Coco Fusco apresentou no Videobrasil pela primeira vez seu trabalho Bare Life Study #1. O cenário da performance foi a calçada cheia de brasileiros em busca de visto do consulado norte-americano em São Paulo, no bairro de Santo Amaro, zona sul de São Paulo. Na intervenção, 40 performers voluntários vestidos com macacão laranja, idênticos aos usados pelos presos de guerra e políticos nos Estados Unidos e os mais baixos na hierarquia do país, ordenados via megafone por Coco Fusco vestida de militar, escovam com suas próprias escovas de dentes a calçada da embaixada, território americano. A perfomance é uma crítica a militarização dos Estados Unidos, onde até as mulheres torturam presos de guerra. Em Guantánamo (Cuba) e no Iraque, são as mulheres que executam estes crimes contra os presos. Entre os casos mais comuns, está o constrangedor interrogatório a iraquianos feito por americanas nuas ou vestidas com pouca roupa. Ao final da performance em São Paulo, a artista cumprimentou um a um os políciais militares brasileiros que protegiam o consulado. Coco Fusco elogiou a postura policial. Disse que esperava maiores represálias pela sua atuação e pelo congestionamento causado na rua.

Artistas

Obras

Texto de curadoria 2005

Bare Life Study #1

Nem campos, nem desertos, nem praias de difícil desembarque. Na era das “bombas inteligentes”, o combate corpo-a-corpo deixou a esfera dos teatros de guerra historicamente delimitados pelas potências bélicas. É no recôndito das bases e celas que os prisioneiros políticos são confrontados, cruelmente, com a verdadeira face dos seus oponentes. Nesse território, a artista, escritora e curadora Coco Fusco (Nova York, 1960) monta sua performance. Com algumas dezenas de voluntários, ela encena uma das torturas mais frequentemente impostas por soldados norte-americanos aos prisioneiros que mantêm, de Abu Ghraib a Guantánamo: fazê-lo limpar as celas com escovas de dentes. Fusco ocupa um espaço público de São Paulo e move seu pequeno exército para trazer à luz o que diariamente se desenrola na escuridão autorizada das prisões militares.

“Com ‘Bare Life Study #1’, quero provocar reflexão não só sobre as implicações desse estado de exceção que se instalou como parte da vida política contemporânea, mas sobre o papel da testemunha exercido pelo público mundial”, diz a artista, conhecida por performances, intervenções, instalações e vídeos que conciliam contundência política e uma estética fresca e instigante. Os rituais militares – além do papel da mulher neles – tornaram-se objeto de sua atenção recentemente. Em julho, como parte da pesquisa para um novo trabalho, ela visitou um grupo de militares norte-americanos aposentados que oferecem treinamento a quem deseja especializar-se em conduzir interrogatórios.

Originalmente, diz Fusco, o interesse que move sua obra é “investigar a complexa dinâmica psicossocial dos encontros entre pessoas de culturas diferentes e como ela afeta a construção da personalidade e as ideias sobre diversidade cultural”. Para fazer-se clara, ela recorre, sem cerimônia, a combinação de linguagens inusitadas, como a dos circuitos de vigilância, das telenovelas latinas e dos falsos documentários. Para abordar a questão do estranhamento cultural, escolhe sempre os ângulos menos fáceis. No vídeo “Els Segadors”, descrito pelo jornal “The New York Times” como “tão sutil quanto divertido”, usa uma cultura excluída, a dos catalães, para tratar do princípio de exclusão que rege todas as culturas, mesmo a catalã. “The Couple in the Cage”, performance na qual encarna uma aborígene e tranca-se em uma jaula para observar a reação dos passantes, prova seu raro senso de humor.

A política da identidade cultural cubana e as experiências de migração e diáspora foram temas preferenciais da artista, que agora se concentra nos “efeitos da globalização e nas noções de pertencer a ou identificar-se com uma cultura”. “Bare Life Study #1”, ela espera, será um tributo a uma conexão antiga. Filha de mãe cubana e pai italiano, Coco Fusco se define como uma “brasileirófila”. “Amo o Brasil há 20 anos, desde quando ia para o festival de cinema de Havana e o imenso contingente brasileiro era sempre o mais vibrante. Tenho grande identificação espiritual com muitos brasileiros, alguns deles meus heróis, como Glauber Rocha, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Cildo Meirelles, Caetano Veloso e Naná Vasconcelos”. “Sei que no Brasil há uma longa trajetória de arte conceitual politizada e que os artistas levam suas intervenções para a rua, e acho muito apropriado criar algo que, de certa forma, faça uma homenagem a essas tradições.”

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 06 a 25 de setembro de 2005, p. 108 a 109, São Paulo, SP, 2005.

Texto de curadoria 2005

Performances

Centrada no corpo, efêmera, imprevisível, a performance é um gênero de arte que envolve confrontamento e risco. Política, subverte a relação entre obra e público, que é convidado não a suspender sua descrença para acreditar em uma ficção, mas a testemunhar um acontecimento. Tanto ao transitar entre disciplinas quanto ao esquivar-se delas, torna-se a expressão de uma arte em que as fronteiras entre gêneros deixam de fazer sentido. Talvez por isso seja apontada como manifestação artística contemporânea por excelência.

Foi a observação desse fenômeno, sobretudo na maneira evidente como ele reverbera na arte eletrônica – cada vez mais politizada e vinculada à presença do artista –, que motivou a reunião desse expressivo grupo de performers dentro do Festival. Brasileiros, norte-americanos, asiáticos, africanos, eles representam vertentes diversas de um gênero de hibridismos infinitos, que se presta ora a dissolver os limites entre as expressões artísticas, ora a apontar questões sociais para compartilhar cicatrizes universais.

Uma das mais marcadas entre essas vertentes, a performance que se constitui abertamente em gesto político é representada, entre outros, pela artista nova-iorquina de origem cubana Coco Fusco. Ela comanda uma intervenção urbana que encena um ritual de sujeição comum nas prisões militares norte-americanas, vista aqui como uma espécie de performance compulsória em que o corpo é violentamente usado contra o próprio homem. Também é da observação de situações refletidas na mídia e na sociedade que vêm os registros reunidos em “Futebol”, trabalho da Frente 3 de Fevereiro que repercute um episódio de racismo; e a angustiante sensação de tragédia iminente eleita como objeto pelo grupo feitoamãos/F.A.Q.

Não menos políticas na essência, as obras da queniana Ingrid Mwangi e da indonésia Melati Suryodarmo são fruto de uma concepção de performance para a qual o corpo é o campo onde se projetam inquietações nascidas no âmbito da experiência estritamente pessoal. Mwangi, que criou para o Festival “My Possession”, usa voz e movimento para falar de uma existência em deslocamento. Em sua “Exergie – Butter Dance”, Melati, que estudou performance com Marina Abramovic, vale-se da iminência do acidente – e, não raro, do acidente em si – para produzir um nível concentrado de intensidade sem usar qualquer estrutura narrativa.

De formas muito diversas, Marco Paulo Rolla e Detanico Lain representam a performance que nasce das artes plásticas. Ao invés de abandonar o cubo branco, paradigma do espaço expositivo contemporâneo, Marco Paulo se apropria de seu rigor formal em performances que falam do irromper desconcertante do acaso num mundo de placidez e equilíbrio. Angela Detanico e Rafael Lain ambientalizam suas paisagens pixelizadas e se incluem na cena para manipulá-las ao vivo, no intuito de acentuar seu teor de representação digital – e, em última instância, de entender como a representação constrói as imagens do mundo.

Plástica, música e vídeo são os elementos fundadores de um gênero de performance particularmente vigoroso no Brasil. Os trabalhos inéditos do grupo Chelpa Ferro e do artista Eder Santos que o Festival exibe são exemplares. No Chelpa Ferro, Barrão, Luiz Zerbini e Sergio Mekler ampliam seu espectro de ação ao produzir música e objetos ruidosos, que posicionam no palco como peças de uma instalação. “Engrenagem”, que reúne Eder Santos, os músicos Stephen Vitiello e Paulo Santos e a performer Ana Gastelois, é uma releitura que reafirma o talento do artista para multiplicar, com o vídeo, o efeito visual de atos performáticos de dança, música, drama e poesia.

Tanto Eder Santos quanto o Chelpa Ferro passaram antes pelo Festival, como atestam as obras incluídas na mostra Antologia Videobrasil de Perfomances. Eder criou para o Videobrasil uma série histórica de trabalhos performáticos; Zerbini, Barrão e Mekler usaram o nome Chelpa Ferro pela primeira vez no 12º Festival, em 1998. Não deixa de ser simbólico, portanto, que seus novos trabalhos fechem a programação do 15º Videobrasil. Em meio a este amplo panorama do mais contemporâneo dos gêneros, eles representam uma vertente de performance que foi pioneira no cenário brasileiro – e que o Festival se orgulha de ter acolhido desde o nascimento.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. "15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil - 'Performance.'": de 6 a 25 de setembro de 2005, p.96-97, São Paulo-SP, 2005.