paul Meurs. In: http://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.007/947.

8 “Sujeito suposto saber” (S.s.S.) é um conceito lacaniano que designa o lugar da transferência entre analisante e analista (Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 1964/1979). Não é a primeira vez que remeto à coincidência entre a tarefa do crítico/curador e a práxis analítica, por configurarem, ambas, experiências de construção (em conjunto) de uma interpretação (da obra, do contexto, do circuito expositivo-instituição). 

9 Reproduzido em: Dawn Ades, Arte na América Latina. São Paulo: Cosac & Naify, 1997, pp. 332–334.

10 Cf. Lisette Lagnado, “A invenção do Penetrável”. Revista eletrônica Trópico. São Paulo, 23/02/2005 (http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2535,I.shl).

11 Uma atitude humilde ante as limitações históricas da ciência (impossibilidades sempre provisórias) exige cautela diante da suposta incapacidade de autorreflexão imputada ao ser animal.

12 Cinco anos antes da mostra na Tate Modern, a obra de Olafur Eliasson esteve na 24ª Bienal de São Paulo (1998), onde recebeu comentários críticos pouco entusiasmados.

13 Cf. D. W. Winnicott, Playing and Reality. Londres: Tavistock Publications, 1971.

14 http://www.raumexperimente.net/marey-experimente.html.

15 http://www.projetsdepaysage.fr/fr/phenomenologie_du_paysage.

16 “Olafur Eliasson.” In: Hans Ulrich Obrist, Arte agora!: em 5 entrevistas. São Paulo: Alameda, 2006, pp. 41–64.

17 Cf. www.starbrick.info/en/research.html. 

18 “Mediating experience.” A conversation between Olafur Eliasson and Luca Cerizza, Berlim, 6 de julho de 2009. In: Olafur Eliasson TYT [Take your time].Vol. 2: Printed Matter. Colônia: Verlag der Buchhandlung Walther König.

19 Cf. Lima, Luiz Costa (org.). Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 209. “Ni la matière, ni l’espace, ni le temps ne sont depuis vingt ans ce qu’ils étaient depuis toujours. Il faut s’attendre que de si grandes nouveautés transforment toute la technique des arts, agissent par là sur l’invention elle-même, aillent peut-être jusqu’à modifier merveilleusement la notion même de l’art.”

20 Hans Ulrich Obrist, op. cit., p. 55. “Se estivermos atentos ao que nossos sentidos estão nos dizendo, nós podemos nos orientar. Acho que é uma questão de responsabilidade das instituições informarem que a apresentação e a exibição é uma mediação para os nossos sentidos. Se formos enganados sobre o que sentimos e acreditarmos que olhando para o vapor de dentro, por uma janela, temos uma verdadeira experiência de vapor, teremos um problema. Fica ainda pior quando se acredita que o som da música no walkman é o real som da rua, ou quando se confunde guiar um grande jipe com escalar uma montanha. Por isso é tão importante ver a si mesmo sentindo, ou sentir a si mesmo vendo, para observarmos nossas experiências a partir de um certo ‘terceiro ponto de vista’ – uma perspectiva dupla – para auxiliar a sensação de presença até mesmo em extremos níveis representacionais.”

21 Em Cosmococa e Cosmodrome, há uma ideia de transporte para um além do espaço expositivo, e a imaginação é o veículo-nave espacial. Cf. Lisette Lagnado, “Crelazer, ontem e hoje”. In: Caderno SESC_Videobrasil 03. São Paulo: Associação Cultural Videobrasil, 2007, pp. 50–59.

22 COSMOCOCA – programa in progress: obra concebida por Hélio Oiticica em parceria com o cineasta Neville d’Almeida como manifestação ambiental. A Cosmococa é constituída de nove “Blocos-Experiências” numerados com abreviação (CC1, CC2…); cada Bloco reúne um conjunto de slides a partir de capas de discos e pôsteres retocadas por linhas de pó branco sobre a imagem que serviu de base. A apresentação de cada CC se dá por meio de uma projeção sobre vários planos do ambiente, acompanhada de uma trilha musical, editada pelo próprio Oiticica, como se fosse um DJ. Instruções ao espectador completam cada Bloco. A participação é uma crítica ao formato estático do audiovisual.

VOLZ, Jochen (org). Olafur Eliasson: Seu corpo da obra. São Paulo: Associação Cultural Videobrasil/Edições Sesc SP, 2011, p. 161 - 183.

Texto crítico Guilherme Wisnik, 2011

O dentro que é fora. O outro que sou eu.

Este texto procura analisar a obra de Olafur Eliasson a partir de pares conceituais, como as esferas pública e privada, as dimensões da interioridade e da exterioridade, o confronto entre a defesa da identidade e o reconhecimento da alteridade, e as percepções da nitidez e da ambiguidade. A hipótese é a de que, na mão contrária à tendência que parece ser dominante hoje, a arte de Olafur elide essas dualidades, reportando-se a uma terceira dimensão conceitual na qual essas entidades duais, tornadas instáveis, são levadas a trocar de posição constantemente, assumindo as propriedades do seu par oposto. Tal deslocamento em relação aos cânones modernos ocidentais permite uma arriscada aproximação entre certas operações artísticas de Olafur Eliasson e alguns aspectos importantes do imaginário artístico brasileiro, presentes tanto nos trabalhos de artistas plásticos quanto nos de arquitetos, assim como na própria organização das cidades no Brasil. Esse é o ponto de partida para algumas associações cruzadas entre a arte de Olafur e o Brasil.

Espaço público ao revés

No seu Programa ambiental (1966), escrito dois anos após a formalização do Parangolé, Hélio Oiticica declara que “o museu é o mundo”, isto é, a experiência cotidiana, e propõe que os trabalhos de arte realmente vitais sejam expostos não em museus ou galerias, tampouco em praças ou parques, mas em terrenos baldios da cidade, como “uma obra perdida, solta displicentemente, para ser ‘achada’ pelos passantes, ficantes e descuidistas”1.


A materialização dessa proposta é a Bólide Lata-fogo2, que Oiticica descreve da seguinte maneira: “é a obra que eu isolei na anonimidade da sua origem – existe aí como que uma ‘apropriação geral’: quem viu a lata-fogo isolada como uma obra não poderá deixar de lembrar que é uma ‘obra’ ao ver, na calada da noite, as outras espalhadas como que sinais cósmicos, simbólicos, pela cidade: juro de mãos postas que nada existe de mais emocionante do que essas latas sós, iluminando a noite (o fogo que nunca apaga) – são uma ilustração da vida: o fogo dura e de repente se apaga um dia, mas enquanto dura é eterno”3.

Partindo desse exemplo, pode-se dizer que a recusa em atribuir uma dimensão edificante ao espaço público através da arte, no Brasil, não se resume à Bólide Lata-fogo, nem mesmo à obra de Hélio em um sentido geral, mas aparece como uma tônica em muitos dos melhores trabalhos feitos no país entre os anos 1960 e 70, tais como as “trouxas ensanguentadas” que Artur Barrio atirou ao Ribeirão Arrudas, em Belo Horizonte, em alusão à desova de corpos dos desaparecidos políticos durante a ditadura militar (Situação T/T, 1,1969–704), e as Inserções em circuitos ideológicos (1970), de Cildo Meireles, que substituem a noção de “público” pela de “sistema circulante” ou “circuito”.

Enquanto isso, o mesmo sentido de desertificação do urbano e da esfera pública é o dado que, pela negação, dá munição poética à arquitetura de vanguarda que começa a ser feita nos anos 1960 em São Paulo, quando a cidade, depois da inauguração de Brasília, torna-se o centro da produção arquitetônica do país. Construindo edifícios – sobretudo casas e escolas – na forma de caixas cegas de concreto armado e aparente, arquitetos como Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha partiram da aceitação amarga de que a cidade era um tecido caótico e decaído, porque dominado pelos interesses privados e irracionais da especulação imobiliária, entendendo que os edifícios exemplares que projetariam teriam de ser pensados, por oposição, como laboratórios de uma sociabilidade nova. Assim, negando visualmente a cidade, esses edifícios construíram-se, paradoxalmente, como pequenas cidades independentes, tanto por sua materialidade áspera – feita de concreto, asfalto e o ladrilho hidráulico usado em calçadas –, quanto pela lógica coletivista que rege a organização dos seus espaços internos, refutando qualquer noção de con- forto ou privacidade. A propósito disso, Lina Bo Bardi observou, em forma de elogio, que as casas de Vilanova Artigas não seguiam “as leis ditadas pela vida de rotina do homem”, mas, ao contrário, impunham-lhe uma lei vital, “uma moral que é sempre severa, quase puritana”6.


Em resumo, o que a arquitetura do chamado “brutalismo paulista” pretendeu, em seu momento mais aguerrido, foi urbanizar a vida doméstica, em uma operação oposta e complementar àquela de Hélio Oiticica, vivendo sua intimidade no interior da Whitechapel Gallery, em Londres (Whitechapel Experience, 1969). Pois o que esses arquitetos desejavam, no limite, era abolir o espaço privado e seus segredos, em prol de uma ideia cívica de vida inteiramente pública: a casa como um fórum da vida coletiva urbana, onde cada um tem a sua liberdade pautada pela liberdade do outro, pois as regras da ordem social controlam o arbítrio da subjetividade pessoal. Suas casas são, desse modo, absolutamente exteriorizadas, ainda que espacialmente introvertidas.

Diferentemente da Europa, mas também dos Estados Unidos – onde o valor público é uma herança da própria jurisprudência do país, e o comissionamento de obras de arte em espaço urbano é beneficiado pela porcentagem de impostos federais, estaduais e municipais –, no Brasil a norma “patrimonialista” de sociabilidade, herdada dos tempos da colônia, determinou uma permanente invasão da esfera pública pelos interesses privados. Daí a contestação, feita pelo escultor José Resende a propósito de uma comparação com a situação americana, de que uma peça colocada em espaço urbano, no Brasil, pudesse ser diretamente considerada como obra de arte pública. Diz ele: “Acho que o conceito de coisa pública não pode se definir através da simples presença do trabalho em um lugar público. Para a arte ser pública, é preciso que culturalmente também assim ela se efetive”. E completa: “É difícil definir o que seria realmente um trabalho de arte pública no Brasil. A música, por exemplo, sim, tem aqui esse caráter de domínio público. Para que a arte ganhe essa condição mais concreta de existência no Brasil, as instituições terão que se estruturar melhor”7.

Aqui, seria preciso lembrar, também, que a própria formação histórica das cidades brasileiras, através da colonização portuguesa, não seguiu planos abstratos que impusessem uma ordem pública como desenho regulador do conjunto urbano. Ao contrário da grelha cartesiana que organiza as cidades de colonização espanhola em torno de uma plaza mayor, no Brasil as cidades se organizaram mais a partir do protagonismo de certos edifícios singulares, e de adaptações particulares de seus traçados a terrenos acidentados, do que de um princípio regulador geral. Igualmente, suas praças raramente foram elementos geradores do conjunto, mas sim, ao contrário, espaços sobrantes na configuração irregular dos lotes – como os “largos”, por exemplo –, ou então evoluções posteriores dos adros, pátios e terreiros das igrejas8. São, portanto, espaços que não nasceram públicos, e que uma vez tornados públicos, apenas precariamente conseguem se manter como tal. Ao lado disso, e não por acaso, podemos identificar um histórico alheamento das cidades brasileiras em relação à presença da arte, que se espelha também em uma tímida “cultura pública” do meio artístico em questão.

Por todos esses motivos, uma cidade como São Paulo parece ser refratária à condição de hospedeira de trabalhos contundentes de arte urbana, talvez por não permitir que eles lhe ofereçam contraste possível. O que se deve tanto à sua escala, descomunal e agressiva, quanto à precariedade do seu crescimento acelerado, que dá à cidade um aspecto um tanto informe. Característica que já aparece na clássica definição dada pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss nos anos 1950, quando, para analisar São Paulo, observou que as cidades do Novo Mundo vão “do viço à decrepitude sem parar na idade avançada”9. Ao contrário do que acontece com as cidades europeias, para as quais a passagem dos séculos constitui uma promoção, no caso das cidades na América, a passagem dos anos representa uma decadência.

O interior da cidade fora

A obra de Olafur Eliasson é uma das grandes referências quanto à questão do fértil compartilhamento de interesses entre as artes plásticas e a arquitetura hoje, chegando, inclusive, a extrapolar muitas vezes a escala do edifício para atingir o âmbito urbano. Contudo, tomarei esse conhecido mote não para analisar o caráter arquitetônico do seu modo de trabalhar e organizar seu estúdio, tampouco a sua atuação direta em projetos de arquitetura10, mas para investigar os agudos embaralhamentos que promove entre as noções de interioridade e exterioridade, ou privacidade e publicidade – como fica evidente no título de sua recente exposição em Berlim: Innen Stadt Außen (O interior da cidade fora) –, apontando para uma reflexão original sobre o que seja a cidade e a esfera pública hoje. Nesse sentido é que procurarei traçar nexos entre a sua reflexão e o contexto brasileiro, partindo dos apontamentos feitos inicialmente.

Como dissemos, uma das grandes contribuições artísticas de Hélio Oiticica no final dos anos 1960 – e que influenciou a produção de artistas pelo mundo, como Vito Acconci11 – foi a criação de um curto-circuito entre os âmbitos públicos e privados, profanando espaços de vida coletiva e impessoal, como salas de museus e galerias, com módulos de vivência íntima: os seus Penetráveis. Proveniente de um outro contexto cultural, Olafur Eliasson vem a transgredir de forma potente essa mesma fronteira nos anos 1990 e 2000, sem que haja, no entanto, qualquer relação mais direta entre o seu trabalho e o do artista brasileiro. Essa transgressão, com efeito, não se dá através de uma prática vivencial, mas pela criação de ambiências enevoadas e jogos óticos de espelhamento, por meio dos quais os visitantes dos museus ou galerias se percebem simultaneamente dentro e fora desses ambientes, que se transformam em espaços complexos do ponto de vista da percepção.

Tal operação é complementada pelo seu reverso: derivas urbanas anônimas, em que outros efeitos de espelhamento parecem restituir, como que por absurdo, uma certa interioridade íntima na paisagem opaca da cidade. Refiro-me, por exemplo, às bicicletas com rodas de espelho que o artista espalhou por Berlim, como parte da exposição sediada no Martin-Gropius-Bau, e também em São Paulo. Ou, também, ao vídeo que nomeia a mesma mostra (Innen Stadt Außen), que acompanha o lento trajeto de uma caminhonete revestida por uma chapa de espelho pelas ruas da cidade. Espelho que, ao mesmo tempo em que esconde o veículo, vai refletindo o seu entorno, incluindo as copas das árvores e o céu.

Essa estranha troca de posição entre os espaços internos e externos dos edifícios e das ruas, em Berlim, é prolongada, ainda na mesma exposição, pelo assentamento de robustas placas de granito, típicas do calçamento da cidade, sobre o assoalho de madeira do espaço expositivo, no interior das galerias do museu. Atitude que ecoa, sutil e inversamente, a ação simultânea de espalhar cuidadosamente troncos de madeira pela cidade (Berlin driftwood, 2009–2010), não em praças ou locais em que se pudesse esperar encontrar trabalhos de arte, mas, ao contrário, em lugares anônimos e comuns, retirando propositalmente qualquer resquício de sacralidade dessas peças, que passaram a quase se confundir com meros dejetos urbanos. Sobre esse trabalho, Olafur observa que procurou gerar “pequenos diálogos friccionais” com os lugares, em situações nas quais os claros troncos coletados na costa islandesa pudessem ser percebidos como “limiares momentâneos”, oferecendo uma “sutil resistência às nossas tão pragmáticas e automatizadas relações com o entorno”12.

Essa dispersão algo situacionista da ação artística em escala urbana talvez tenha surpreendido quem esperasse ver em Berlim – a cidade que o artista escolheu para viver desde 1995 –, trabalhos mais monumentais, tais como New York City Waterfalls (2008). Tal sutileza anônima remonta, no entanto, a magníficas intervenções feitas por Olafur no final dos anos 1990, como Erosion (1997) e Green river (1998). Na primeira, realizada durante a 2a Bienal de Johannesburgo, o artista esvaziou um reservatório de água próximo ao lugar onde ocorreria a exposição de suas fotos, criando repentinos “rios” urbanos que se estenderam até mais de um quilômetro pela cidade, impactando o seu fluxo cotidiano. Na segunda, realizada em diferentes localidades, tais como o interior despovoado da Islândia e o centro urbano de Estocolmo, tingiu em segredo os seus rios de uma cor verde fosforescente, ativando uma poderosa dialética entre a sutileza da ação e a magnitude da escala13. Nesse rol, poderíamos citar ainda os vários trabalhos do artista com fumaça, iniciados com a instalação urbana Thoka (1995) no Hamburger Kunsthalle e seguida por Yellow fog (1998/2008), que foi apresentada originalmente em Nova York e posteriormente remontada em Viena como um trabalho permanente.

Pode-se afirmar, para efeito do argumento que estamos procurando desenvolver aqui, que essa opção por ações urbanas mais sutis e derivativas tem parentesco com trabalhos como a Bólide Lata-fogo de Oiticica, citada anteriormente. Por outro lado, a aparição incógnita desses troncos lisos no cenário urbano berlinense não contém qualquer conteúdo de “antiarte”. Pois, diferentemente do caráter marginal da Bólide Lata-fogo, que pretende existir numa dimensão alheia à do espaço público oficial – para Oiticica, mais uma imposição estéril do que um produto orgânico da sociedade –, os Driftwoods de Olafur Eliasson procuram criar diálogos sutis com lugares anônimos, porém públicos, de Berlim, desestabilizando a apreensão automatizada desses espaços de modo a revigorar um sentido de “comunidade”. Essa ação, com toda a sua sutileza e vocação à quase imperceptibilidade, só poderia existir em um lugar no qual a noção de “público” é um valor reconhecível e assumido coletivamente, como Berlim. Pois, caso contrário, romperia o limiar – ainda crucial – da distinção entre arte e vida, inviabilizando a ideia de fricção com a vivência cotidiana da cidade, que sustenta o trabalho.

Nesse sentido, parece-me que foi muito acertada a escolha de edifícios como o SESC Pompeia e a Pinacoteca do Estado para abrigar a exposição de Olafur em São Paulo, exatamente pelo caráter arquitetônico que esses edifícios têm, e pelo fato de serem belíssimos expoentes de uma arquitetura construída com atributos urbanos, como dissemos anteriormente. Instalada no antigo prédio do Liceu de Artes e Ofícios, projetado por Ramos de Azevedo em 1896, a Pinacoteca surge como um lugar reinventado por Paulo Mendes da Rocha, que cobriu os seus pátios internos com claraboias de vidro, e os atravessou com passarelas metálicas em alturas variadas, rompendo a rigidez da planta neoclássica original. Incorporados ao recinto do museu, esses antigos pátios, agora destituídos de esquadrias e janelas, tornaram-se espaços ambiguamente interiores, já que suas paredes envoltórias não deixaram de ser fachadas (agora nuas). Também o SESC Pompeia, uma antiga fábrica de tambores reformada e transcriada por Lina Bo Bardi, tem esse atributo de romper magistralmente a fronteira entre os espaços segregados e a cidade, organizando-se em torno a uma “rua” central que dá acesso aos vários galpões sempre animados. Apelidado com justiça pela arquiteta de “Cidadela da liberdade”, o edifício do SESC abriga em seu interior as maiores virtudes de um espaço genuinamente urbano: o uso variado, imprevisível e lúdico, que só pôde ser criado, no entanto, por um desenho muito nítido e rigoroso.

Dessa maneira, os trabalhos de Olafur Eliasson contracenam com o espaço urbano de São Paulo mediados pela intervenção urbanística, na escala do edifício, de dois grandes arquitetos. Com isso, ganham as necessárias molduras espaciais e institucionais a partir das quais a radical experiência ambiental que promovem pode vir a se efetivar no caso de São Paulo, destacando-se como algo reconhecível e transformador14.

A nitidez aparente das coisas

A poderosa troca de posições realizada por Olafur entre atributos dos espaços internos e externos, ou entre a ação do artista e a recepção do público – note-se que muitos dos títulos de seus trabalhos começam com pronome possessivo na segunda pessoa: “your” –, tem um sentido artístico contundente no mundo contemporâneo. Trata-se, como dissemos, de uma reflexão espacial que se formaliza de duas maneiras principais: por jogos de espelhamento ou pela criação de ambientes enevoados.

Um dos grandes problemas da experiência contemporânea do mundo é a excessiva nitidez com que ele se apresenta a nossa percepção. Em vários planos da vida, tudo a nossa volta parece nítido e destituído de ambiguidade: a sociedade multicultural se faz representar de forma horizontal e transparente através das reivindicações das minorias (étnicas, raciais, sexuais, de gênero); o espaço “liso” da internet abole barreiras físicas e temporais colocando todos os que têm acesso a ela em contato permanente, e não filtrado por qualquer jugo moral; e a intensificação da circulação das imagens na sociedade de consumo – que por sua onipresença acabam ocupando o lugar dos seus referentes reais – alude a um mundo sem fissuras, e que parece não ser mais passível de qualquer ação transformável por parte do sujeito, mas sim, apenas, de uma leitura passiva dos seus códigos de funcionamento. Acessibilidade, no caso, também quer dizer proximidade excessiva, que amplia a nitidez aparente das coisas.

Recuando um pouco no tempo, é preciso lembrar que no início do século 20 a arte moderna havia realizado uma ruptura radical com a sua história precedente, ao superar o dualismo entre realidade e representação, movimento no qual abandonou a antiga “aura” e assumiu a sua inserção mundana no mercado. Com isso, inaugurou uma compreensão nova do trabalho artístico, entendido então como um campo imanente e relacional, onde os conteúdos são mostrados em sua superfície, sem deixar resíduos simbólicos que fossem alheios ao domínio visual. Assim, no interior de cada obra moderna, essa realidade dessubstancializada e avessa a dimensões metafísicas passou a ser permanentemente atualizada em um campo de tensões formais – a chamada “superfície moderna” –, como elementos de um jogo visível, e de certa forma análogo à existência de uma sociedade convulsionada, onde as revoluções eram fatos corriqueiros. Quer dizer, na arte moderna, a realidade pareceu estar sempre acessível à manipulação e à transformação, daí sua força e, ao mesmo tempo, sua instabilidade.

Com efeito, a situação hoje é muito diversa daquela, se não oposta. Pois a construção dessa “superfície moderna” como um campo de tensões esteve muito baseada na ideia de se estruturar a formalização de um trabalho a partir do seu embate criativo com o mundo. Assim, a compreensão moderna do trabalho artístico como um “fazer estruturante”15 dependeu, em grande medida, da resistência da matéria para refrear o idealismo do espírito, que tenderia a dobrar as coisas pelo mero ato da vontade16.

É sintomático, a propósito disso, o fato de que a mudança na compreensão da arte, nas últimas décadas, acompanhe o declínio histórico da noção de trabalho – flexibilizado, e cada vez mais precarizado, no capitalismo tardio. Trata-se daquilo que Hannah Arendt qualificou de “erosão da durabilidade do mundo” em favor de um permanente consumo das coisas, que ela localiza na passagem do homo faber ao animal laborans como sujeito social por excelência17. E a perda de espessura e opacidade nas relações sociais suposta nessa passagem corresponde, no campo cultural, a uma autonomização dos significantes em relação aos significados. Essa é, segundo autores como Peter Bürger, uma das teses centrais do pós-modernismo, no qual os signos remetem apenas a outros signos, fazendo com que nos movamos horizontalmente em “uma infinita cadeia de significantes”18 sem lastro material – tal como acontece, no campo econômico, com a ascensão do capital financeiro. Como observou Rodrigo Naves, a propósito disso, com a instalação desse verdadeiro naturalismo do significante “não há lugar para qualquer tipo de prática que estabeleça vínculos entre experiência e imagem – e o mundo das aparências, simulacro de si mesmo, rodopia sobre seu eixo, autonomamente”19.


Para efeito da nossa discussão aqui, parece-me necessário entender a relação entre a ubiquidade da imagem na sociedade de consumo e a abolição da opacidade do mundo, ou da resistência da matéria, na sua inextrincável relação com a arte e com a noção de trabalho, às quais se vinculam também uma crescente descrença no fenômeno da percepção como instrumento de intelecção.

O irreal verossímil

Contrariando a tendência de se reduzir a arte a imagens irretocáveis e autônomas, Olafur Eliasson trabalha através de uma poética do embaçamento, nublando a nitidez do mundo através de instalações ambientais que terminam por questionar o caráter de verdade que costuma acompanhar essa percepção orientada das coisas20. Nesse sentido, ele se insere em uma tradição de artistas contemporâneos que, partindo de uma visão crítica da modernidade e do pós-modernismo, procuraram resgatar dimensões simbólicas na arte, retardando ou suspendendo o seu momento de significação e buscando, para isso, filiações muitas vezes externas à matriz do racionalismo iluminista ocidental.

Ao contrário do que ocorre na tradição do racionalismo moderno, as artes mais ligadas ao pitoresco e ao sublime costumam borrar os limites entre natureza e artifício, dando lugar a experiências artísticas que se desenvolvem de forma mais distendida no tempo. Essa dilatação da experiência, que não é propriamente formalizável, encontra, no entanto, uma bela tradução formal na imagem da névoa, ou da nuvem: um meio quase indefinível entre o material e o imaterial, e que, situando-se no polo oposto ao plano imanente da visão perscrutadora iluminista – onde as “luzes” são sinônimo de razão –, parece nos transportar a um plano transcendente, como em um céu que tivesse, surpreendentemente, baixado à terra.

De acordo com Lévi-Strauss, o nevoeiro é um elemento simbólico recorrente nas mitologias ameríndias, encontrando inúmeras variações sobre uma mesma estrutura narrativa ao longo de todo o continente. Assim, em vários dos mitos inventariados por ele na América, o denso nevoeiro que cai de repente e obscurece a visão dos seres (humanos e não humanos) é o véu que cobre por um instante a realidade, desencadeando uma situação a partir da qual as coisas se transmutam e trocam de posição. Em suas palavras, o papel do nevoeiro, nesses casos, é “alternadamente disjuntivo ou conjuntivo entre alto e baixo, céu e terra: termo mediador que junta extremos e os torna indiscerníveis, ou se interpõe entre eles de modo que eles não podem se aproximar”21. São muitas as situações em que Olafur usa a fumaça como “material” principal de suas construções espaciais, como no caso já citado de Yellow fog, mas também em Your natural denudation inverted (1999), constituído por uma coluna de fumaça sobre um espelho-d’água, no pátio interno do Carnegie Museum of Art, em Pittsburgh, para o qual se voltam salas envidraçadas.

Em 2001, Eliasson criou a instalação The mediated motion, no interior do Kunsthaus Bregenz, na Áustria. Feito em colaboração com o paisagista Günther Vogt, o trabalho reage à atmosfera de estímulos dada pelo edifício, projetado por Peter Zumthor, criando paisagens interiores. Trabalhando com a ideia de “movimento mediado”, Olafur estabelece um percurso ascensional no interior da austera caixa de concreto, criando diferentes ambientações em cada um dos quatro andares do museu, que passam por troncos de árvore com fungos, piscinas com plantas aquáticas e pisos de terra prensada, e chegam ao topo do prédio em uma sala enevoada, onde uma ponte instável se perde em meio a uma intensa neblina, levando o visitante um tanto desnorteado a terminar o percurso diante de uma parede de concreto, que o obriga a retornar, e assim rever ao revés todo o trabalho. Desdobra-se daí toda uma sequência de instalações imersivas construídas como labirintos de fumaça e luzes coloridas, tais como Your blind passenger (2010), em Copenhague, Your blind movement (2010), em Berlim, e Feelings are facts (2010), em Pequim, feito em colaboração com o arquiteto chinês Ma Yansong.

A obra de Olafur Eliasson lida, em grande medida, com fenômenos e elementos da natureza, tais como vento, água e luz, além da fumaça. Nem por isso pode ser associada a qualquer discurso ecológico, que implicasse as ideias de pureza ou de retorno a um estado essencial da vida. Ao contrário disso, a natureza, no trabalho de Olafur Eliasson, é dada sempre por um condicionamento cultural, isto é, aparece necessariamente como construção, e não como verdade redentora. Vem daí o aspecto muitas vezes surrealista dos seus trabalhos, que replicam artificialmente elementos naturais colocando-os em confronto com seus pares “reais”, criando assim uma dimensão da experiência na qual ilusão e realidade estão interconectadas, tornando-se, portanto, indiscerníveis. Nas palavras do próprio artista, “estamos sendo testemunhas de uma mudança na relação tradicional entre realidade e representação”. Assim, “já não evoluímos do modelo (maquete) à realidade, mas do modelo ao modelo, ao mesmo tempo em que reconhecemos que, na realidade, ambos os modelos são reais”. Consequentemente, prossegue, “podemos trabalhar de um modo muito produtivo com a realidade experimentada como um conglomerado de modelos”, pois “mais que considerar o modelo e a realidade como modalidades polarizadas, eles agora funcionam no mesmo nível. Os modelos passaram a ser coprodutores de realidade”22. Não seria essa mudança uma perda da aura, em segundo grau?

Tal quebra na relação tradicional entre realidade e representação a que se refere deve ser compreendida à luz de uma soma entre os efeitos da emancipação pós-moderna dos significantes – o que, em outros termos, equivale à hipertrofia da imagem na sociedade de consumo – e da acelerada virtualização da experiência com as tecnologias digitais na última década. Ocorre que, no caso de Olafur, em vez de reforçar esse efeito de artificialidade como perda total do referente, os trabalhos procuram criar um campo de equalização dessas instâncias, na medida em que elas deixam de ser tratadas como polaridades duais. Vem daí o seu foco na questão da participação do visitante como condição da experiência dos trabalhos artísticos. O que quer dizer que esses trabalhos só se realizam como necessárias negociações intersubjetivas entre o artista, o espaço e o público. Note-se, no entanto, que não se trata exatamente de converter o espectador em ator, como em muitas instalações participativas dos anos 1960 – entre as quais estão as de Hélio Oiticica –, mas de negociar os termos da criação com ambientes de explícita artificialidade, nos quais a percepção assuma um papel construtivo e, portanto, restaurador de uma possível subjetividade da experiência. O que pode ser encontrado, por exemplo, no efeito de afterimage criado por muitos de seus trabalhos com luz, nos quais a saturação cromática produz a visão involuntária de cores complementares – algo que se dá apenas no aparelho ótico de cada um, e não no espaço real.

É claro que as instalações espaciais de Olafur Eliasson têm atrás de si os trabalhos com luz criados por artistas como Dan Flavin, James Turrell, Robert Irwin, Anthony McCall ou Carlos Cruz-Diez, entre outros. Mas a questão do fenômeno ótico, que aparece no efeito do afterimage, por exemplo, está longe de encerrar o alcance do seu trabalho. Se as atmosferas criadas por Olafur criam um campo de embaralhamento entre natureza e artifício, como dissemos antes, fazem-no espacialmente reabilitando a noção de ilusionismo, estigmatizada por uma corrente dominante da arte moderna. É o que se vê, por exemplo, em um trabalho urbano como Double sunset (1999), feito em Utrecht, na Holanda, onde o artista criou um sol artificial, feito de chapa metálica e iluminado por uma bateria de lâmpadas de xenônio, posicionado no alto de um edifício da cidade. Assim, dependendo do ângulo a partir do qual se olhasse para esse estranho sol artificial e baixo – em uma cidade de alta latitude, na qual o pôr do sol é um fenômeno lento e cotidianamente apreciado durante o verão –, poder-se-ia vê-lo simultaneamente ao pôr do sol real, como um sol noturno impossível, criando uma duplicidade algo sinistra.


Em 2003, aquele inusitado sol de Utrecht – duplo e onipresente – reapareceu de forma alterada em Londres, no interior do Turbine Hall, o magnífico hall de entrada da Tate Modern. Intitulado The weather project, era composto por um semidisco metálico estruturado por andaimes e iluminado por lâmpadas de monofrequência. Além disso, o artista instalou um espelho rente ao teto do salão, duplicando o espaço e refletindo suas imagens – a arquitetura, as pessoas e o próprio meio-sol que, ao duplicar-se, completava-se –, além de envolvê-lo também em uma bruma artificial, cujo ar de mistério potencializava o sentido de verossímil irrealidade da situação. Aproximo aqui o verossímil do irreal na medida em que o trabalho logra de fato dissolver essas polaridades, no calor implacável de sua luz fria. O resultado é que as pessoas acorriam em grande número para o museu, durante o inverno londrino, com a intenção de se deitar no chão daquela praia artificial, e receber na pele – ainda que apenas de forma mediada pelos olhos e pelo cérebro, porém de modo muito verossímil – a energia daqueles benéficos raios solares.

Minha referência ao sucesso de The weather project não visa apenas elogiar a obra de Olafur. Nos termos da discussão proposta aqui, interessa investigar as razões desse sucesso, para além de suas razões mais evidentes, tais como a qualidade estética intrínseca – verificável inclusive no plano do “belo” – e o enorme poder simbólico e midiático da instituição. Uma chave para essa questão, parece-me, foi a instalação ter conseguido associar a inegável qualidade de espaço público daquele lugar à exploração de algo que talvez seja um dos poucos domínios verdadeiramente públicos ainda hoje: o tempo atmosférico (no sentido de “weather”, não de “time”)23.

Uma das grandes qualidades do trabalho de Olafur Eliasson, segundo o antropólogo Bruno Latour, é a superação das velhas e esgotadas distinções entre polaridades como o selvagem e o domesticado, o privado e o público, ou o técnico e o orgânico. Latour é um dos mais importantes formuladores da chamada “antropologia simétrica” que, a partir de questões levantadas inicialmente por figuras como Lévi-Strauss, propõe leituras da sociedade contemporânea que partem da inclusão estrutural da alteridade, isto é, da crítica à perspectiva dominadora ocidental, segundo a qual o outro deve ser reduzido ao eu. A grande questão contemporânea, diz Latour, é a progressiva fusão das duas formas de representação que foram separadas ao longo da história: a representação da natureza e a representação das pessoas em sociedade, isto é, a separação entre coisas e pessoas, ciência e política.

Segundo a visão moderna-iluminista, a história da civilização é a épica trajetória de emancipação daquele estado primitivo, animista, em que os homens se mesclavam com o mundo, em direção à separação racional de tudo. Assim, o corte racionalista ocidental separou sujeito e objeto, fatos e valores, buscando eliminar aquela antiga “confusão” do estado natural. Hoje, no entanto, observa Latour, a ação humana se ampliou a uma escala em que as antigas paredes dos laboratórios se expandiram, extrapolando as fronteiras do planeta. Como explicar fenômenos como o buraco na camada de ozônio, por exemplo, ou a poluição dos rios, os embriões congelados etc.? Estariam, esses fenômenos, situados no campo do natural ou do cultural? Desde que o mundo inteiro foi convertido em um grande laboratório (um “campo ampliado”, usando o termo consagrado por Rosalind Krauss para a arte), vivemos um experimento generalizado, no qual todos são atores. É a “era da participação”, segundo Latour, onde experiência e experimento tornaram-se uma coisa só, um grande híbrido contemporâneo. Esse campo ampliado da experiência pede uma nova compreensão da política, segundo o antropólogo, na imagem de um “parlamento das coisas” (Dingpolitik), que volte a associar as ideias de “público” e de “coisa” material: Res publica24.

Como extrapolar os experimentos científicos, historicamente fechados em laboratórios, para a atmosfera de toda uma cultura? Essa é uma pergunta crucial para a nova política, segundo Latour, no momento em que toda referência de exterioridade se esfuma. Assim, se nós estamos emaranhados no mundo, os eventos acontecem sempre na interioridade, que já não se contrapõe a um exterior25. Portanto, se como queria Hélio Oiticica, cada vez mais podemos dizer que “o museu é o mundo”, seria também possível replicar essa ideia, ponderando que o mundo é, igualmente, cada vez mais o museu. Isto é: se o museu vai se dissolvendo no mundo, como a arte na vida, o mundo, por outro lado, vai também se museificando com o turismo, a publicidade e a economia de serviços, segundo uma lógica de equivalência entre realidade e modelo. A singularidade da posição de Olafur está em nem aceitar a ideia de autenticidade defendida pela contracultura, onde arte e vida se integram – de matriz ainda moderna –, nem defender a artificialidade do simulacro pós-moderno. No meio do nevoeiro, não é possível decidir se estamos de um lado ou de outro da ponte. O que há é apenas a própria ponte.

1. Hélio Oiticica, “Programa ambiental”. In: Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1996, p. 104.

2. A Bólide Lata-fogo (1966) é uma espécie de objet trouvé ambiental.Trata-se da apropriação, por Oiticica, das latas de querosene com chamas usadas para sinalização viária, indicando em geral a presença de obras de reparo em estradas.

3. Hélio Oiticica, “Programa ambiental”. In: op. cit., p. 104.

4. No dia 20 de abril de 1970, com a participação de um público que chegou a 5 mil pessoas, Barrio enrolou pedaços de barro, carne, ossos e sangue em catorze trouxas de pano, atirando-as ao Ribeirão Arrudas. Iniciada pela manhã, a ação foi interrompida à tarde pela polícia e pelo corpo de bombeiros.

5. O trabalho Inserções em circuitos ideológicos é composto por dois projetos: Coca-Cola e Cédula. Neles, Cildo realiza interferências escritas em objetos circulantes, decalcando frases em garrafas de vidro de Coca-Cola que serão devolvidas ao consumo, e carimbando dizeres em notas de dinheiro. O trabalho foi apresentado pela primeira vez na exposição coletiva Information (1970), no MoMA de Nova York.

6. Lina Bo Bardi, “Casas de Vilanova Artigas”. Habitat no 1, outubro–dezembro de 1950.

7. In Lúcia Carneiro e Ileana Pradilla, José Resende. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999, pp. 11–12.

8. Ver Manuel C. Teixeira e Margarida Valla, O urbanismo português: séculos XIII–XVIII, Portugal- Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 1999, p. 218.

9. Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 91.

10. Para esses casos, ver Philip Ursprung, “From Observer to Participant: In Olafur Eliasson’s Studio”. In: Anna Engberg-Pedersen (ed.), Studio Olafur Eliasson: An Encyclopedia. Colônia: Taschen, 2008; e Henry Urbach, “Surface Tensions: Olafur Eliasson and the Edge of Modern Architecture”. In: Madeleine Grynsztejn (ed.), Take Your Time: Olafur Eliasson. Nova York: Thames & Hudson, 2007.

11. No filme Héliophonia (2002), de Marcos Bonisson, Vito Acconci dá um depoimento em que declara a grande influência de Oiticica em sua trajetória artística, assimilada a partir da exposição coletiva Information, ocorrida no Museu de Arte Moderna de Nova York em julho de 1970, da qual ambos participaram. Acconci se refere sobretudo ao curto-circuito criado por Hélio entre as esferas pública e privada naquela ocasião, ao estimular o público, em sua célula Barracão no 2, formada por uma série de Ninhos, a “habitar” as suas obras – e, portanto, o espaço do museu – de maneira lúdica, transformando o lugar de passagem em espaço de permanência. Para Acconci, essas cápsulas de estar no meio do museu revelaram uma concepção nova de espaço público, onde você pode, ao mesmo tempo, “estar em privacidade e ter uma relação com outras pessoas”. Depoimento de Vito Acconci citado em Paula Braga, “Conceitualismo e vivência”. In: Paula Braga (org.), Fios soltos: a arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 268.

12. Olafur Eliasson, Take Your Time, vol. 3: Driftwood. Berlim: Studio Olafur Eliasson, 2010, p. 136.

13. Entre 1968 e 70, o artista argentino Nicolás García Uriburu já havia realizado um trabalho semelhante, chamado Hidrocromia intercontinental, em rios ou canais de Veneza, Nova York, Paris e Buenos Aires.

14. Como observa Robert Kudielka, o movimento de ruptura da arte em relação à sua própria espacialidade interna, e de consequente fuga em direção ao “espaço real”, gerou, depois da radicalidade da primeira Land Art americana, um significativo impasse, dado o fato de que esses trabalhos ambientais baseados na experiência das pessoas passaram a depender de uma certa moldura institucional para que pudessem ser reconhecidos como tal. Kudielka cita, em apoio a essa tese, as instalações Toilette (1992), de Ilya Kabakov, Creation Myth (1998), de Jason Rhoades, e The weather project (2003), de Olafur Eliasson. E, considerando as notáveis diferenças formais e discursivas dessas três instalações, pondera serem elas, no entanto, concordes na aceitação de uma premissa fundamental: “elas precisam, cada uma, de um invólucro ou recipiente, nos quais elas se organizam e dentro dos quais elas podem lograr um efeito”. E prossegue: “Nenhuma providência artística parece ser tão importante quanto essa decisão a priori, pois apenas o apoio de uma moldura preexistente permite manter a organização de um modo tão aberto, que um espaço de vivência autêntico, experimentável ao se transitar dentro dele, passa a existir. Dentro desse espaço o observador pode dispor, sem instrução prévia e até certo ponto, de um olhar contemplativo”. Robert Kudielka, “Objetos da observação – lugares da experiência: sobre a mudança da concepção de arte no século XX”. Novos Estudos n. 82. São Paulo: Cebrap, 2008, p. 174.

15. Ver Rodrigo Naves, “Prefácio”. In: Giulio Carlo Argan, Arte moderna. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1995, p. XVIII.

16. Segundo Dewey, a identidade entre “forma” e “substância” é que permite o estabelecimento da noção de “experiência” na arte. Ver John Dewey, “Substância e forma”. In: Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

17. Ver Hannah Arendt, A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.


18. Peter Bürger, citado in Rodrigo Naves, “O novo livro do mundo: a imagem pós-moderna e a

arte”. In: O vento e o moinho. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 229–230.

19. Rodrigo Naves, op. cit., 2007, p. 239.

20. Em registro semelhante, podem também ser citados o Blur Building, feito para a Expo 2002 na Suíça, de Diller + Scofidio, e a instalação Arquitetura como ar: estudo para o Château La Coste, de Junya Ishigami, vencedor do Leão de Ouro na 12a Bienal de Arquitetura de Veneza (2010).

21. Claude Lévi-Strauss, História de lince. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1993, p. 22.

22. Olafur Eliasson, Los modelos son reales. Barcelona: Gustavo Gili, 2009, p. 11.

23. Analisando a repercussão do trabalho, Olafur associa o dinamismo da cidade, o poder do museu e o fato de se tratar de um grande projeto artístico no sentido de sua “escala física”. Segundo o artista, “there was a really broad interest from the press—a very large percentage of which was not the art press. A great deal of coverage took place in weather reports, for instance. The weather reports in many countries and, of course, mostly in England, mentioned the work, and weather reports are among the most-watched programs on TV”. In: Hans Ulrich Obrist, Olafur Eliasson: The Conversation Series v. 13. Colônia: Verlag der Buchhandlung Walther König, 2008, p. 40. (“... houve, de fato, amplo interesse da imprensa – do qual uma grande porcentagem vinda dos veículos não especializados em arte. Boa parte da cobertura aconteceu, por exemplo, em meio às previsões do tempo. Em muitos países e, naturalmente, sobretudo na Inglaterra, as previsões meteorológicas mencionavam a obra, e programas sobre o tempo estão entre os de maior audiência na TV.”)

24. Ver Bruno Latour e Peter Weibel (org.), Making Things Public: Atmospheres of Democracy. Karlsruhe: ZKM – Center for Art and Media Karlsruhe/MIT Press, 2005.

25. Ver Bruno Latour, “Atmosphère, atmosphère”. In: Javier García-Germán (org.), De lo mecánico a lo termodinámico: por una definición energética de la arquitectura y el territorio. Barcelona: Gustavo Gili, 2010, p. 106.

VOLZ, Jochen (org). Olafur Eliasson: Seu corpo da obra. São Paulo: Associação Cultural Videobrasil/Edições Sesc SP, 2011, p. 249 - 273.

Ensaio Vilém Flusser, 1988

Epílogo: "Por que a Casa da Cor em São Paulo" (excerto de conferência não publicada)

O filósofo e escritor tcheco Vilém Flusser (1920-1991) viveu em São Paulo entre 1940 e 1972. O trecho a seguir foi extraído de uma palestra sobre a Casa de Cor Centro de Pesquisa, projeto iniciado peda BASF em São Paulo e, mais tarde, abandonado.

Eu vou dizer agora como imagino “casa” no sentido de Casa da Cor. Casa, que deixa de ser espaço, casa que deixa de ser definida topologicamente – passa a ser instrumento a ser definido funcionalmente ou, como se diz atualmente, ecologicamente. Devemos deixar de pensar topologicamente. [...] Casa no sentido de nó no tecido instersubjetivo, casa imaterial, que recolha informações, relativas às cores, de todos os horizontes. Portanto, assuma não somente a decadência da cidade mas a decadência do estado nacional como um fato, e aceite a emergência daquilo que McLuhan chamou, com uma palavra a meu ver pouco feliz, de “aldeia cósmica”.

Que recolha essas informações, que as memorize, que disponha de instrumentos para memorizar estas informações em vários códigos; no código das palavras, no código da imagem, no código do som e, mais tarde, no próprio código das cores.

E que, uma vez gravadas estas informações, as processe.

Que construa laboratórios, que construa escolas, que construa centros de reflexão, que faça reuniões como esta, que faça exposições, em suma, que processe estas informações para que disso resultem informações novas.

Que divulgue imediatamente estas informações, seja materialmente, seja imaterialmente, isto é, seja com suporte de papel, seja com suporte de fita vídeo, seja com suporte de fita filme, seja com suporte de disquete. Que esta divulgação seja feita de maneira que provoque, espontaneamente, feedback do mundo inteiro. Que este feedback seja de novo recolhido, e de novo memorizado, e de novo processado.

Em suma, se quero ver a coisa ecologicamente, que surja flutuando vagamente por cima deste monstro que é São Paulo uma espécie de vácuo que sugue informações, que se transforme num dos centros da nova cultura pós-civilizatória emergente.

Claro que lhes falei uma utopia, mas se não fosse utópico, para que engajar-se? Se o nosso propósito fosse construir mais um museuzinho – e museus morreram há pelo menos dez ou quinze anos, já que múltiplos substituem originais e não têm sentido nenhum – a única forma de museu possível é o tipo museu imaginário do tipo “Pompidou”. Que fosse uma espécie de museu, ou que fosse uma espécie de centro para o qual a gente viaja, que tenha quatro muros, que seja localizado em qualquer rua, isso não vale a pena; é simplesmente continuar esta brutalidade que está por aqui.

Mas se, pelo contrário – suficientemente porque aquilo reside fundamentalmente sobre pessoas – se, pelo contrário, fosse possível reunir um grupo de pessoas suficientemente motivado para visualizar uma tal nova forma de casa nesta circunstância que acabo de descrever um tanto impiedosamente, então creio que estamos engajados numa aventura que vale a pena. 

VOLZ, Jochen (org). Olafur Eliasson: Seu corpo da obra. São Paulo: Associação Cultural Videobrasil/Edições Sesc SP, 2011, p. 469.

Entrevista Jochen Volz , 2011

Uma entrevista com Olafur Eliasson

Jochen Volz

O título da publicação em que esta conversa vai aparecer – e da grande exposição que a acompanha – é Seu corpo da obra. Seria ótimo se pudéssemos começar falando sobre esse título – a relação entre obra, experiência, espaço, mente e corpo –, mas também sobre como o acúmulo de experiências molda o corpo. Estas questões têm sido de interesse recorrente para você.

Olafur Eliasson

Acho que refletir sobre o corpo permite ativar um certo tipo de pensamento. Reconhecer a sensação sentida do corpo – ou, podemos dizer, seu envolvimento crítico consciente – abre potenciais que foram, em certa medida, desprezados ou, de fato, nunca inteiramente compreendidos, sobretudo porque estão longe de fazer parte do que se considera “o mercado”.

Digamos que estejamos falando de algo simples, como uma luminária. A tendência é olhar para a luminária primeiro como um objeto, ou mesmo como uma representação bidimensional, a imagem de uma luminária. Talvez você se refira a ela de uma forma muito abstrata – falando, por exemplo, do preço da luminária. O próximo passo é entender a luminária como volume, como um elemento de algo fisicamente aparente. Você percebe como a luminária se infiltra no espaço ao ser acesa; sua função emerge, e o espaço e a luminária coproduzem um o outro, porque o objeto tem uma maneira de iluminar o espaço, mas o espaço também tem uma forma de ser iluminado pela luminária. Nesse sentido, os dois coexistem. Você pode também desfrutar da luminária caminhando ao redor dela; e, de repente, sua consciência perceptiva aumenta. Penso que essa é uma nova ideia: o fato de que podemos ativar um objeto ao caminhar ao seu redor, porque passamos a enxergá-lo de perspectivas diferentes. É assim que pensamos normalmente ao assimilar uma paisagem, quando caminhamos por ela, ou até o espaço urbano. Paisagens e espaços urbanos têm o que chamo de potencial de socialização quando os olhamos a partir de uma perspectiva de movimento e atividade, e não como arquiteturas estáveis e organizadas em torno de uma hierarquia. Partindo de campos variados de pensamento espacial, você pode entender as formas como o corpo funciona e aplicar isso ao entendimento de um objeto e da maneira como ele opera.

Mas uma luminária pode ser, ainda, um objeto de arte convencional. Estou falando de luminárias porque muitas de minhas esculturas também funcionam como luminárias; há uma série delas na exposição em São Paulo (Hemisfério compartilhado 1–6). O segredo para ativar o potencial dessas esculturas não é cognitivo nem ocular. É, em grande medida, uma combinação de mover-se fisicamente ao redor delas e olhar, ao mesmo tempo, para a maneira como elas instrumentalizam, ou ativam, o espaço. E é aqui que o corpo se torna interessante.

Estou me referindo a estender o pensamento até a ação. Como uma teoria é, de fato, implementada no espaço? Falamos de arte de maneiras hipotéticas; mas como é que, ao produzir arte, traduzimos pensamentos hipotéticos em formas de ação? É aí que o corpo desempenha um papel fundamental. Não apenas como uma máquina física que se move de A para B, mas como o veículo da forma como corpo e mente colaboram para ativar um objeto no espaço.

JV

Acho que a amplitude do título reflete outro aspecto interessante: um conceito de trabalho que não se relaciona apenas à produtividade, mas também ao Outro; que tem a ideia de coletividade, algo sempre muito presente na sua obra, como base implícita. Com frequência surge em sua obra uma dimensão que poderíamos chamar de experiência compartilhada, momento compartilhado, de memória coletiva sendo produzida ou em potencial.

OE

Estou interessado na ideia de que um trabalho artístico precisa trabalhar para ser arte. Ser uma obra de arte é trabalhoso para o trabalho; não é fácil ser um trabalho artístico. A obra de arte precisa se envolver com seu tempo de uma forma muito convincente. Isso dá muito trabalho. O outro aspecto relacionado ao trabalho é que nem sempre é muito fácil olhar para uma obra de arte ou se envolver com arte. Isso também dá trabalho; ir a um museu exige disposição para coproduzir a experiência. E isso suscita questões sobre percepção: se a obra de arte é algo que recebemos, consumimos, ou se é algo que produzimos, no sentido fenomenológico, da mesma maneira como constituímos os objetos que olhamos ao olhar para eles. Não devemos ignorar o fato de que os objetos têm interesse em si, nem que o artista embutiu esses interesses no objeto intencionalmente. Mas é claro que a maneira como enxergamos o objeto tem um enorme potencial de produzir significados. Em última instância, é esse olhar que coproduz aquilo que vemos.

Trabalhamos, também, para criar diálogos. E este trabalho pode ser diferente do que se espera de um trabalho, porque exige que você reconheça que as coisas às vezes funcionam mais devagar do que se está acostumado; você pode, por exemplo, trabalhar em uma coisa e só ver resultados seis meses depois. Ou talvez não haja resultado plausível, e aí você precisa reconhecer tanto que tem de trabalhar quanto que não deve entender a ideia convencional de sucesso quantificável necessariamente assim.

Na sociedade de hoje, em que a arte é marginalizada, isto representa um desafio crescente. A arte e as pessoas que usufruem dela precisam trabalhar juntas. Seu corpo da obra diz respeito ao corpo, tanto da obra de arte quanto de quem a experimenta, porque muitas vezes o mero caminhar pelo espaço de um museu, ou por dentro de uma obra de arte, é um trabalho; então, “seu corpo da obra” pode ser também a maneira como você trabalha quando absorve seu entorno, ou o produz, ao caminhar por ele.

JV

Gostaria de voltar à ideia de coletividade. Se compreendermos que a relação entre espectador e obra de arte é de expectativas mútuas e codependência, não poderíamos afirmar, também, que essa codependência só é realmente significativa quando vale para várias pessoas? A ideia de coletividade não está implicada aí? Digamos que, em silêncio, você descubra certa reação corporal, por exemplo; mas... ela não passa a poder ser descrita como uma função apenas se for aplicável a pelo menos duas pessoas?

OE

É interessante porque nós – e aqui estou falando do ponto de vista do artista – atravessamos muito rapidamente a fronteira onde começamos a tomar decisões em nome dos outros. É preciso muito equilíbrio. É claro que embutimos intenções na obra de arte, já que queremos que ela coproduza valores na nossa sociedade. Queremos compartilhar valores, queremos fazer parte do desenvolvimento intrínseco da sociedade. Mas também é importante abarcar a coletividade, o que nem sempre conduz a um consenso. A coletividade movida a consenso geralmente é uma coletividade moralizante. Claro, Jürgen Habermas já trabalhou muito com essa ideia de discordância e, então, no fim, todos concordamos, o consenso reina; isso é a democracia feliz, certo? Por outro lado, as ideias de Bruno Latour sugerem que a fricção está no cerne da democracia. Acho essa abordagem mais produtiva. Quando olho para o mundo de hoje, parece-me cada vez mais que o maior desafio não é criar sistemas de concordância, mas, pelo contrário, criar espaço para a discordância; um espaço onde o consenso não seja exigência. É difícil, mas necessário, cultivar uma postura que afirme: “Precisamos reconhecer que não é possível concordarmos todos em tudo; e, no entanto, ainda assim, formamos uma coletividade. Apesar de não sermos iguais, continuamos juntos”.

JV

É interessante. Não sem razão, Hélio Oiticica, em seu texto “Posição e programa”, de 1966, aponta precisamente para a não participação como opção, ao entender a decisão do espectador sobre seu envolvimento com uma obra como parte da realização ou do desdobramento da arte. Isto é bonito e rico, porque implica que a arte acontece entre partidos igualmente importantes: o poeta e o leitor, o artista e o não participante, a obra e o mal-entendido.

OE

Se olharmos para o que a obra de arte e a comunicação da arte têm a oferecer, vemos que a arte, de algum modo, mostrou-se muito generosa no que diz respeito a formas de estar junto, mas ser diferente. É por isso que a arte parece, cada vez mais, ter algo a oferecer à sociedade, porque a sociedade tende a ser exatamente o oposto. Então tudo se resume a uma questão de generosidade, tolerância e atitude na comunicação da arte. Para alguém que vai a uma exposição de arte, por exemplo, a possibilidade de usar sua experiência depois, fora do museu, de uma forma não prescrita, totalmente pessoal, é um grande bem. Desde que não quantifiquemos ou padronizemos isso, claro, nem racionalizemos as abordagens, ferramentas ou emoções que nosso encontro com a obra evoca quando as implementamos em outras áreas da vida, fora do museu. Fica a cargo das pessoas – dos indivíduos – descobrir por elas mesmas o que fazer com sua experiência. Isso é diversidade. Aqui, firma-se um contrato coletivo forte. Isso tem muito a ver com a confiança que a modernidade depositou na arte. Não havia dúvida de que a arte fosse um elemento significativo para definir a realidade ou a vida na realidade. Infelizmente, as pessoas já não reconhecem a arte como parte importante da sociedade. Isto pode ser surpreendente, uma vez que a arte nunca teve tanta exposição quanto agora; mas ela se transformou em uma espécie de bônus. Não se tornou parte integrante da sociedade. Ou, para colocar de outra maneira: é triste ter de se transformar em um empreendedor cruel, como eu, para se integrar à sociedade. Tenho plena consciência dessa situação e sou muito crítico em relação a ela. Criei uma posição que me envolve em estruturas de poder. Converso com políticos, tomadores de decisão, e acontece um fenômeno muito estranho: eles falam comigo como se eu fosse alguém de fora, enquanto eu acho que estou dentro. A arte e os artistas simplesmente não são considerados parte da sociedade, em particular nessa visão pseudossocial de sociedade democrática de hoje. O sistema político não considera a produção cultural como um dos pilares da sociedade.

JV

Sabemos que isso é um grande erro, na verdade. Diversos estudos recentes mostram que o impacto econômico das organizações artísticas e culturais sem fins lucrativos e seu público gera renda considerável para economias das nações no mundo todo. A renda do setor das artes e da cultura não se compara, é claro, às quantias que são de fato investidas na cultura.

OE

Imagine quanta gente detestava Hans Christian Andersen quando ele escreveu o que escreveu no século 18. E, é claro, ninguém se lembra de nenhum político ou empresário da época. Pessoalmente, eu nem gosto muito de Hans Christian Andersen, mas não há dúvida de que ele produziu mais dinheiro para a Dinamarca do que qualquer político.

JV


Você e eu nos conhecemos desde 1997. Falamos brevemente depois da abertura de Your curious garden (Seu jardim curioso) no Kunsthalle Basel, que, acredito, em retrospecto, deve ser considerada uma das exposições mais importantes da sua carreira. Foi nela que você apresentou pela primeira vez alguns dos elementos mais fundamentais de sua obra, que continuam a ter forte relevância até hoje. De lá para cá, além de a escala da sua produção e de seu estúdio terem mudado tremendamente, seus interesses teóricos se multiplicaram em inúmeras direções. Seria muito interessante falarmos sobre como você desenvolve o seu trabalho, na prática, e como, ao mesmo tempo, intensificou exponencialmente a pesquisa e a reflexão teórica no âmbito do seu estúdio. Em 2011, por exemplo, você organizou pela quarta vez o experimento Life is space (A vida é espaço); e, há algumas semanas, um seminário sobre a compaixão. Pessoalmente, tive o privilégio de participar de Life is space no seu estúdio. Foi um dia muito inspirador. Agradeço por isso. Quando falo a amigos desse dia, descrevo-o como uma mistura maravilhosa de terapia de grupo, aula de arte e conferência informal do TED, que nos levou da meditação budista à ideia de contágio emocional e do conceito de Siegfried Zielinski de “anarchive” ao buraco negro que pode extinguir toda a vida em um futuro não muito distante. Você pode falar sobre a relação entre seu interesse por disciplinas científicas e espirituais diversas, e sua prática artística?

OE

O experimento Life is space foi uma oportunidade rara para conseguir material bruto, matéria-prima; coisas ainda não digeridas, mas que se provaram muito inspiradoras, de uma maneira lúdica, direta, não didática. O dia em si pode não ter parecido, então, o mais criativo, para mim; mas, em retrospecto, foi, sim. Ainda preciso treinar minha capacidade de aproveitar o momento em um dia incrivelmente intenso como aquele. Mas preparar o dia foi incrivelmente interessante, porque trata-se de lidar com expectativas o tempo todo; é como fazer uma curadoria de expectativas. Pensando em como foi, vou digerindo e também me dando conta de conexões engraçadas e imprevisíveis entre as falas, apresentações e experimentos. O follow-up exige muito; digerir o material bruto e transformá-lo em conceitos úteis é um processo que demanda disciplina, até porque boa parte desse material bruto é composta por sentimentos.


Uma coisa que fica clara para mim quando converso com outros artistas, acadêmicos ou curadores é que sempre trabalhei com a ideia de que a linguagem pode ajudar no desenvolvimento dos trabalhos. Falada ou escrita, na forma de palestra ou do que for, a linguagem sempre foi importante para mim; e, no entanto, nunca fui, em termos técnicos, alguém que baseia seu trabalho apenas na linguagem. Acho que o ponto mais importante aqui é que tenho uma enorme confiança na arte, e isso para mim é algo profundo e essencial. De fato, nunca questionei isso. Como todo mundo, às vezes fico sem inspiração, sem ideias, bloqueado; e uma das coisas que sempre me ajudaram a ligar um período originalmente criativo a um novo período criativo foi verbalizar o que fiz e que consequências isso produziu. Nesse sentido, muitas vezes usei a fala, a escrita, a leitura e o debate para criar uma linguagem em torno do meu trabalho. Mas essa linguagem nunca encontrou um formato metodológico próprio; sempre dependeu da obra como veículo. Nunca considerei as coisas que falo particularmente importantes, ou de importância comparável à da obra.

JV

O ensino não seria uma tentativa interessante de articular a pesquisa teórica ou científica, de uma forma não necessariamente ligada a sua produção artística? Uso ensinar no sentido de agir como um agente provocador, como alguém que expande um determinado vocabulário ou oferece ao outro um novo vocabulário.

OE

O tipo de ensino no qual tenho sido mais ou menos bem-sucedido é aquele que se ancora na minha realidade atual: onde estou e no que estou trabalhando em um momento específico. Isso às vezes cria uma certa descontinuidade. Talvez seja um método de ensino levemente cacofônico, no que se refere à coerência e ao conteúdo. Por outro lado, reconheço que há coisas para as quais sou menos qualificado ou capaz; delego esses aspectos a outras pessoas, como fiz em meu estúdio. Em minha escola, o Institut für Raumexperimente (Instituto para Experiências Espaciais), temos dois codiretores que basicamente canalizam e adaptam esse fluxo desorganizado de informação para o ambiente de ensino da escola.

JV

Voltando mais uma vez à relação entre o seu trabalho e a linguagem ao redor dele, lembro-me do livro que você fez com Peter Weibel em 2001, Surroundings surrounded (Cercanias cercadas). Não é interessante o fato de que você, então em uma fase relativamente inicial de sua carreira, tenha reunido tantas vozes altamente respeitadas em torno de seu trabalho – não que todas tenham enfocado a sua obra, mas foram relevantes para ela. Em que sentido podemos dizer que foi um movimento estratégico?

OE

Acho que, à época, eu não era – como não sou hoje – movido pela teoria. Eu não lia os textos e depois criava a obra. No que diz respeito à estratégia, acho que minha geração de artistas, do final da década de 1990, sempre se interessou, ao ponto da obsessão, em como as coisas reverberam, ecoam. Na exposição Kontext Kunst e no catálogo que a acompanhava, ambos organizados por Peter Weibel em 1993, a arte dizia respeito a um contexto específico e, por isso, não produzia reverberações; ela apenas gerou ideias para reflexão, o que é algo mais estático. Essa reverberação implica na coprodução, em uma abordagem mais fenomenológica. Do final da década de 1990 até os anos 2000, cultivou-se essa ideia de que nada se separa de nada, de que tudo, de algum modo, coproduz o resto. E, ainda assim, colocava-se um foco pesado no papel do sujeito, o que talvez seja a coisa menos interessante dessa época – uma espécie de ideia obsessiva de fenomenologia fundada no sujeito, e não no coletivo.

Na época, discuti com Peter Weibel essa ideia de que as fontes de inspiração têm formas múltiplas de criar coerência. Há no livro textos que eu, de fato, não acho que tenha necessariamente entendido totalmente; mas eles ecoam muito bem com o que eu estava fazendo. Esta ressonância pode estar ligada ao conteúdo, mas também pode ter a ver com a forma. O conteúdo de alguns desses textos é menos importante para mim do que a forma como foram escritos. Então, o livro não era tanto uma estratégia, mas uma tentativa de contextualizar teoricamente meu trabalho. Na verdade, há muita teoria da arte no livro que não considero tão produtiva, e isso não me coloca necessariamente em boa posição, do ponto de vista estratégico; por outro lado, de fato havia muito interesse em estratégias naquele período. No grupo de artistas do qual eu fazia parte, todo mundo se preocupava muito com como estava sendo posicionado e como deveria se posicionar. Ninguém fazia nada que não produzisse sentido do ponto de vista estratégico. Tinha muito a ver com reação, defesa. Nesse cenário, então, convidar aquelas pessoas todas para combinar arte com ciência natural e social, e com gente que pensa o espaço, alguns deles bem obscuros ou, pelo menos, antroposóficos, era uma tentativa, também, de ampliar o campo dentro do qual podíamos nos posicionar; de derrubar barreiras, de certa forma. Não sei se foi uma ação calculada e precisa de minha parte, ou se me sentia ofendido ou, quem sabe, desesperado. Sei que eu simplesmente sentia que precisava incluir algum tipo de matemático maluco.

JV

Seja como for, o conceito do experimento Life is space é muito mais amplo. Vejo uma evolução. Ele já não diz mais respeito ao posicionamento de seu trabalho ou à necessidade de criar ressonância. Talvez nem se trate mais de você. Outros aspectos ganharam importância: o estúdio, a convergência de disciplinas, a ética. Fazer um evento para 180 convidados sem ter em vista nenhum resultado específico é promover a coletividade. Põe foco na presença e suscita ideias de criação ativa de memória. Sinto que houve um desenvolvimento muito interessante nos últimos dez anos, que pode ter sido pessoal ou mais geral, na arte.

OE

Acho que isso tem a ver com o fato de as pessoas estarem aceitando cada vez mais que as questões éticas não podem ser vistas apenas dentro de um contexto reflexivo; elas têm um impacto muito maior quando se conectam ao fazer, à “performatividade” das coisas. A definição de algo ético, no sentido colocado por Francisco Varela, tem a ver com ação, e não com reflexão. Como artista, penso que, historicamente, sempre se comprovou que o componente ético se integra mais facilmente à sociedade quando é representado, fisicamente representado. Nesse sentido, Life is space é uma tentativa de investigar, ensaiar ou simplesmente olhar mais detidamente para as possíveis consequências do pensamento; para o pensamento como ação. Então, não foi um dia para pensar, mas, de certa maneira, para representar reflexões. E acredito que, cada vez mais, todos entenderemos que só pensar não vai nos ajudar. O ateliê do artista sempre foi um lugar onde a relação entre pensar e fazer é desafiada.

A palavra “ética”, na verdade, não dá conta da totalidade do que quero dizer; talvez seja preciso ampliar a ideia de ética e falar de sentido de responsabilidade. Responsabilidade, de certa forma, tem a ver com resposta; tem a ver com reação. “Sinto que o mundo tem um impacto sobre mim e ajo em resposta a isso; reajo, respondo ao mundo.” E é por isso que Life is space também é um ensaiar de questionamentos sobre as consequências de estarmos presentes em um mesmo espaço, juntos; sobre como uma ação pode realmente se traduzir em uma responsabilidade coletiva. Podemos mudar o mundo de forma responsável? Não estou tentando nenhum posicionamento estratégico com um evento como Life is space. Estou, sim, tentando reforçar a confiança no ateliê do artista como um espaço relevante para pensar, fazer, reconsiderar.

JV

Juntando o que você acabou de dizer com o que falou antes, quando comentava a posição privilegiada em que se encontra, de poder de fato conversar com políticos ou falar no Fórum Econômico em Davos, você diria que existe um lado de sua prática que pode ser considerado ativismo? Você é um ativista?

OE

É uma boa pergunta. Normalmente, eu diria: “Não, não me vejo como um ativista”. Mas, por ter me exposto e me tornado uma figura pública, até certo ponto, reconheço que isso traz uma responsabilidade que posso escolher não aceitar ou, quem sabe, usar. Talvez eu não tenha usado essa responsabilidade de uma forma muito precisa, porque isso consome muito tempo e nem sempre é tão inspirador. Escolhi usar uma parte dessa responsabilidade para defender a arte mais nova. Criei uma escola de arte que, acredito, beneficia mais os artistas jovens do que uma escola de arte convencional. Usei-a para tentar fazer com que minha voz fosse ouvida. Mas, para ser sincero, sinto que ainda estou ensaiando uma forma de falar nesses contextos para soar convincente e ser ouvido.

JV

Penso que tanto em seu trabalho quanto na maneira como fala sobre ele, você está sempre tratando de responsabilidade e tomada de decisões. Tome, por exemplo, Your felt path (Seu caminho sentido), uma das obras que você está preparando para o SESC Pompeia. Nela, a responsabilidade é uma experiência muito física. Sua arte pede ao espectador que assuma a responsabilidade por suas ações individuais. E isso, claro, não está muito longe de chamar à responsabilidade também em uma dimensão maior, política ou ética.

OE

A verdade é que eu realmente acho que a arte incorpora o pensamento crítico, que então pode ser aplicado em qualquer lugar. Só que implementar isso dá um certo trabalho. A arte não é necessariamente uma solução, mas uma metodologia para integrar crítica e ação. Fazer arte envolve um sistema metodológico autocrítico que é tão saudável como exercício que se aplica facilmente a outros campos e questionamentos. Como ensinar gente jovem? Como organizar nossa sociedade do ponto de vista político? Como fazer um plano urbanístico? O que é arquitetura? O que é ciência? Quem tem a responsabilidade ética quando se faz uma avaliação científica? Não estou dizendo, claro, que a arte seja superior a outros campos; mas, no processo de definir e moldar a sociedade, a arte é coprodutora e pilar cultural.

JV

Começamos a conversar sobre a exposição para São Paulo logo depois da abertura de sua mostra Innen Stadt Außen (O interior da cidade fora), no Martin-Gropius-Bau, em Berlim. Nela, você falava explicitamente da ideia do espaço institucional e da cidade. Trabalhava com níveis diferentes de explicitação e de sutileza em intervenções por toda a cidade. Algumas partes da exposição aconteciam, de fato, na cidade; você trouxe a cidade para a exposição. Então, quando começamos a falar sobre São Paulo, nossa primeira conversa foi bastante inspirada por essas interferências. Falamos da ideia de talvez ligar os três locais de exposição, compondo um caminho entre as instituições. Falamos de inserir obras por toda a cidade – em uma casa, em um prédio abandonado, na rua, na passagem, em uma loja – para que elas fossem experimentadas nesse trajeto. E logo percebemos que seria inviável. As distâncias em São Paulo são diferentes das distâncias em Berlim ou Nova York. Você já tinha estado em São Paulo em 1998, quando foi convidado por Paulo Herkenhoff e Adriano Pedrosa para participar da Bienal de São Paulo; naquela época, em função de situações de trabalho diferentes, teve a oportunidade de passar mais tempo na cidade do que foi possível desta vez. Seria interessante falar a respeito das suas impressões sobre São Paulo.

OE

O que acho emocionante nas cidades é o fato de elas refletirem o estado mental do sistema social, político e cultural de um lugar. Até certo ponto, as cidades são indicadores do estado imediato dos países onde estão. Elas refletem a história de um lugar e como essa história é escrita pela sociedade. Dá para perceber como uma cidade adquire uma personalidade, se sabe ser generosa, ou se é menos criativa e generosa, e assim por diante. E isso, é claro, muda conforme o tipo de governo e de sistema político. Mas tudo fica impresso na pele da cidade, da maneira mais intrínseca. É importante desenvolvermos formas sofisticadas de lidar com a generosidade que uma cidade compartilha conosco. Em vários lugares do mundo, o potencial dos espaços públicos está novamente sendo considerado um veículo importante para criar confiança nos sistemas sociais – o fato de realmente termos um espaço que compartilhamos, que não é totalmente controlado pela mídia, por exemplo, que não é totalmente controlado pelo mercado, e que também não é totalmente controlado pelo sistema político, mas que, em vez disso, é controlado por todos nós, juntos. Cada vez mais as pessoas compreendem isso; a importância do espaço público está sendo redescoberta. É nele que acontecem as cristalizações políticas. Não apenas nas revoluções atuais no norte da África, mas também nas manifestações e brigas de rua que aconteceram em Londres na semana passada. Espaços públicos servem de plataforma tanto para a expressão da confiança quanto de desconfiança. É muito importante não nos limitarmos a tratar das qualidades formais de um espaço ou da assinatura de um arquiteto específico, mas enxergar o espaço como uma sobreposição de usos diversos.
 No mundo inteiro se discutem questões urbanas contemporâneas; hipóteses e avaliações diversas são trazidas à tona, todas tentando descobrir que tipo de espaço público vai de fato sustentar uma estrutura sofisticada que permita a quem vive na cidade ficar junto.

A palavra-chave aqui é “compartilhamento” – ou melhor, “comunidade” ou “coletividade”; ou, talvez, uma palavra ainda mais importante seja “conectividade”. Você se sente conectado? Sente que tem alguma empatia ou relação com as pessoas que não conhece necessariamente, mas com quem compartilha um espaço? O espaço público favorece o princípio de que pode haver uma empatia entre as pessoas ou, ao contrário, trabalha contra ele? Isto tem menos a ver com arquitetura e mais com a forma como os ambientes são geridos. Chega ao nível de questões como o gerenciamento dos pedestres, do trânsito, das áreas de lazer, dos parques e paisagens, da integração, e assim por diante.


Nesse sentido, acho muito animador olhar para São Paulo, porque é claro que a cidade está em transição, assim como o país todo. Como você disse, estive lá no final da década de 1990 por um período mais longo, e voltei um número de vezes suficiente para criar uma relação com as mudanças de São Paulo e compará-la às cidades do mundo nas quais ou com os quais trabalhei nos últimos dez ou vinte anos. Isso me dá uma certa confiança de que o espaço público terá um futuro diferente dos espaços dogmáticos que vimos no passado. Normalmente, a tendência é pensarmos no espaço público como algo que é produzido por uma combinação de elementos; então as pessoas vêm e consomem aquilo, absorvem. O que defendo é que as pessoas estão coproduzindo esses espaços. Karim Aïnouz fala desse fenômeno de uma forma muito interessante. Ele fala de uma “trajetória de lazer”. Há muito lazer e espaço compartilhado, também em São Paulo, mas todo mundo obviamente está indo para algum lugar. Tenho certeza de que o espaço público vai realmente se tornar mais vibrante no futuro, sobretudo se os sistemas governamentais, os sistemas políticos e os interesses econômicos optarem por uma abordagem não autoritária em relação à gestão e à organização do espaço.

JV

Você acha que termos abandonado a nossa ideia original de criar uma exposição ao longo de uma rota contínua por São Paulo foi uma reação a uma determinada situação urbana, na dimensão que você acaba de apresentar?

OE


Foi uma combinação de dois fatores. Em primeiro lugar, os dois SESCs ficam em bairros de características locais; não são museus, mas instituições voltadas à integração pública, centros comunitários. A distância entre interior e exterior não é tão marcada; em um dia animado, eles se confundem totalmente. No Martin-Gropius-Bau, que abrigou a exposição que você mencionou, o edifício não se abre para o exterior da mesma maneira; lá, minha ambição era confundir interior e exterior, para que algumas das qualidades do espaço interno do museu pudessem se derramar pela rua, uma coisa muito necessária no contexto da crescente comercialização de Berlim. Por causa da escala da cidade de São Paulo, da topografia e das distâncias entre as instituições, é extremamente difícil abarcar fisicamente o espaço público entre as exposições. Só depois de voltar a São Paulo me dei conta de que o trajeto entre os três locais é, ele mesmo, uma empreitada em potencial. Na essência, poderíamos ter considerado criar uma escultura-ônibus. Fazer do movimento em si a escultura. Se tivéssemos recursos para isso, poderia ter sido uma opção. Um zepelim talvez fosse uma ideia interessante para dar conta disso – parece que um zepelim transporta mil pessoas por viagem!

JV

Seria interessante concluir nossa conversa falando da mais proeminente entre as três situações arquitetônicas às quais você reage, aqui: o SESC Pompeia de Lina Bo Bardi. Acabo de reler mais uma vez a descrição de como foi a primeira experiência da arquiteta na fábrica fechada, em 1976, e que serviu de ponto de partida para o projeto dela. Lina conta que, ao visitar a fábrica pela primeira vez, em um dia de semana, ficou muito impressionada com a arquitetura dos espaços, então abandonados, e com seu potencial. Ela então voltou em um sábado e descreveu como a população do bairro de fato ocupava a fábrica nos fins de semana; as pessoas faziam churrasco, usavam o espaço inteiro. E isso muito antes de ele ser transformado em instituição; era apenas uma fábrica fechada. Seu impulso inicial, então, foi basicamente não fazer nada; só usar pequenas intervenções para tentar otimizar os espaços. Organizar o espaço e aprimorar a estrutura – adicionando uma lareira para os dias de frio, por exemplo; ou criando mesas às quais as pessoas de fato pudessem se sentar, criando o Solário-Índio, também conhecido como a “praia” local, e assim por diante, e até uma cachoeira. Como você posiciona seu trabalho nessas circunstâncias, que não são tão fáceis quanto os espaços convencionais dos museus?

OE

Eu me interessei pela diversidade das atividades, que de algum modo cria um grau mais alto de imprevisibilidade no comportamento dos visitantes. Não posso prever totalmente o que as pessoas vão pensar ou o que farão no espaço expositivo. Muita gente pode nem saber que está entrando em uma exposição de arte. Acho isso muito produtivo. As pessoas podem ser alertadas para o fato de que a percepção da realidade faz parte da realidade, e não que é algo que está fora da realidade e se reflete sobre ela. Então há um potencial específico em expor arte em uma instituição, digamos, no limite do que se considera uma instituição de arte.

Poderíamos falar, também, de uma coisa simples: a capacidade de nos mover em ritmos diversos. Para quem está parado na rua principal do SESC Pompeia, fica muito claro que há, ali, uma situação muito rara: as pessoas se movem em velocidades muito diferentes. Tem gente correndo, uns por prazer, outros porque estão com pressa; gente andando muito devagar porque finalmente conseguiu algumas horas de descanso; gente trabalhando, indo para a aula de cerâmica, indo comer. A sobreposição de atividades que acontece ali é muito particular. É como se aquilo fosse uma minissociedade, um espaço urbano com uma qualidade que os museus perderam, já que a tendência dos museus tradicionais é criar uma espécie de temporalidade uniforme, com pessoas que se movem no mesmo ritmo, consomem no mesmo ritmo, fazem tudo no mesmo ritmo. A diversidade de ritmos é um elemento saudável e fundamental, quando estamos olhando para a arte. Precisamos entender que os espaços mais criativos são aqueles que criam oportunidade para que atividades lentas ou velozes ao extremo possam acontecer no mesmo espaço, e se confundirem.

Há ainda um detalhe pequeno que me desperta muita curiosidade: algumas pessoas vão ao SESC Pompeia e simplesmente se sentam por lá para tirar uma soneca; outras parecem ficar passeando sem ter nada em particular para fazer. Na cultura da hipereficiência de hoje, na Europa e provavelmente em São Paulo também, quase nunca se vê alguém que não tem nenhum problema em deixar óbvio que não está ocupado. Hoje em dia, não estar ocupado é considerado equivalente a não ser importante; então, quem não está ocupado se esconde, ou finge que está fazendo alguma coisa. Acho muito interessante que seja possível haver alguém que se sinta completamente seguro, mesmo não tendo nada especialmente importante para fazer naquele momento. Para mim, o fato de os SESCs convidarem para esse tipo de atividade é uma indicação da qualidade real desses espaços.

VOLZ, Jochen (org). Olafur Eliasson: Seu corpo da obra. São Paulo: Associação Cultural Videobrasil/Edições Sesc SP, 2011, p. 383 - 409.