Com o advento das ferramentas digitais, realmente deixamos para trás – ou deveríamos ter deixado – as calmas águas de lagos e lagoas, e finalmente mergulhamos nos oceanos. O cinema desperdiça o cinema – sem dúvida temos que fazer melhor uso dele. Peter Greenaway

O desejo de romper com os limites físicos da tela-quadro e da narrativa literária – por meio de um uso mais inventivo das tecnologias da imagem – move o artista britânico Peter Greenaway em direção ao que considera o cinema do futuro.

Greenaway é conhecido pelos filmes que produziu nos anos 1990, combinações peculiares de obsessão catalográfica, preciosismo barroco e uma curiosidade artística amoral, que não se detém diante de tabus sociais. A mostra inclui uma grande retrospectiva de filmes e programas de TV realizados pelo artista.

Artistas

Obras

Entrevista Carlos Adriano, 2007

Entrevista

Carlos Adriano: Sua carreira seguiu certa seqüência: depois da pintura, a partir de 1966, os curtas experimentais; a partir de 1980, os longas-metragens e a televisão; e de 1990 em diante, as instalações. Muito embora a história – e, particularmente, a história do audiovisual – não seja algo linear, você vê algum desenvolvimento, ou um percurso “coerente ” na sua trajetória inicial, na maneira como essas “fases” se conectam ou se fundem umas às outras?

Peter Greenaway: Meu desejo de participar de tudo o que diz respeito ao aprendizado visual tem sido meu foco de interesse. Ainda acredito, com toda a sinceridade, que as sofisticações da estética da pintura nos últimos 2 mil anos moldaram nossa visão e interpretação do mundo, e continuam até hoje, da mesma forma. E a profunda energia da visão dos pintores sobre o mundo no século 20 influenciou profundamente todos os outros aspectos da nossa existência e da nossa compreensão. Sempre desejei que o cinema assumisse essa responsabilidade, mas infelizmente raramente conseguiu, pois é um meio de comunicação essencialmente baseado em texto, e não em imagem – e não precisaria ser assim, necessariamente, mas a necessidade de contar histórias, de reproduzir as atividades de uma livraria e de atrair o denominador comum menos exigente dos interesses humanos sempre manteve esse posicionamento, com raríssimas exceções. Comecei minha carreira profundamente fascinado pelas estruturas, sequência e registros do tempo visual – todos eles uma reação às atividades da época nas décadas de 1950, 1960 e 1970. Foi um começo otimista, uma defesa total da excelência dos objetivos da pintura e a esperança de ver sua equivalência no cinema. Percebi que tais ambições eram ambiciosas demais, e que o público interessado nessas coisas seria mínimo, limitado e regional. Para ampliar o potencial de comunicação desses elementos, e com a esperança de disseminar minha empolgação com a linguagem visual, empenhei-me em demonstrar as mesmas ideias em arenas mais públicas e mais conhecidas – em especial, claro, na narrativa do cinema – muito embora se tratasse de narrativa mais sofisticada, perceptiva e radical de cineasta europeu, também especial (do chamado cinema de autor). Meu primeiro sucesso, por exemplo, O contrato do amor [The Draughtsman’s Contract], foi, na verdade, um filme que questionou o conceito: “o artista tem que desenhar o que vê ou conhece?” – um argumento suficientemente conhecido, compatível com todos os argumentos relacionados à arte desde o renascimento florentino – porém, a maior parte do público que aplaudiu o filme, assim como os críticos que a ele concederam prêmios, fez isso porque entendeu ser um drama inglês, em uma casa de campo, na categoria de ficção policial inglesa – muito embora estivesse muito mais para Patricia Highsmith do que para Agatha Christie. Seguiu-se uma série de filmes na mesma linha, criando um equilíbrio entre os objetivos visuais profundos e a acessibilidade. Foi, de certa forma, uma dissimulação – dourar a pílula do radicalismo visual extremo com muito daquilo que o público de cinema esperava do cinema – daí o tom de ironia crescente. Sempre queria dizer que não estava realmente dizendo a verdade, ou, pelo menos, a verdade que queria dizer. Acho que todos nós conseguimos conviver com este mundo porque contamos mentiras – raramente nos é permitido dizer a verdade – encarar a verdade é por demais desconfortável – então, não teríamos sucesso. Se realmente resolvêssemos contar a verdade, viveríamos em tal isolamento e solidão que seríamos um fardo para nós próprios, o que seria insuportável, particularmente se, como eu, vocês preferissem ser gregários, otimistas e usufruir de maneira muito sincera da comunicação humana. O esmaecimento gradual e a falência posterior do cinema europeu radical, seguido pela dominação da televisão, mereciam atenção, e as duas arenas de interatividade e de multimídia das quais o cinema não trata devem ser contempladas, daí o consequente desencanto com o cinema e o enfraquecimento do seu significado. Creio que a linguagem do cinema seja extraordinária por si só, especialmente quando vista pelos olhos da linguagem televisiva, que é muito mais inventiva, muito mais ousada, muito mais experimental e muito mais abrangente. Com o advento das ferramentas digitais, realmente deixamos para trás – ou deveríamos ter deixado – as calmas águas de lagos e lagoas, e finalmente mergulhamos nos oceanos. O cinema desperdiça o cinema – sem dúvida temos que fazer melhor uso dele. Os experimentos e a pesquisa continuam. Talvez seja o caráter missionário, não tão popular na nossa época – mas quero que as pessoas gostem de assistir, quero que se transformem em grandes espectadores filosóficos e que façam uso do aprendizado visual para realizar grandes feitos.

Você sempre cita Vermeer, Bruegel , Velásquez e Rembrandt. Será que a pintura – este modo de produção antigo e artesanal – vai sempre se manter como a estrutura central e fundamental no seu trabalho?

Minha primeira resposta já incluiu grande parte da resposta para esta pergunta. Tenho enorme fascinação pela representação no mundo pela pintura. A contribuição oferecida pela pintura – consciente, mas, em geral, inconsciente – molda a maneira pela qual vemos o mundo. Conceitos de forma, beleza, imortalidade, paisagem e cultura são fruto de sua criação. Vamos pensar no século 20, quando a pintura e os pintores criaram o surrealismo, o cubismo, o estruturalismo, o minimalismo e o pós-modernismo. Todos esses processos de pensamento começaram com os pintores, desaguando na filosofia geral, para depois cair no uso comum. Podemos facilmente reconhecer o efeito da literatura no nosso modo de pensar no século 20 – Proust (a meditação e lembrança), Kafka (as burocracias da alma), Joyce (narrativa infinita e estruturas da língua), Borges (o escolasticismo metafísico), Márquez (o realismo mágico) – porém, raramente reconhecemos a influência exercida pelos pintores, como Picasso (o metamorfismo contínuo, a não-figuração), Corbusier (a dissolução da forma clássica), Duchamp (a legitimização do conceitualismo), Johns (os novos valores para os signos), Rauschenberg (os valores da intermídia), Warhol (o colapso das categorias artísticas) etc. Giacometti disse certa vez que sua avó provavelmente saiba pouco ou nada sobre Picasso, mas tenha certeza de que Picasso sabe tudo sobre sua avó. A experiência cultural da pintura certamente influencia, de maneira lenta e gradual, o seu modo de se vestir, de comer, pensar, crer, olhar, ver, falar e agir. Quando jovem, eu era fascinado pelos pintores contemporâneos; porém, aos poucos, a rica história da pintura em geral começou a tomar conta de mim, e meu entusiasmo pelo barroco – especialmente pelos grandes pintores que se utilizavam da luz artificial e do movimento – Caravaggio, Velásquez, Rembrandt –, as preocupações do barroco com relação a excessos e o mundo não-europeu, mais amplo e não-cristão, gradualmente ganharam precedência. A pintura usa tecnologia básica e barata – giz colorido sobre paredes, grafite e aquarela sobre papel –, pode ser usada por uma sociedade não-elitista, foi preparada para aceitar o fracasso, exige experimentação – nenhuma destas qualidades e características está presente no cinema, e como a pintura é tão barata, tão “nada técnica”, tão preparada para ser capaz de fracassar, o eventual sucesso adquire especial significado e profundidade.

Como se sente ao ser classificado de renascentista, no sentido de ser um artista multimídia? Seria possível (ou razoável) “atualizar” o conceito de ópera (no escopo de Wagner ) para o domínio digital de imagem em movimento e criação de som? 

Todos os bons artistas que se prezam provaram que praticam a multimídia. Nunca devemos pensar no termo “multimídia” como sendo contemporâneo. Michelangelo fez bolos de casamento. Bernini atuava em todas as áreas. A especialização é, sem dúvida, uma aberração na história da criatividade – e é uma característica mais da sociedade do que do artista. E agora que chegamos à era da informação com ferramentas digitais extraordinárias, as possibilidades se multiplicam em todas as direções, quase sem limites. Não podemos, de forma alguma, deixar escapar essas oportunidades. E não se esqueçam de que Wagner foi o maior hipócrita – com relação à fama, às mulheres, à política, à imortalidade, à Alemanha, ao dinheiro – ele jamais almejou um Gesamtkunstwerk, no seu melhor e mais refinado sentido; tudo o que ele queria era que todas as artes servissem à ópera. Para ele, o compositor era um rei, e todas as outras artes eram seus meros súditos.

Artistas radicais do cinema, como você, levantam a bandeira “o cinema está morto, vida longa ao cinema” (título de um de seus artigos). Você poderia dar uma nova definição de cinema (cinema eletrônico, cinema pós-mídia)? Qual seria um novo paradigma para o cinema (como você escreveu certa vez “temos que reinventar o cinema”)? Você acha que o chamado “cinema digital ” poderia concretizar, ou tornar real, o ideal de um cinema “puro”, “completo”, “verdadeiro”?

Raramente conseguimos encontrar palavras para um fenômeno novo com alto grau de perceptibilidade. Tantos termos usados para movimentos artísticos são expressões abusivas, cunhadas por críticos infelizes – barroco, maneirismo, rococó, fauvismo, impressionismo, pop art...? Sem dúvida podemos encontrar um termo para o novo pós-cinema, mas suspeito que este termo acabe por se encarapitar em nós e não se anunciar formalmente até que tenha sido usado o suficiente para se tornar conhecido. Independentemente de como nos chegue, esse termo terá que necessariamente descrever uma entidade interativa e multimídia (ambos termos insatisfatórios e desajeitados), e provavelmente terá que fazer uma reverência especial ao elemento visual. É curioso que as invenções do final do século 19 e do começo do século 20 – todas cunhadas por cientistas e inventores cuja língua materna era o inglês e que tinham formação em humanidades – tenham raiz latina ou grega: televisão, cinematografia – prontamente abreviadas para TV e cinema. Alguns termos se recusaram a pegar, é claro. Velocípede, praxinoscópio? Realmente acredito que as novas ferramentas digitais possam nos libertar das tiranias do texto, do quadro, do ator e das câmeras – todos emprestados de outras artes e de outros contextos, resultando num monstrengo, uma coisa híbrida, uma quimera bastarda que nunca chegou a descobrir seu verdadeiro papel. Usando uma analogia darwiniana, da história natural – o cinema sempre teve tamanha capacidade de interagir com todas as outras artes que nunca chegou ao status de auto-regulação e auto-reprodução do especiesismo, fenômeno essencial na história natural que define uma nova espécie, que diferencia uma zebra de um burro e que prevê – por mais difícil, árdua e repetitiva que seja a tarefa – que jamais produzirão uma prole satisfatória. O cinema pode ser tão facilmente desconstruído em seus componentes que nunca alcança autonomia, e agora imagino que seja muito tarde – os animais pequenos, rasteiros, superaram o dinossauro, cujas extravagâncias arrogantes o deixaram moribundo. Ao contrário da crença popular, ouvimos dizer que a melhor coisa que poderia ter acontecido para a pintura foi a fotografia – pois a fotografia permitiu que a pintura pudesse se dedicar ao que realmente deveria: não imitar, não documentar, não tentar espelhar a realidade, mas desenvolver o mais rico dispositivo do universo – a imaginação humana – ao buscar compreender a condição humana. Não temos razão em supor que cada camada retirada da casca da complexa cebola que representa o início do cinema nos aproxima das ideias de um cinema verdadeiramente desmonstrificado? Picasso disse: “Não pinto o que vejo, mas o que penso”. Por mais curioso que pareça, talvez tenhamos que abrir mão dos olhos e ir direto para o cérebro. A afirmação de Picasso é um bom conselho.

Além das salas de cinema e cinematecas, galerias de vídeo ou museus, agora temos uma série de outras possibilidades, como, por exemplo, os telefones celulares, a internet, o iPod … Qual sua avaliação destas situações site-specific e destes novos públicos? Estes novos espaços para exibição de imagens em movimento de alguma forma mudam nossa percepção e ampliam os quadros convencionais para um novo tipo de espectadores?

Sem dúvida temos que trilhar estes novos caminhos de interesse – o cinema pode ter morrido, mas o conceito da tela continua. Estamos, realmente, na era da tela – de maneira onipresente. O cinema vai se retirar de cena, e vai se tornar uma memória para acadêmicos. Quem hoje ainda assiste ao cinema mudo – aquela indústria imensa que cativou o mundo com tanta rapidez? Em 1910, quinze anos após sua invenção, o mundo todo já sabia o que seria o cinema, e o mundo todo já tinha passado pela experiência. Nada antes dele havia viajado em tamanha velocidade – e, desde então, apenas a rede cibernética viajou mais rápido. O cinema sonoro seguirá o mesmo caminho – se considerarmos o que aconteceu recentemente com os discos de vinil, com o fenômeno hi-fi e o videoteipe, o cinema sonoro vai ter um percurso tão rápido, tão rápido, que vamos ter que logo olhar para trás para conseguir ver o rastro da poeira no caminho. Provavelmente vejamos a repetição da sua história no relógio de pulso, no telefone celular, no laptop ativado por voz – mas, claro, todos serão também ultrapassados logo – e se pudermos sair incólumes e sãos destas águas turbulentas, sem dúvida tudo isso será interiorizado e desenvolvido de acordo com nosso olho interior. Ainda há um bom caminho entre a tela de pulso e as células do cérebro – mas a distância está diminuindo.

De que maneira você definiria Tulse Luper e o encontro do projeto com o Brasil?

Tulse Luper foi minha reação às limitações do cinema contemporâneo – tiranizado pelo texto da livraria, pelo quadro da apresentação visual pós-renascimento, pelo uso do ator no século 19 e pelas limitações da câmera mecânica de celulóide. Queria demonstrar um novo ideal interativo e multimídia. O cinema ultrapassou sua característica de entretenimento social, perdeu seu lugar particular e especial como o único veículo da moral pública e da educação intelectual – o último período de florescimento foram os vinte anos de atividade do chamado cinema de autor na Europa, que provavelmente criou seus maiores expoentes – e eu fui aluno desse tempo. Agora eu quis criar uma peça de linguagem cinemática que não se limitasse a usar suas roupagens antigas. Tulse Luper Suitcases é deliberadamente multifacetado, muito embora o vocabulário cinemático esteja no seu âmago. É cinema, website, DVDs, televisão, videogames, teatro, ópera, exposição, sessões de VJ, e muita leitura e conversa. Em São Paulo esperamos apresentar apenas três desses componentes – o cinema, com um filme de sete horas de duração; a exposição, com as 92 maletas do filme; e uma sessão de VJ de cinquenta minutos para demonstrar um futuro possível para a Ideia da Tela Emancipada, e muita, muita, muita conversa.

Como você lembrou numa entrevista, John Cage sugeriu que se você acrescentar mais de 20% de novidade a qual quer trabalho de arte, você perderá 80% do seu público. Nessa mesma ocasião, você mencionou seu desejo de “continuar fazendo filmes, sem qualquer condescendência ou patronato”, mas “filmes ao gosto da cultura dominante”, longe da torre de marfim, porém sem ser um “cineasta underground”. Você disse “quero fazer filmes para um público o mais abrangente possível, mas seguindo meus próprios conceitos”. Como equilibrar tais ambições? Você acha que galerias e museus têm um público de elite, enquanto a internet seria um meio de comunicação “pop ” ou de massa? 

O equilíbrio da equação apresentada pela necessidade de fazer cinema público segundo meus próprios conceitos é, sem dúvida, perigoso. Porém, o fato de eu estar aqui respondendo às suas perguntas, e de participar do Festival Videobrasil é uma indicação de que as coisas não vão tão mal. Estamos numa nova era da informação, podemos progredir e nos afastar daquela pequena poça estagnada, imbuída de conceitos pequenos e limitações de conteúdo que se tornam cada vez menores e mais odiosos a cada dia que passa – sempre as mesmas ideias, situações, formulações, os mesmos conteúdos e enredos, fazendo um intercâmbio de conceitos já conhecidos, fatos retrabalhados, gêneros repetidos: como urinar reciprocamente nos sapatos de todos. Vamos abraçar um campo mais amplo – vamos construir mundos com centros diferentes, com sintaxes diferentes. O entusiasmo pela arquitetura e o consequente vocabulário de planos, fachadas e elevações construíram A barriga do arquiteto [The Belly of an Architect]. A emoção pela caligrafia e pelo texto versus imagem criou O livro de cabeceira [The Pillow-Book]. A última tempestade [Prospero’s Books] prioriza a dança e a coreografia. O ritual e a procissão dominam O bebê santo de Macon [The Baby of Macon]. As preocupações cinemáticas já conhecidas não estão ausentes — identidades emocionais, continuidades narrativas – todos os ganchos com um mundo familiar que não desvia a atenção nem tira o brilho do interesse ao falar em uma linguagem inteiramente diferente são reconhecidos, porém, as fronteiras sem dúvida devem ser expandidas. Estes filmes são, na verdade, sobre a arquitetura como responsabilidade; a caligrafia como um meio de reunir, mais uma vez, imagem e palavra; e a coreografia para nos fazer novamente sentir o espaço e o ritual como elementos fundamentais na hierarquia das coisas – estes filmes não têm personagens anedóticos facilmente manipulados pelo autor do diálogo que prevê emoções terapêuticas e catárticas. Será o cinema, realmente, uma desculpa para o sofá do terapeuta, a cadeira do médico, o confessionário do padre ou a poltrona do clube de striptease? O cinema-realidade [reality cinema] enfrenta muitas limitações: a busca da realidade é com frequência um mero exercício de pura imitação, e a tentativa superinteligente e superdescolada de “ser um diretor de cinema”, de “fazer cinema” ou de “repaginar Hollywood” é em geral vista como um fim que merece aplausos por si só. É curioso que as galerias estejam se tornando salas de cinema, e que os cinemas estejam se tornando galerias – conceitos da alta e da baixa cultura em colisão, Steve Reich conversando com Sting... e há tanta gente no mundo que todos os tipos de minorias estão crescendo, realmente. Estas minorias servem de apoio para heterodoxias – e podemos continuar a prosperar. 

Você poderia falar sobre seu uso da ironia (como estratégia estrutural) no seu trabalho? Em quê sua ironia difere de uma estratégia pós-moderna de ironia?

Tenho certeza de que todos concordamos que a tolerância, o entendimento, a aceitação do ponto de vista oposto – com espirituosidade, humor e sofisticação – são os elementos constituintes da ironia. A doutrina cartesiana baseada no preceito “Conhece-te a ti mesmo” tem que ser lida como uma crença contemporânea. Já não há mais verdades estabelecidas. Hoje, apenas o subjetivo é válido. Não existe mais aquela coisa chamada história, apenas historiadores. Deus, o Diabo, Freud, Ciência e – claro – até mesmo nossas mães: todos frágeis instrumentos para se compreender a condição humana. Temos que seguir em frente, mas devemos estar plenamente conscientes – pois temos tal consciência – de todas estas possibilidades. O dualismo da filosofia aristotélica deve ser substituído. Já não há mais isto ou aquilo, agora existe isto e aquilo. E a ironia é exatamente o oposto da postura fundamentalista – que tenho certeza devemos todos nos empenhar para combater e erradicar. Copérnico, Galileu e Darwin jogaram toda a nossa vaidade para o alto – vivemos em um planeta muito, muito congestionado. Borges sugeriu que a história do mundo deve ser uma história de todos os que dele fazem parte, vivos ou mortos. A ironia é uma maneira de se começar a lidar com estes monstros enganosos.

Algumas visões estreitas (ou “puritanas”) consideram seus filmes escandalosos no que diz respeito a sexo. Ao mesmo tempo, você adota uma abordagem radical no que diz respeito à forma (estilo, estrutura). O que você diria sobre a transgressão que você cultiva tanto na “forma” quanto no “conteúdo”? E o que você poderia dizer sobre o papel do erotismo nos seus temas (temas dos filmes) e o papel do apelo erótico nas formas sensuais com as quais você lida em seu trabalho?

A procriação predomina – assim como todos os mitos, as filosofias, as desculpas e justificativas, os excessos voluntários ou involuntários, as hesitações religiosas, as anulações, as exortações, os encantamentos, as moralidades e as dubiedades que a acompanham. Você consegue pensar em uma força maior que esta para a existência? Vivemos para procriar – não apenas nós, mas as pulgas e os hipopótamos também. Todos os nossos sistemas de governo, de coesão e de exortação são construídos ao redor deste obstáculo e desta energia admirável. Nossa sociedade está constantemente se dilacerando entre suas necessidades incontroláveis – Playboy, ninfetas de Berlusconi na TV, a sexualidade na Second Life, Oscar Wilde, as musas de Ticiano, a Vênus de Willendorf, John Knox, João Calvino, Savanorola, o celibato papal, Cristo exibido de maneira sadomasoquista na cruz, os genitais do Menino Jesus sempre à mostra, circuncisão em mulheres e homens, o êxtase de Santa Teresa… a lista é infindável, infindável, infindável. Sem dúvida há apenas dois temas – sexo e morte. Do que mais vamos falar? Balzac sugeriu dinheiro, mas este tema está facilmente implícito em sexo e morte – quando pagamos por um para evitar o outro – Eros e Tânato; começos e finais – os dois fenômenos não-negociáveis em última instância – não se pode derrotá-los, talvez atrasá-los um pouco, cancelá-los, subvertê-los só um pouquinho – a vida contemporânea parece estar constantemente tentando fazer isso, mas, ao final, temos que confrontá-los. O tema ideal para contemplação ilimitada. Os grandes temas-tabus nos séculos 20 e 21 são o aborto, a homossexualidade e a eutanásia. A Holanda, meu país adotivo, encarou de frente todos eles – e fez as pazes com eles –, mas não creio que o mesmo tenha acontecido na maioria dos países. Estas são as paranóias contemporâneas do sexo e da morte. Minha formação em pintura foi anterior à conversão de todas as escolas de arte a Mao-Duchamp. Desenhávamos os modelos e os nus durante vinte horas por semana. O centro do foco da arte ocidental sempre foi, tradicionalmente, o nu humano – um tema que trata da dificuldade, da virtuosidade e certamente do desejo. Nível de excelência da capacidade provável, do peso, da substância, da visão, da sombra, da cor, da forma, da mobilidade, da sensualidade, da vida em si. O cinema raramente trata destes assuntos, se é que trata em algum momento. Mas deveria. Estou tentando recuperar o tempo perdido. O desejo sexual do homem faz o mundo girar, girar e girar. Será que assistiram ao filme Oito mulheres e meia [Eight and a Half Women]? 

Seu início como editor de filmes em meados de 1960 no COI (agência de marketing e propaganda do governo britânico) exerceu alguma influência em seu trabalho ou na sua abordagem para filme e vídeo? Você considera a “montagem” um dos componentes básicos essenciais para os filmes?

Hoje, nos primeiros anos do século 21, o editor é o rei (e muitas vezes, com um pouco de sorte, a rainha): o consertador por excelência, como na verdade é seu próprio editor em tantas arenas pós-revolução digital. O escrutinador, o transformador, o arranjador, o porteiro. Hoje, tudo é manipulável, não apenas o arranjo, a disposição e o ritmo das cenas, mas as próprias cenas: a cor, o contraste, o alargamento, a distorção seletiva, cada metamorfose na cena. Isso tudo costumava ser tarefa exclusiva (ou quase) do cameraman. Agora, é território do editor. Tomei a decisão consciente no início da década de 1960 de aprender um ofício que fazia parte do processo de fazer filmes, e não havia dúvida alguma que teria que ser edição de filmes. Por inclinação e personalidade, sou um irônico hermético, um misantropo, eternamente desconfiado da narrativa e de todos os seus pequenos comportamentos, suas artimanhas, seus tiques e maneirismos curiosos e insignificantes. Sou colecionador e cotejador, um elaborador de listas e catálogos, fazendo infindáveis arranjos e classificações. Praticamente todos os meus filmes são catálogos de filmes: oito disto, vinte daquilo, 92 daquilo outro, três daquilo mais. Sejam pessoas, eventos, nádegas, cores, ouriços do mar ou períodos geológicos. É assim que escrevo histórias, roteiros, romances, peças, óperas. Sou como um auxiliar de escritório. Os editores são como auxiliares de escritório – ordenam tudo, acertam a seqüência dos cartões de acordo com a necessidade. Adoro museus e dicionários, listas de endereços e enciclopedistas, e centrais de achados e perdidos. Meus heróis são Diderot – quando não estava com Catarina, a Grande; D’Alembert, quando não estava investido de pompa; Samuel Johnson, quando estava bêbado e irado; Lineu, na pedreira sueca; Dante, em seu exílio melancólico achando que sua Comédia era uma tentativa de “unir os anjos dos céus às pedras do caminho” e, por fim, tudo seria uma desculpa para voltar para Florença, sua casa. E para Beatrice. O COI, com seu título de politburo kafkiano, era uma organização de propaganda para ensinar o estilo de vida britânico nas colônias do ex-império britânico que acabavam de inaugurar suas estações de televisão – foi-me ensinado que filme era uma espécie de propaganda de pornografia light: o encanto e o desengano das estatísticas, a voz autoritária, os dados demográficos, a arte da citação bem-colocada, a manipulação sofisticada, “a economia da verdade é não mentir” (Margaret Thatcher). Um jogador natural da cabala, naturalmente articulado na solução de palavras cruzadas, simbolista e emblemático por natureza, alegorista, metafórico – edição tinha que ser meu métier – a verdade, afinal, nos chega à velocidade de 24 quadros por segundo. E o COI era, por default, juntamente com suas calúnias (quase) inocentes, um grande professor. Certa vez fiz dois filmes ao mesmo tempo. Um filme de trinta minutos chamado Act of God, para a Thames Television, sobre pessoas atingidas por raio e que sobreviveram, que, dentro do meu possível, era absolutamente verdadeiro, embora incrivelmente bizarro, e The Falls, um filme de ficção de três horas para o British Film Institute, que era um acúmulo de puras mentiras, e também bastante bizarro. Um público considerável no mundo todo acreditou no segundo e se recusou a acreditar no primeiro. Viram só? Este era o treinamento instituído pelo COI. 

Quais filmes ou cineastas você considera chaves no processo de fazer cinema como arte de verdade? Algum filme ou cineasta recente chama sua atenção? 

Se pensarmos no início do cinema com os irmãos Lumière, em 1895 (alguns podem considerar esse início na Grécia antiga), então, temos 112 anos deste meio de comunicação. Seria tempo suficiente para criar um acervo crítico substancial? Afinal, foi só a partir da década de 1860 na Europa que a pintura finalmente se separou da ilustração do texto (história e mitologia greco-romana e judaico-cristã) que persistiu durante mais de 2 mil anos – para se tornar autônoma e independente. O cinema que utilizava celulóide foi um veículo lento, conservador, e suas condições básicas não mudaram muito – com equipamentos mais especializados e mais confiáveis e uma máquina de publicidade muito maior – porém, a insistência narrativa, a representação psicológica de personagens de causa e efeito (tanto Freud quanto o cinema publicaram seus primeiros trabalhos na década de 1890), a ética cristã (negativismo à redenção, necessidade de isolamento e o desejo geral de um final feliz, ou pelo menos, da satisfação resolvida) ainda estão em meio a nós. Separou-se dos gêneros literários emprestados. Scorsese e Griffith fazem o mesmo tipo de filme, com a infeliz introdução narrativa que se apóia fortemente na história do cinema, e, portanto, o transforma em uma relação baseada no texto e escravizada pela livraria – certamente uma vítima do texto. A única tentativa verdadeira de encontrar uma linguagem diferente e desvinculada dos livros pode ser vista no trabalho de Eisenstein, o gigante do cinema: sua visão e sua prática da teoria de montagem são sua invenção particular, decididamente visual, raramente literária, descompromissada em seu ataque direto. E Eisenstein, o inovador da gramática e da sintaxe na linguagem cinemática, é sem dúvida o único cineasta que pode ser comparado a Shakespeare e Beethoven pela ousadia da “poderosa” inovação/ consolidação sem constrangimento. Certamente não há termos de comparação no quesito inovação/consolidação. A solidez e a profundidade da sua linha de raciocínio, da visão intelectual ampla, da abrangência da cultura do mundo, da compreensão do meio do cinema novo – seu legado é admirável. Chego a pensar que talvez Méliès possa ser outro candidato. Foi dele a manipulação do aparato visual, muito embora não tenha feito isso conscientemente, pois ele é, em grande parte, um gênio por acaso, e pode-se pensar que qualquer um poderia ter logo descoberto e desenvolvido o que ele descobriu. Nos primeiros filmes, todos os outros cineastas em geral copiavam o teatro, e o cenário foi piorando muito até que todos sucumbiram e passaram a contar histórias de ninar para adultos – roubadas da literatura: ilustradores, e não criadores de primeira linha, maestros, e não compositores. A busca de inovação no cinema gerou, de quando em quando, uma excitação pontilhada por encontros e desencontros, dias de sol e tempestades, e frisson – tudo, em geral, de caráter social e político (novas respostas a mais uma inovação técnica), o enquadramento do close-up, a câmera em movimento, o som, a cor, as câmeras menores, as câmeras de qualidade inferior etc. (o exotismo agregado à dissidência), sejam a heterodoxia russa, chinesa ou norte-americana, ou as várias revoltas contra os robber barons [“barões ladrões”, os megacapitalistas americanos da segunda metade do século 19, começo do século 20], a audácia frente ao status quo (épater les bourgeois), a luta pelo status da boemia ou da avant-garde (que John Lennon sugeriu ser a palavra francesa para merda) e legitimamente apenas um centímetro à frente da corrida selvagem da estética: os curingas legitimados no palácio dos reis, contanto que sua subversão seja levemente graciosa e controlável (por exemplo, se ele realmente nos aborrecer, simplesmente não lhe damos mais dinheiro para nos aborrecer de novo, nunca mais). Com o passar dos anos, e alguns destes anos já se vão há muito, me entusiasmava com meus pares, em geral europeus, e em sua maioria franceses e italianos – mas com exceção, talvez, do filme que mais se aproximou do filme verdadeiro, O ano passado em Marienbad [L’Année dernière à Marienbad], de Resnais (tenho minha própria cópia de 35 mm em oito rolos), não gostaria de necessariamente assistir a nenhum desses filmes novamente. No entanto, o desejo de ver um grande número de quadros me leva, regularmente e repetidas vezes, com muito entusiasmo, às melhores galerias da Europa. Continuo otimista. Acho que os últimos 112 anos não foram tão bem registrados pelas telas. Agora, com ferramentas mais eficientes, com maior conscientização e com melhor compreensão do filme como linguagem, vamos começar a viagem para os próximos 112 anos, que sem dúvida terão que ser muito melhores.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. "16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil": de 30 de setembro a 25 de outubro de 2007, p.16-17, Edições SESC SP, São Paulo-SP, 2007, p. 38 - 52.