Ensaio 2005

"Riscos do Tempo Presente" - por André Brasil, Christine Mello e Eduardo de Jesus


Riscos do Tempo Presente


por André Brasil, Christine Mello e Eduardo de Jesus


Poesia é risco. O célebre poema-síntese, enunciado, em suportes vários, por Augusto de Campos, reverbera, estranha e inversamente, na fórmula místico-empresarial de Andrew Grove(1): “só os paranóicos sobrevivem”. Para o diretor da Intel, em uma sociedade do risco e da instabilidade, é preciso ter a sensação de permanente ameaça. Diante da cínica lucidez de Grove, a conclusão imediata é a de que, para além dos seus processos de exclusão e de suas disparidades econômicas, o capitalismo contemporâneo opera perversamente no âmbito das subjetividades: somos incitados a nos posicionar contra tudo e contra todos, em uma estratégia individualista e competitiva arriscada.


Seja qual for o nome que damos a ela - sociedade do risco, da incerteza ou da instabilidade - a experiência contemporânea é frágil: vivemos na corda bamba, em um equilíbrio precário entre a perspectiva de, afinal e uma vez por todas, usufruir os avanços prometidos pela tecnociência e, por outro lado, a perspectiva - alardeada tanto pela mídia quanto pelo discurso científico - do próprio fim (da história, da arte, da ciência, da filosofia, do humano, da vida).


Antes de tudo, o risco é uma retórica (o que não quer dizer que não seja real e não interfira concretamente em nossa vida). Quando se concretiza, ele já se tornou uma catástrofe, um dano. Para que continue sendo um risco, é preciso que ele se mantenha latente, iminente, prestes a acontecer. Por isso, o risco é sempre algo que se situa no limite do discurso, em suas bordas.


Hoje, a mídia parece ser uma das principais fontes do discurso acerca do risco: ali, estamos sempre na iminência de uma catástrofe ambiental, de uma guerra nuclear, de um atentado terrorista, de contrair um vírus incurável, de perder o emprego, de ter a casa assaltada, de atravessar uma crise econômica... cada vez mais presente em nosso cotidiano, em sua extrema visibilidade midiática, a retórica do risco acaba por legitimar o controle. Diante do risco sempre próximo, reivindicamos mais e mais segurança, mais e mais polícia, mais e mais vigilância, mais e mais controle. Como nos sugere Giorgio Agamben(2), a instabilidade legitima a transformação do poder político em poder de polícia.


Ou seja, a experiência contemporânea deriva de um desejo contraditório: convocados a nos tornar empreendedores de nós mesmos, incitados a participar das redes de informação, entretenimento e consumo, precisamos continuamente nos arriscar, mas - não, obrigado - não queremos arcar com os riscos. O que imediatamente deriva desta contradição é uma espécie de assepsia da experiência: não sem que, antes, ela seja traduzida em informação, essa nova forma de comunicação que tudo esclarece, tudo explica(3).


Assepsia do espaço, que se torna cada vez mais transparente, visível, mapeado e monitorado em suas dimensões macro e microfísicas. Assepsia do corpo, que pode ser esquadrinhado e investigado por instrumentos óticos cada vez mais sofisticados e que, descoberto seu código de funcionamento, torna-se passível de ser manipulado indefinidamente.


Mas, aqui, é principalmente do tempo que se trata. Sabemos que as diversas técnicas desenvolvidas no campo da comunicação e da informática, da biotecnologia e da engenharia genética alteram nossa experiência do tempo, que parece se pautar cada vez mais pelas idéias de previsibilidade e antecipação.


Através de técnicas de simulação cada vez mais sofisticadas, utilizadas em campos os mais diversos - da genética às finanças - tornamos previsível o que é imprevisto, traduzimos o possível em informação passível de ser medida, calculada, previamente experimentada. Se, para Bellour, “o tempo constrói a imagem devorando-a, como um cigarro se consumindo”(4), o filme agora é reverso: é a imagem que - plástica, dinâmica e processual - consome o tempo, em sua voracidade por antecipá-lo.


Acaso, imprevisto, devir: aquilo que o futuro apresenta de risco, virtualidade e diferença irredutível em relação ao presente passa a ser monitorado, controlado através de todo tipo de técnica preventiva e de simulação. Ou seja, para reduzir o que a experiência possui de “arriscado” precisamos nos cercar de mais e mais informação, o que torna o nosso um cotidiano cada vez mais in-formado. Como diria Jean-Louis Comolli(5), vivemos uma vida cada vez mais roteirizada, protegida do “risco do real”.


Nesse contexto, a imagem eletrônica e digital possui um estatuto ambíguo. De um lado, tornada informação, ela pode participar de dispositivos de vigilância e simulação, ampliando a transparência do espaço e a previsibilidade do tempo. De outro, apropriada por estratégias artísticas e políticas contemporâneas, pode reinventar espaços de descontrole e abrir novamente o futuro ao risco. Mas, agora, trata-se de um risco de novo tipo, o risco da experiência estética, aquele que é capaz de reconfigurar o nosso campo de possibilidades, de ampliar o nosso horizonte de expectativas e o âmbito daquilo que considerávamos “pensável”.



Riscos eletrônicos


Em sua extrema instabilidade - “poeira nos olhos”, na feliz expressão de Fargier(6) - a imagem eletrônica se insere histórica e semioticamente entre os vários campos artísticos e comunicacionais, operando infiltrações, passagens entre um e outro, transformando-os e sendo por eles transformada. Hoje, mais do que nunca, a produção eletrônica vive uma proliferação expressiva, gerando formas impuras, imprevisíveis: formas que, por isso mesmo, não se adequam comodamente às classificações genéricas. Tudo isso contribui para tornar o campo da produção eletrônica uma zona de risco, espaço de tensão entre linguagens e estratos culturais.


Trata-se também de uma produção de caráter expansivo. As imagens eletrônicas - analógicas ou digitais - transbordam os limites da tela, redesenham os espaços urbano e doméstico, abrigando e transformando as subjetividades. Se, para Philippe Dubois(7), vivemos uma espécie de “estado-vídeo” é porque, da televisão às câmeras de vigilância, do videoclipe aos painéis eletrônicos, a experiência contemporânea é, cada vez com maior intensidade, mediada e reconfigurada pelos vários dispositivos eletrônicos, que operam ubíqua e instantaneamente. A imagem eletrônica torna-se, dessa forma, um estado da imagem e da própria realidade: através dela se processam e se pensam as outras imagens e nossa presença no mundo.


Mas, para além de seu caráter expansivo e permeável, a imagem eletrônica deve ser considerada arriscada principalmente pela sua dimensão de acontecimento. Essa dimensão pode ser investigada em vários sentidos. Um deles diz respeito à forma particular como a imagem eletrônica opera a inscrição do tempo: sua dimensão temporal, seu caráter processual a transformam num verdadeiro acontecimento eletrônico. Como esclarece Arlindo Machado, o quadro videográfico não existe no espaço, mas na duração de uma varredura na tela. As imagens eletrônicas, complementa ele, “não são mais expressões de uma geometria, mas de uma geologia, ou seja, de uma inscrição do tempo no espaço. Dessa forma, o tempo já não é, como era no cinema, aquilo que se interpõe entre um fotograma e outro, mas aquilo que se inscreve no próprio desenrolar das linhas de varredura e na superposição no quadro”(8). Acontecimento eletrônico, portanto, que vai se tecendo, processualmente, no momento mesmo em que a imagem se forma na tela. Risco da imagem que atravessa e é atravessado pelo risco da experiência.


Há outra forma de se pensar o estatuto de acontecimento próprio à imagem eletrônica. Menos recorte de um instante do que fluxo ininterrupto de sinais luminosos, a imagem eletrônica se processa em tempo real e permite, muitas das vezes, a coincidência entre o momento de produção da imagem e o de sua exibição. Tempo real aliado a telepresença faz da nossa uma sociedade que se processa ao vivo, em constante superposição, em um presente expandido, de diferentes espaços e temporalidades. Podemos acrescentar criticamente, com Virilio(9), que, potencializadas pelas tecnologias eletrônicas e digitais, as imagens transmitidas instantânea e remotamente dominam a coisa representada, provocando ali uma espécie de acidente, um curto-circuito entre presença e distância. Configura-se, assim, uma “era paradoxal das imagens”(10).


Apesar de todas as ambigüidades políticas e estéticas produzidas por esse paradoxo, a abertura ao tempo real, ao fluxo ininterrupto do tempo presente, faz com que a imagem esteja aberta também ao acontecimento em sua imprevisível emergência. A contingência da captação da imagem aliada à sua instantânea circulação pode tornar-lhe permeada de aleatoriedades, eivada de pequenos (quase) acontecimentos.


Para além de seus aspectos meramente técnicos ou tecnológicos, mas deles indissociável, a apropriação estética da imagem eletrônica se efetua tendo em vista, portanto, seu caráter temporal, processual e de acontecimento. O artista que lida com a matéria-prima eletrônica acaba por moldar, manipular, ou melhor, modular o próprio tempo. Com isso, ele pode abrir a imagem à duração, ao acontecimento, ao risco do tempo presente e tudo aquilo que ele comporta de contingência e descontrole.


Aberta à duração, a imagem pode, então, abrigar o eventual. Pode, muitas das vezes, até mesmo provocá-lo, como é o caso de certos procedimentos documentais ou performáticos que visam menos registrar do que produzir uma experiência (que não aconteceria não fosse a intervenção daquele que, através da câmera, a produz).


O evento, “o inesperado de toda esperança”, diria Blanchot, é aquilo que pode nos afetar e, com isso, reconfigurar, ampliar nosso campo de possibilidades: quando atravessa a imagem em sua inapreensível aparição, o acontecimento pode nos fazer pensar o que a nós era antes impensável. Abre-se ali um território arriscado: “um espaço sem lugar e um tempo sem engendramento”(11), onde caminha “um pensamento que ainda não pensa”(12). Ambígua, precária, instável, a imagem se instala então nessa zona de risco, onde é impossível discernir, decidir, explicar, agir. Resta-nos “... um esforço, não para expressar o que sabemos, mas para sentir o que não sabemos”(13).


Podemos retomar o célebre poema de Augusto de Campos que inicia este ensaio: o risco poético, de muitas maneiras, se diferencia daquele risco que, através do discurso midiático ou tecnocientífico, nos deixa em estado de constante alerta, de constante paranóia. Se, com cada vez mais freqüência, o último é utilizado para legitimar o controle, a invasão de privacidade e a guerra (a justiça infinita, diriam alguns), o primeiro é aquele capaz de desfazer nossas certezas: com isso, reinventa nosso horizonte de expectativas, nosso campo de possibilidades. Trata-se, nesse caso, menos de antecipar o futuro para colonizá-lo do que de abrir virtualidades ainda inauditas.


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(1) Apud Sibila, Paula. “O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais”. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.


(2) Agamben, Giorgio. “Sobre a segurança e o terror”. In: Cocco, G. e Hopstein, G. (org.). “As multidões e o império: entre globalização da guerra e universalização dos direitos”. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002.


(3) Benjamin, Walter. “Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política”. São Paulo: Brasiliense, 1994.


(4) Bellour, Raymond. “Entre-imagens”. Campinas: Papirus, 1997, p. 41.


(5) Comolli, Jean-Louis. “Cinema contra espetáculo”. In: Forumdoc.bh.2001. Belo Horizonte, 2001.


(6) Fargier, Jean-Paul. “Poeira nos olhos”. In: Parente, André (org.). “Imagem Máquina”. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.


(7) Dubois, Philippe. “Cinema, Vídeo, Godard”. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.


(8) Machado, Arlindo. “O desafio das poéticas tecnológicas”. São Paulo: Edusp, 1996, p. 52.


(9) Virilio, Paul. “A imagem virtual mental e instrumental”. In: Parente, A. (org.). “Imagem Máquina”. São Paulo: Editora 34, 1993.


(10) Idem.


(11) Blanchot, Maurice. “O livro por vir”. Lisboa: Relógio D'água, 1984, p. 88.


(12) Idem, p. 60.


(13) Blanchot, Maurice. “À parte do fogo”. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 81.

BRASIL, André; JESUS, Eduardo de; MELLO, Christine. "Riscos do Tempo Presente". In: Caderno Videobrasil. Associação Cultural Videobrasil, nº1, p. 96-100, São Paulo, 2005.

Ensaio Christine Mello, 05/2006

ensaio_ Luiz Duva_"corpo duVa" - por Christine Mello


corpo duVa

Christine Mello


Um dos primeiros trabalhos realizados por duVa - como assim ele gosta que grafemos seu nome - é o vídeo experimental Grotesque, com duração de quatro minutos, criado em 1987. Um dos seus últimos é a videoperformance Grotesco Sublime MIX (GSMIX), apresentada em 2005. Dos anos 1980 para cá, são duas décadas de projeto poético que ele desenvolve. As questões aqui levantadas são: por que falar de duVa hoje e sob quais circunstâncias?


Há muitas formas de perceber a presença de um gesto, uma ação estética e seus contextos criativos, assim como há também muitas formas de falar do plano simbólico de uma obra. Contudo, há uma experiência subjetiva no cerne de cada leitura. Melhor seria abordar, aqui, múltiplos tipos de caráter, no que diz respeito à noção do grotesco, e, desse modo, optar pela análise daquilo que consideramos um caráter híbrido e disforme na obra do brasileiro, nascido em São Paulo, em 1965, Luiz Duva.


Por que duVa?


Primeiro, a sua existência artística não trata de interpretar o mundo, trata de experimentar o mundo. É a questão do pensamento como estratégia, ou processo de subjetivação, como afirma Deleuze. Não se trata, portanto, de apresentar duVa como um sujeito, mas sim apresentá-lo em sua dimensão de pensamento-artista.


O início de seu percurso, nos anos 1980, foi pela ficção. Uma tarefa relativamente árdua num país como o Brasil, que se compõe cotidianamente por meio das novelas da TV. Como instituir então, nesse gênero, um deslocamento de linguagem?


Deus come-se é um vídeo de duVa realizado em 1990. Nele, a figura de um homem é fragmentada minuciosamente pela edição eletrônica. A ação da obra, como um quebra-cabeça, ou uma construção em abismo (a edição dentro da edição), é elevada à própria dimensão desconstrutiva dos discursos da arte. Nesse vídeo, é o processamento que transforma conceitos em imagens. Trata-se de uma das principais marcas da criação em meios eletrônicos em que, para além de todo o humanismo da visão conduzida pelas câmeras, como diria Dubois, é a mão que toca, apalpa, tateia, se infiltra, edita e, por conseqüência, imprime os significados.


Como um geômetra, por meio dos múltiplos recortes que procede sobre a tela, duVa concebe em Deus come-se um tipo de edição matematicamente construída. Nela, ele exerce o controle semântico e sintático através da decomposição de um corpo em pleno ato ficcional. Tal corpo revela um caráter ambíguo, que só o meio eletrônico dá conta, na medida em que, aparentemente, esse corpo está fixo e ao mesmo tempo se movimenta numa série de cortes sucessivos. E mais, enquanto o corpo humano é retalhado, kafkaniamente ele se depara com um inseto. De forma simultaneamente angustiante e irônica, um boi é degolado, desmembrado, sangra e é morto. Enquanto isso, o inseto e o homem procuram devorar, ou dominar, um ao outro. Tais corpos dialogam e se reconhecem a partir do outro. No entanto, é a imagem e o som do vídeo - metaforicamente falando - que os come, os devora e os subverte por meio do efeito trágico de purgação, ou uma visão excessivamente próxima. Melhor, a imagem tem a capacidade de transformá-los em um corpo dessemelhante, grotesco, híbrido de homem e animal, como uma negação da criação divina.


Se Deus come-se foi gerado no cerne de um processo criativo iniciado há duas décadas, falar de Luiz Duva hoje significa, antes de mais nada, falar de uma proposição poética consistente, que não só resiste à passagem do tempo como tem a capacidade de imprimir uma percepção de mundo. Sob esse raciocínio, é possível notar também a dimensão atemporal em que essa percepção se expressa. Por exemplo, assim como o holandês Peter Bruegel imprimiu a sua percepção grotesca na Renascença, é possível notar na contemporaneidade gestos estéticos similares dessa mesma natureza sendo impressos, quer seja nas obras de artistas como Matthew Barney, no contexto internacional, quer seja nas obras de artistas como Luiz Duva, no contexto brasileiro.


Por que a estética do grotesco?


Apontar experiências estéticas do grotesco na obra de duVa representa associá-lo a um repertório voltado à discussão das contradições humanas, que no Romantismo, no século 19, foi traduzido por Victor Hugo por meio de operações contaminadas, que suscitam escárnio e riso, que passam da tragédia à comédia, do sublime ao grotesco. É nesse momento que Hugo*, em oposição às normas clássicas, afirma, por meio do drama moderno, o princípio de mistura dos gêneros, de rejeição das regras, de recusa da imitação dos modelos e da liberdade na arte.


Na visão de Guinsburg, é pelo paradoxo, pelo inverossímil e pelo vórtice abismal, que a arte do grotesco desestabiliza e movimenta tudo quanto toca, desequilibrando relações harmônicas, justapondo no mesmo plano axiológico o elevado e o baixo, o refinado e o grosseiro, o belo e o monstruoso, o trágico e o cômico**. É nessa direção que ocorre o deslocamento de linguagem nas proposições de Luiz Duva. E não é só um deslocamento de ordem semântica como também de ordem sintática. O deslocamento ocorre tanto em procedimentos singulares (como no caso de Deus come-se pela ruptura da ficção) quanto pelas circunstâncias limítrofes a que ele submete o meio eletrônico no conjunto de sua obra.


Tal afirmação advém do ato de observar o gesto perceptivo de duVa como uma inteligência voltada ao inconformismo, à hibridez e à desorganização das formas. Em Deus come-se, o grotesco ocorre pelo modo como há a desarticulação, ou a desagregação do todo pelo fragmento, com o objetivo de explorar, no vídeo, múltiplas visões e seus mais complexos procedimentos. O deslocamento vem, nesse caso, pela desconstrução do movimento e pelo modo como ele desfaz conformações simétricas no contexto de edição do trabalho. Ou seja, pela inserção do movimento como um elemento ficcional no próprio plano da imagem-vídeo.


Deus come-se não é, porém, o único exemplo em que gestos grotescos e deslocamentos de linguagem ocorrem na produção de duVa. Tais fenômenos ocorrem também em Jardim Rizzo (1992), em Momentos antes... (1995), depois em The bodymen lost in heaven (1996), entre outros. Todos são vídeos ficcionais e todos são realizados sob a problemática do grotesco.


O grotesco surge, dessa maneira, na prática artística de duVa sob a lógica da reversão. É por essas e outras razões que, em sua obra, a ação estética do grotesco advém, portanto, do modo como ele promove uma linguagem incompatível com as normas preestabelecidas, revelando, assim, a expansão das formas expressivas.


Feito uma geléia geral, a leitura acerca da linguagem de um artista que atravessa passagens midiáticas, ou paisagens desterritorializadas, pode ser considerada, como diria Plaza, como a leitura de universos paralelos e simultâneos que tendem a perder seus contornos e fronteiras fixas. Assim, a trajetória de duVa no painel da arte brasileira, como uma sensorialidade múltipla, pode ser vista hoje sob a forma de um desenho móvel e disforme no campo da imagem e som em meios eletrônicos.


Corpo coletivo


Às vezes refletimos como se a imagem no mundo contemporâneo não mais pudesse se exprimir. O problema não é mais fazer com que a imagem se exprima, mas provocar-lhe uma outra instância de força.


A imagem é uma construção simbólica, implica que a sua produção passe por uma série de operações que consistem, no presente caso, em trabalhar com a expansão do meio eletrônico na atualidade. Compete, então, ao artista, a partir dessa realidade, trazer à tona novas circunstâncias para o esquema sensório-motor da imagem.


Luiz Duva opera novas circunstâncias para a imagem contemporânea por meio da desordem do seu sistema sintático. Ao rígido determinismo da edição em seus primeiros trabalhos, duVa inicia, no final dos anos 1990, um processo de inserção do acaso e do aleatório no campo da produção da imagem. Ele passa a articulá-la pela lógica da imprecisão e nela incorpora o imprevisível e a mobilidade da informação.


O vídeo, antes produzido por duVa para o monitor de TV, desloca-se agora para outros espaços sensórios. Ele expande, assim, o movimento da imagem para o ambiente arquitetônico das videoinstalações, bem como para as sinestésicas e imersivas improvisações dos espetáculos VJings.


Em 2001, duVa realiza Corpomóvel 1 e 2, um misto de instalação e performance. Essa obra é composta como um kit móvel de produção, edição e manipulação de imagem, em que, de uma só vez, ele grava, edita e apresenta o trabalho junto ao público. E o movimento da imagem, de ficcionalizado e instalado, passa a ser também performado.


Sob essa natureza mais híbrida, surge, ainda em 2001, um outro corpo expressivo em sua imagem, o corpo coletivo produzido nas live images, ou nos chamados espetáculos de vídeo ao vivo. Nesse período, é por meio de parcerias, como as realizadas com o Videobrasil, que resultam trabalhos como PVC (2001) e A mulher e seu marido bife (2001).


Em Vermelho sangue (2002), videoperformance apresentada em conjunto com o músico Wilson Sukorski, doze telas de projeção são especialmente criadas para o 1º Festival Brasileiro de VJs - Red Bull Live Images. Nelas, duVa inscreve a linguagem indeterminada e permutacional do scratch, ou do arranhamento eletrônico da imagem, assim como dialoga, de forma imersiva, com o ambiente vivencial da cena eletrônica.


Do controle formal, a expressividade em sua imagem adquire novas dimensões. Já não se trata mais de uma imagem decomposta de forma calculada, ou sob a ordem do acabamento advinda de um produto audiovisual, como em Deus come-se, mas, aos poucos, o seu processo criativo torna-se mais apto ao informalismo, ao descontrole e ao inacabamento. Assim, seus trabalhos passam a coexistir em diálogos mais plurais e colaborativos pelo espaço, acolhendo, dessa maneira, o corpo criativo do outro, também em deslocamento, no ato de visitar, entrar, viver e partilhar suas videoinstalações e videoperformances.


Em seguida a essas experiências, duVa apresenta, em 2003, a videoperformance Desconstruindo Letícia Parente: Marca registrada, um exercício minimalista de apropriação e desconstrução de outra videoperformance. No caso, ele opera a desmontagem de Marca registrada (1974) de Letícia Parente. Essa última, obra pioneira da videoarte brasileira, não diz respeito ao campo das live images. Trata-se, antes de mais nada, de uma homenagem à artista Letícia Parente por meio da expansão de sua imagem para três telas simultâneas e da reconfiguração de suas idéias no âmbito das manipulações de vídeo ao vivo.


Mais recentemente, duVa tem ampliado ainda mais a dimensão da imagem no campo do improviso e do agenciamento da obra com o público. Para tanto, ele passa a incluir em seus procedimentos as interfaces e a interatividade. É desse modo que ele realiza a instalação Demolição (2004). Nela, duVa propõe uma forma de demolição virtual da imagem. Tal efeito de demolição é produzido a partir dos acionamentos dos botões de uma interface, em que o público, diante de uma projeção, rege os acontecimentos como num videogame e, esteticamente falando, demole a imagem.


corpo duVa


De modo muito particular, duVa insere hoje a dimensão musical em seu trabalho através do sampleamento de imagens. É por meio desse cruzamento de procedimentos entre amostras de imagem e som, ou jogos sinestésicos no plano tecnológico, que a imagem passa a ter a capacidade de produzir um som. Se, como a música, a imagem eletrônica existe apenas no tempo, ou seja, na duração, no ritmo, na freqüência - como observa Machado - podemos analisar que, no sentido oposto aos pioneiros da videoarte (a grande maioria, como Paik, provenientes da área musical), duVa reativa esses diálogos abstratos, de forma inversa, reconduzindo tais imagens ao campo das experiências sonoras.


Fruto dessa ampla gama de experiências, o amadurecimento artístico de Luiz Duva ocorre num momento em que a sua escritura audiovisual mais radicalmente se apresenta como expressão cinemática, plasticidade e sensorialidade: é prenhe de automovimento. É na busca por essas novas substâncias estéticas que a sua trajetória adquire a dimensão de um corpo poético, ou um corpo duVa. Tal corpo diferenciado, impuro, indeterminado, despadronizado e disforme de linguagem, expande a própria dimensão midiática e retorna às origens: torna-se sombra, cintilação, desenho, pintura, fotograma, frame, sampler, torna-se ele próprio, imaginário contemporâneo e pensamento.



* Hugo expõe tal visão no Prefácio de Cromwell (2004).

** Guinsburg expõe tal visão na apresentação do livro O Grotesco, de Wolfgang Kayser (2003).



Referências bibliográficas

DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972-1990 / Gilles Deleuze; tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992.

DUBOIS, Philippe. Video, Cine, Godard. Buenos Aires: Libros Del Rojas/Universidad de Buenos Aires, 2001. [Apresentação de Jorge La Ferla]

HUGO, Victor. Do Grotesco e do Sublime: tradução do Prefácio de Cromwell; tradução e notas de Célia Berrettini. São Paulo: Perspectiva, 2004.

KAYSER, Wolfgang. O Grotesco. São Paulo: Perspectiva, 2003.

MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário. O Desafio das Poéticas Tecnológicas.

2ª ed. São Paulo: Edusp, 1996.

MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. São Paulo: Comunicação e Semiótica

PUC/SP, 2004. [Tese de Doutorado]

PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo/Brasília:

Perspectiva/CNPq, 1987.

Associação Cultural Videobrasil. "FF>>dossier>>018>>Luiz Duva". Disponível em: . São Paulo, maio de 2006.