A gente buscou se expressar por meio de um cinema que era factível, que era possível. Edgard Navarro

O “cinema possível” de Edgard Navarro nasce da “sopa contracultural e tropicalista” dos anos 1970. Ex-aspirante a escritor, cantor e ator, influenciado por Torquato Neto e Rogério Duprat, o então jovem estudante baiano de engenharia descobre no Super-8 doméstico o veículo ideal para fazer o que queria: “mexer com linguagem” e “dar um recado” já então anárquico e iconoclasta.

Nesse espírito – e com quase nada mais –, cria alguns dos filmes mais irreverentes da história das artes visuais no Brasil. O Videobrasil reúne curtas históricos do diretor do longa Eu me lembro (2005), grande vencedor do Festival de Brasília, da ficção delirante Alice no país das mil novilhas (1976) a Talento demais, documentário ácido sobre o cinema baiano (1995).

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Entrevista Antonio Risério, 2007

Antonio Risério: Você começa a fazer cinema em Super-8, opção para uma coisa mais fácil, leve e barata. Contudo, naquele momento, anos 1970, havia um certo comprometimento e um vínculo entre Super-8 e contracultura. 

Edgar Navarro: Exatamente. A gente estava querendo filmar algo que fosse mais do que as festas de aniversário, as coisas de casamento, porque o Super-8 foi criado para esse tipo de coisa doméstica, qualquer um podia filmar porque era tudo automático. Mas a gente tinha um recado a dar, e queria mexer com linguagem. E o Super-8 facilitava isso, com poucos recursos, com a câmera que era acessível em termos de grana. Queríamos também subverter o uso que se fazia dele na época. 

Nos filmes, outras linguagens estão presentes, como a música e a Tropicália. 

É verdade. Eu estava ensopado dessa sopa contracultural e tropicalista, e era uma referência para a gente muito poderosa, potente, era a representação do sonho, do sonho possível, era uma forma de perpetuar essa coisa que a gente tinha de alguma forma, que foi anunciada naquele momento e a gente queria ir fundo nesta viagem. De alguma forma, éramos uns militantes, mas diferentes do militante da esquerda, que tinha sua militância ligada a uma coisa mais, digamos, “séria”. Embora eu considere que a nossa militância seja bastante séria, ela tinha uma cara anarquista, uma cara de desbunde que era irremissível. 

O experimentalismo no cinema também era experimentalismo na vida. 

Isso, com certeza. A gente tava fazendo rascunho e o rascunho fazia parte do poema junto, a gente sabia que não tinha volta e que provavelmente a gente não ia durar muito. No dobrar a esquina a gente podia ser atropelado, ou então alguma coisa muito terrível podia nos acontecer, até nós mesmos podíamos dar cabo da nossa própria vida, porque o suicídio também tava permeando todas aquelas relações mágicas e fantasiosas. 

Num certo sentido, a esquerda era a norma do desvio e a contracultura era o desvio da norma (risos).

Perfeito. Era o desvio da norma. A gente buscou se expressar por meio de um cinema que era factível, que era possível, com o pequeno salário que a gente tinha podia comprar os rolinhos de filme para fazer. E o Super-8 te dava uma liberdade muito grande, que colava com essa liberdade da existência mesmo. De ser. Era a única coisa que interessava.

E a coisa do manicômio no Super-8? 

O “lugar de maluco é no hospício”. Porque a loucura tava ali, tava muito perto, eu vi. A gente flertava com ela. Flertava com a loucura, com a morte. Eu acho que eu escapei por pouco de ser internado, aliás eu pedi ao meu irmão para ser internado. Teve um dia que eu disse, “olha, eu vou perder o controle”. Eu botei isso depois, tem uma cena lindíssima inspirada em um trabalho do Bispo do Rosário, um texto que é inspirado nos próprios escritos dele, e ele fala: “me prende, me prende que eu vou virar rei. Se você não me prender eu vou virar rei, eu tô virando rei, me prende, me prende”. Ele tinha consciência de que iria passar para um outro lado e precisava ser preso para não fazer mal a si mesmo e às outras pessoas. 

A relação com a contracultura se dava em todos os planos? 

É, rapaz, a contracultura era uma coisa que estava anunciada e para nós era um cavalo de batalha, a gente queria estar imerso nela. Com a pouca idade que tínhamos, nós sentíamos que fazíamos parte de alguma coisa que era contra (risos), e queríamos ser contra, queríamos denunciar a nudez do rei, queríamos botar o dedo na ferida. 

Edgard, e a literatura?

Sem método, sem sistematização, eu tive as minhas leituras: Jorge Amado, Eça, Dostoievski, Allan Poe e, claro, Lewis Carroll. Ali começa, naquela mistura de conto de fada com conto de safadinha. Alice é um conto de safado, né, para adultos, trabalhando com o universo da perda da ingenuidade, da pedofilia mal sugerida, apenas insinuada. Li também aqueles outros poemas, baseados em joguinhos de palavras, e que destituem a razão de qualquer sentido mesmo, tudo é sensitivo, mas ele dinamita com essa estrutura da linguagem e da estrutura do pensamento, da lógica. Toda lógica tem que ser pulverizada. O cinema foi também uma vítima de minha inserção no mundo psicodélico, porque eu precisava desmontar, desarrumar e mostrar o quanto minha cabeça estava desarrumada. As palavras que se fodam. Lógica, foda-se. O homem tá lá no século 19 e já me deu essa dica de super-homem, poderosa, que eu vou trazer até o fim da vida, até aqui agora o meio da vida.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. "16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil": de 30 de setembro a 25 de outubro de 2007, p.16-17, Edições SESC SP, São Paulo-SP, 2007, p. 126 - 127.