Entrevista Eduardo de Jesus, 11/2006

As questões relativas à identidade, ao território e aos deslocamentos aparecem com muita freqüência em seus trabalhos, abordadas de diversas maneiras. A questão do lugar é emergencial ou algo que você racionalmente acha que deva ser discutido?

Acredito que os dois casos, ou melhor, o primeiro leva ao segundo. Se bem que os deslocamentos, os fluxos migratórios não são novos e acompanham o desenvolvimento da história e chegaram a um ponto em que são parte da experiência do sujeito contemporâneo. Pela facilidade de informação e facilidade de deslocamento, hoje em dia sabemos com mais rapidez dos exilados políticos, dos prisioneiros de guerra, das migrações econômicas etc. que envolvem uma quantidade significativa de pessoas que se confrontam com essa experiência; o fenômeno do spanglish, por exemplo, é um caso emblemático, que se traduz no idioma. Agora, a distância, que também é uma posição em relação a lugar, é assumida aqui como posição existencial, e é nesse ponto que me interessa situar o meu sujeito de enunciação.

A linguagem, os idiomas e as resistências têm um papel importante em sua obra. Em Lugar común, textos em diversos idiomas atravessam a tela. Out of Place é marcado pelas sucessivas repetições da frase “uma identidade, um destino, um idioma”. Que papel as línguas têm na sua obra?

Assim como os lugares, a língua com certeza tem um lugar privilegiado, primeiro porque sempre faço intervenções nas seqüências de imagens com voz em off (a língua falada); esse elemento perpassa quase toda a minha obra e a princípio assume o papel de tensionar os outros elementos (imagens e sons). Geralmente trabalho com a descontextualização de cada um dos elementos, quase nunca eles se subordinam entre si, e ainda mais ao possuir essa autonomia, entram em conflito, isso formalmente. Por outro lado, a língua também está marcando um lugar no sentido mais amplo do termo. Já Lugar común é um vídeo feito em três idiomas e sem tradução, a língua aqui tenta representar a idéia de fragmentação da realidade, de perceber a realidade fragmentada, ou ainda, a realidade concebida como um sem-número de fragmentos do qual nunca se percebe a totalidade, por mais esforço que se faça; chega um ponto no vídeo onde se tem que optar por ler o texto em espanhol, inglês ou alemão porque é impossível apreender o todo, ainda que se dominem os três idiomas. Escolher a língua é também escolher a partir de onde se situa uma pessoa. A experiência do estrangeiro, emigrante ou mesmo turista, a experiência de estar deslocado, defasado com relação a uma origem, um outro lugar, e a dificuldade de compreensão de um código novo, um idioma etc., conduz à percepção dessa experiência de forma fragmentária. Em Out of Place é diferente, mesmo que aí também aconteça, por exemplo, que aquele que não domina o árabe não compreenda a totalidade do que se anuncia, já que essa seqüência não é traduzida, porém a referência ao idioma tem a ver com a designação de elementos que formam uma identidade. A frase de Derrida citada - uma identidade, um destino e até um idioma - fala da herança dentro de uma cultura, eu a coloco aqui justamente para problematizar essa idéia de uma identidade como algo designado, predestinado e imóvel, e me refiro ao projeto de construção que é a identidade, o ficcionável e redesenhável que esta pode ser. Por isso que não há uma tradução do árabe, ou seja: não há uma compreensão; aqui a língua funciona não tanto como decoração, mas como algo que existe, mas não se assume.

Obras como Out of Place são exemplo da maneira como você produz representações visuais da memória. Quando a questão da memória surge em seu trabalho e qual foi o caminho para chegar a estas representações?

Acredito que sempre esteve presente em meu trabalho, no começo de forma não tão consciente talvez, não tão distanciada, mas depois se converteu em algo essencial. A partir do meu vídeo Berlin… e talvez porque a experiência da migração faz perdurar, lida-se muito com a comparação. Essa figura se transforma em uma constante, a reflexão de estar aqui vindo de outro lugar, que é fundamental nesse vídeo, que foi feito a partir da minha própria experiência naquela cidade - e que de maneira diferente apresenta-se em 11 de Septiembre -, não posso deixar de olhar estes fatos sem pensar nos outros. Tal maneira de ver os acontecimentos acolhe a idéia de Pierre Samson de presente relativo (preexistência de um presente a um presente relativo, já que o presente não existe mais como um passado infinito). Deleuze também aborda essa idéia de relatividade do presente: “...um contínuo que sem cessar se transforma e se fragmenta segundo recomposições que a consciência imprime. A memória opera um movimento de diferentes estratos que os encadeamentos de travellings mostram em sua permanência e em suas metáforas”. Acredito que estas sentenças são vitais para entender a subjetividade a partir da qual me interessava instalar o meu trabalho. …o qual se constrói e reconstrói de maneira constante e sempre frágil, qualquer noção de pertencimento, herança, identidade, memória.

Berlin, been there/to be here explicita um certo estranhamento em relação à cidade de Berlim. Esse sentimento funciona como um provocador de seus trabalhos atuais?

Não, acho que isso é muito específico desse trabalho, do meu encontro com a cidade de Berlim, de levar em conta uma certa origem. O que provoca os trabalhos que o sucederam tem a ver com a consciência de que isso em algum momento me causou estranheza.

Como começou e como tem sido sua relação de parceria com Guillermo Cifuentes?

Eu e Guillermo estudamos juntos, ou seja, há uma espécie de afinidade marcada pela origem das nossas indagações audiovisuais. Durante nosso tempo de estudantes, formamos um grupo de trabalho, o coletivo A Cuerda, acompanhado de perto por Nestor Olhagaray. Com esse grupo produzimos vídeos e curtas-metragens, trocávamos funções, enfim, a partir dessa formação nossos caminhos coincidiram. Logo após a súbita morte de um dos integrantes, e a diversidade de caminhos, começamos a nos distanciar, porém Cifuentes e eu continuamos com uma relação de colaboração, a videoinstalação Lugar común/common place é um bom exemplo disso, esse trabalho se desenvolveu a partir de uma troca de correspondência. Dentro de algumas semanas, estarei no Chile para trabalhar com ele em meu novo projeto.

Como você vê a produção atual de vídeo no Chile?

Na realidade, não tenho um panorama dessa produção, certamente por não estar lá. O que posso afirmar é que o vídeo no Chile - assim como em outros lugares - finalmente entrou no cenário da arte contemporânea como ator. Há algum tempo, o vídeo era apenas entendido como registro (imagine como nos anos 1970), agora, toda escola de arte que se preze incluiu em seu currículo a disciplina do vídeo, antes a reflexão era um pouco monopolizada pela pintura. Isto é um avanço, não?!