Entrevista Helio Hara, 11/2004

A arte da reconstrução - Entrevista concedida a Helio Hara para o Videobrasil, em novembro de 2004.

Helio Hara: Quais são os seus mais recentes projetos, poderia descrevê-los?

Akram Zaatari: Acabo de terminar a montagem de uma nova mostra no (museu) Portikus, em Frankfurt. Ela se chama “Unfolding” e é sobre documentos pessoais ligados a invasões. Nela há dois vídeos. O primeiro é um loop de um minuto, uma série de imagens que gravei da varanda da casa dos meus pais, em Saida, quando tinha 16 anos. Mostra um ataque aéreo de Israel no primeiro dia em que o país invadiu o Sul do Líbano, no dia 6 de junho de 1982. O segundo é uma versão single-channel do trabalho que apresentei na mostra do prêmio Nam June, que se chama “In this house”. É sobre a ação que promovi na tentativa de encontrar uma carta escrita por Ali Hashisho, originalmente um membro da resistência libanesa em 1991. Ele a guardara no interior de uma bomba, no jardim da casa que ele e seus companheiros ocupavam em Ain el-Mir, vilarejo a oeste de Saida. Trabalhei com ele para encontrar a casa. Conversei com os proprietários, tentei convencê-los a escavar o jardim. É também um trabalho sobre a arqueologia das invasões. Também acabo de terminar o primeiro capítulo do meu trabalho sobre o arquivo fotográfico de Hashem El Madani; a exposição foi inaugurada em outubro na Photographers' Gallery, em Londres. É sobre o trabalho dele em estúdio. Por intermédio da Arab Image Foundation, faço um trabalho sobre seus arquivos desde 1999. Seu trabalho está registrado no filme produzido pela Videobrasil e dirigido por Alex Gabassi. Eu o levei até o estúdio de Madania, em Saida. Em seguida quero parar um pouco e começar a escrever o roteiro de um filme de ficção.

HO: Alguns dos temas de seus trabalhos (sexualidade, mudança de hábitos e padrões) parecem estar relacionados a uma sociedade que se transforma num ritmo veloz. Você pensa que o Líbano e outros países do circuito sul são de fato mais estimulantes que países mais estáveis?

AZ: Ao trabalhar com temas como sexualidade e normas sociais, buscava falar sobre os desafios do pós-guerra, sem falar diretamente sobre a reconstrução ou a guerra. Acredito que seja responsabilidade do artista trazer à tona informações sobre o ambiente sociopolítico que o rodeia. De certo modo, é como escrever a história com um tom pessoal, já que somos testemunhas de determinadas situações. Em países em desenvolvimento, a arte pode ser um dos poucos meios de contar tais histórias. Desse ponto de vista, é algo muito estimulante, porque você sente que o território ao seu redor é, de certa maneira, (virgem), enquanto em países nos quais o acesso à informação, à história e a histórias alternativas é institucionalizado, os desafios dos artistas têm menos impacto. A reconstrução do Líbano é certamente um ponto de interesse central para artistas, apesar de muitos claramente declararem que não gostariam de ser identificados apenas por esse tema.

HO:Você acredita que se trata de um estágio de transição, pós-guerra? O que viria a seguir?

AZ: A reconstrução de Beirute é uma questão importante para a maioria dos artistas, mas não diria que é um tema de nossos trabalhos. A reconstrução não foi terminada ainda, assistimos a uma etapa de transição. Ninguém sabe o que virá a seguir, e acredito que a situação política da região ainda não é clara. Realmente acredito que uma avaliação coerente da reconstrução ainda está por vir. Como artista, penso que meu trabalho esteja relacionado a muitos desafios ligados a uma sociedade do pós-guerra, entre eles a reconstrução. Beirute é uma cidade marcada pela diversidade, onde novas e caras construções convivem com velhas tradições e bairros antigos. É uma cidade ainda muito dividida também (desde o aeroporto aos bairros cristãos/muçulmanos).

HO: Qual o impacto dessa divisão religiosa sobre os artistas?

AZ: Beirute, felizmente, é marcada pela diversidade, é o que gosto nela. Ricos, pobres, pessoas com crenças religiosas, ou sem crenças. O desafio é como fazer com que convivam no mesmo espaço, em vez de segregá-los em diferentes partes da cidade. Infelizmente, esse é o caso hoje na maior parte do Líbano. Do mesmo modo que fico feliz com o fim da guerra, temo que uma guerra possa eclodir a qualquer momento, enquanto diferentes grupos religiosos/políticos não dividirem o mesmo espaço público. Artistas em geral, inclusive eu, temos nos focado nesse aspecto sectário do Líbano. Não é algo que evitemos, mas talvez ainda não tenhamos encontrado a forma mais adequada de lidar com o tema.

HO: Você esteve mais de uma vez no Brasil. Você concorda com a idéia de que a maioria dos países do Sul tem algo em comum? Desafios a serem vencidos, liberdade de se arriscar?

AZ: Países em desenvolvimento compartilham do mesmo sistema econômico, e com freqüência nos esquecemos de que a formação das identidades está ligada a fatores econômicos. A partir dessa perspectiva, podemos ser semelhantes como consumidores, caso pertençamos a uma mesma e determinada classe, caso sobrevivamos a uma guerra, caso compartilhemos o mesmo tipo de limites. É claro que isso pode ter um efeito libertário, caso as pessoas se unam, mesmo que estejam geograficamente distantes umas das outras. Mas temo que isso seja uma idéia utópica, que tentamos concretizar quando viajamos, quando promovemos conexões entre, por exemplo, Brasil e Líbano. O que fazemos é criar um eixo de encontro para as pessoas, na esperança de que algo resulte dele.

Associação Cultural Videobrasil

Entrevista Adriana Ferreira, 06/09/2005

Vídeo registra memória libanesa

Da reportagem local

A memória, seja ela sobre a guerra que devastou seu país, o Líbano, ou simplesmente suas próprias lembranças, além de questões polêmicas sobre a sexualidade, são temas que permeiam a obra de Akram Zaatari, 39. Em "In This House", que será exibido sábado, Zaatari registra a procura por uma carta, enterrada no jardim de uma casa por Ali, um militante de esquerda que viveu no local quando os proprietários a abandonaram, fugindo da ocupação israelense. Confira sua entrevista à Folha. 

"In This House" é seu trabalho mais recente?
Akram Zaatari - Sim. Fiz há pouco essa versão em "single channel" [para exibição em TV]. Em 2004, mostrei-o como instalação no Lift [London International Fest of Theatre], em Londres, e no Nam June Paik Award Exhibition, na Alemanha. "In This House" tem linguagem híbrida, entre performance, documentário, vídeo e apresentação em PowerPoint, e pode ser uma live-performance.

Esse hibridismo o aproxima da videoarte?
Zaatari - Sou de uma geração fascinada com o vídeo e com a videoarte, mas hoje vejo limites para isso. Chamo "In This House" de documentário em duas telas, para criar uma distância da videoarte gratuita, baseada somente em experimentações formais, que se tornou moda.

Assistindo ao vídeo, tive dúvidas sobre a história...
Zaatari - Tento não inventar. Algumas vezes, me permito introduzir elementos de imaginação, mas não neste caso. As pessoas devem se perguntar isso porque a história é inacreditável, mas ocorreu. Enquanto estavam cavando, também tive dúvidas se Ali não estava me enganando.

Como você o conheceu?
Zaatari - Estava pesquisando documentos de pessoas que tinham fugido na época da guerra e entrevistei alguns fotógrafos. Foi assim que encontrei Ali, que hoje é repórter-fotográfico. Perguntei a ele se conhecia algum documento dos tempos da guerra, ele sorriu e contou sobre a carta. Quando questionei onde ela estava, Ali disse que continuava enterrada no jardim da casa.

In This House Quando: sábado (10/9), às 20h

FERREIRA, Adriana. "Vídeo registra memória libanesa". Folha de São Paulo, 6 de setembro de 2005, Ilustrada.