Curadoria convidada |

A mostra foi uma coletânea de trabalhos em vídeo de José Roberto Aguilar, resultado de uma pesquisa feita por Lucila Meirelles e Walter Silveira em todo material videográfico realizado pelo artista entre 1974 e 1984, num total de 25 horas.

Apostando no vídeo desde quando ainda era importado e não havia produtoras independentes nem qualquer possibilidade de acesso regular a um equipamento de edição, Aguilar, por muitas vezes, provocou a crítica. Como ocorreu com a obra Ópera do Terceiro Mundo, exibida sob protestos no Beaubourg em Paris, em 1978. Também em Where's South America, um de seus vídeos mais políticos, em que lúmpens se misturam com mães de santo. Em Sonho Contra Sonho, Aguilar procura a integração com outros meios, como a pintura e a performance, na tentativa de estabelecer um diálogo eletrônico com o uso simultâneo de vários aparelhos que veiculavam imagens diferentes.

Paralelamente à mostra de vídeo, foram expostos vários "rastros" deixados pela mídia escrita (recortes de jornal, catálogos) referentes aos vários trabalhos do artista. Essa mostra recebeu o nome significativo de O Olho do Diabo, porque era a definição de Aguilar sobre o que seria "vídeo".

Artistas

Obras

Texto crítico Cacilda Teixeira da Costa, 1986

Como o Diabo Gosta

Há um ano atrás, um grupo de artistas do vídeo organizou a mostra “Pioneiros da Vídeo Arte” e tivemos notícia de que encontrar e exibir as fitas realizadas nos anos 70, no Brasil, tinha sido uma tarefa frustrante e difícil.

Pena, pois o vídeo de artistas no Brasil foi nesta época trabalho de alguns “obstinados”, como diz Walter Zanini, que a despeito das condições técnicas insuficientes, produziram obras originais e expressivas. Mas, ao contrário do que aconteceu no resto do mundo, nenhuma instituição brasileira se importou com sua guarda, divulgação e preservação, e uma parte importante se perdeu.

Com o que foi possível salvar, Lucila Meirelles, Walter Silveira, Tadeu Jungle e seus companheiros fizeram a mostra de 1985 e agora os dois primeiros voltam à cena para apresentar os vídeos de José Roberto Aguilar, o artista cujos tapes foram encontrados em condições mais precárias.

Certamente o artista não pode nem deve ser o museólogo e catalogador de si mesmo e é normal que Aguilar não tenha se importado em montar uma videoteca. Mas que a obra deste período se perca é chocante.

Aguilar foi um dos artistas mais fecundos e estimulantes da primeira fase do vídeo, quando os aparelhos ainda eram importados e não havia nem as chamadas produtoras independentes nem qualquer possibilidade de acesso regular a um equipamento de edição. Sua obra com certeza se ressente disso, mas em seus tapes alguns dos aspectos fundamentais do vídeo foram tratados com perspicácia: a narrativa-performance, o espaço eletrônico, o documentário-retratístico, o imediato da câmera, enfim tudo aquilo que hoje ele poeticamente resume como atributos do “olho do diabo”, para o qual distinguia em 78 dois caminhos de pesquisa e linguagem: “O primeiro, a forma mais pura e radical no sentido da linguagem, é descobrir o mundo como se fosse pela primeira vez visto através da câmera, com olhos novos; o aparecimento do “nonato”, do não-existente, que é desvendado no momento, dentro do existente. Não só os “objetos” deixam de ser objetivados para se transformarem em “assembleias de sujeitos, mas também o fluxo imagético, em tempo de movimento, é novo e único. É extremamente difícil acontecerem esses momentos de criação total. Realizei dois vídeos nesta categoria no espaço de dois anos. O primeiro chama-se The Trip, feito em São Paulo logo após minha chegada de Nova York em 1975, com duração  de cinco minutos e o outro no mês passado, Lucila, filme policial, com duração de sete minutos. (...) Já o segundo caminho é o vídeo como portador de ideias. Se no primeiro a mente nem aparecia, aqui ela é imperadora absoluta. É o conceito com seu bisturi imperativo, reinterpretando e reescrevendo a História. Dentro dessa vertente pode ser enquadrado Where is South America?. Para ele realizei um total de 10 horas de gravação reduzidos na montagem final a 45 minutos. Comecei a rodar em Nova York em abril de 75 e foi terminado no verão carioca do ano seguinte. Creio ter sido o primeiro trabalho de vídeo com um extenso trabalho de montagem realizado no Brasil. Tem cortes de até 3 segundos de duração”.1

A pesquisa de linguagem portanto, sempre foi sua preocupação e sente-se nos vídeos as mudanças graduais que ocorreram à medida em que foi assimilando os detalhes e as complexidades do instrumento, assim como a procura de integração com outros meios, como a pintura e a performance, ou a tentativa de diálogo eletrônico através do uso simultâneo de vários aparelhos, veiculando imagens diferentes como em Sonho e Contra-Sonho de uma Cidade. Todos os projetos de época revelam, acima de tudo, uma imensa curiosidade a respeito do meio.

Foi no Japão e quis que os japoneses viessem para cá: trouxe Yamaguchi com sua imaginária processada eletronicamente, inatingível para nossos artistas por causa da carência de equipamentos, mas importante de se conhecer.

Assim, sua participação foi também de animador cultural, idealizador do I Encontro Internacional de Vídeo Arte de São Paulo”, de 1978, um dos acontecimentos mais interessantes e polêmicos do ano. Aliás, em termos de vídeo, ainda não houve nada mais importante, mesmo nas três Bienais que vieram depois.

Mas nem o trabalho sério nem os sucessos do I Encontro vibraram suficientemente para lhe abrir as portas dos estúdios de TV, onde pudesse trabalhar e editar seus vídeos.

O meio difícil, cuja pesquisa exige um equipamento inacessível a um artista (por isso nos Estados Unidos e Europa as televisões comerciais e culturais têm sempre artistas residentes trabalhando em seus estúdios), a falta de um mercado consumidor e, acima de tudo, de espaço nos museus ou nos canais de TV para mostrar os trabalhos, colocou em xeque a continuação do uso do vídeo. Já não se tratava mais de um desafio, mas simplesmente de um impasse.

Aguilar decidiu deixar o vídeo pela pesquisa e criação de outros meios: disco, livro de artista, performances e como sempre a pintura. Contudo não mudou em nada o objetivo maior de seu trabalho: a procura das visões e imagens interiores e a criação de uma poética própria, independente dos meios utilizados.

Quanto ao vídeo, talvez ainda volte a ele e ao "olho do diabo".



1. “Uma História que está começando”- entrevista com José Roberto Aguilar e Fernado Lemos. Folha de São Paulo, 26 de junho de 1977.

Ensaio José Roberto Aguilar, 1986

Vídeo Arte: Olho do Diabo

“Vídeo-tape é o olho do diabo. Mas também o único que pode transmitir visões do paraíso.” (Frase do grande sábio chinês Mao-Vê-Tê, do século III A.C., período da dinastia Sony.)

A lente é filha de Copérnico e Galileu. Condutora de realidades. Traz mais perto a realidade ou aumenta seu campo de visão. Zoomm. A máquina fotográfica ou de filmar. A física mecânica. Guttemberg filmando o rio socrático, a dança da alma de Aristóteles sempre presente no roteiro. Descartes comprou sua Leica com uma grande angular polida por Leibniz. Marx filmou as lutas de classes fantasiado de Einstein. O cinema americano herdeiro do pragmatismo inglês. A nouvelle vague à procura do tempo perdido. Dashial  Hammett e Hemingway com Jesse James e Sundance Kid matando peles vermelhas e bolivianos no bar da esquina do Texas. Glauber Rocha, Bressane, Nelson Pereira dos Santos na feira hippie da Praça da República. A lente filtra a todos, em todos os cantos e todas as esquinas. Diagramação do tempo. Começo, meio e fim, imperando absoluta, a cadeira do espectador. O Deus Cinema. O espectador incólume. O crítico no seu ridículo papel de rei sol, absoluto. Alguém gritou: QUE A LUZ SE FAÇA! A mão apertou o interruptor. COMO VAI DONA ELETRICIDADE? E o vídeo-tape entrou em cena.

Não, aparentemente o vídeo-tape não tem nada a ver com a realidade. Você olha através da Câmera e não enxerga ada, está tudo escuro. É preciso conectar a câmera com o gravador e conectar a eletricidade. A imagem se forma na câmera através de uma tradução da realidade, filtrada pelo VIDECOM, equacionada através de pontos, linhas e impulsos eletrônicos. Daí você não só vê a realidade, mas a realidade + a tessitura de nervos do agora.

A luz contém alma. Ondas vibratórias que envolvem objetos e pessoas adquirindo e conduzindo o humor do momento. Tem dias que o equipamento se recusa a trabalhar. A gente põe a mão na cabeça e pensa na fortuna que vai ser para consertá-lo. No dia seguinte, a gente liga e ele está funcionando maravilhosamente. A única explicação é que o equipamento traduziu vibrações negativas e se recusou a trabalhar. Quando a causa é existencialmente justa, o aparelho nunca deixa de funcionar. Experiência de cinco anos de "vídeo-taipeiro". Mil exemplos sem tempo de contá-los. O vídeo-tape abomina a visão profana. Ele capta imediatamente e o pior, registra. Porque ele é seu olho, a sua visão de mundo, a tia alemã de Weltanschaung.

O olho é a maior bandeira, bicho. Se você não estiver em seu centro, seu vídeo vai estar mais desencontrado que a seleção do Coutinho.

A revelação da película cinematográfica é química e o resultado é uma combinação de dosagens de luzes. O cinema é uma extensão do olho enquanto olho, o vídeo é uma extensão do olho enquanto sistema nervoso. Papai MacLuhan chegou aí. O vídeo, através da captação atômica e da aura, te tira da visão do espectador e de crítico e te joga num envolvimento voluntário ou não. O tempo linha reta não existe. É um tempo interior que pode demorar um minuto ou duas horas. Os melhores fazedores de vídeo (video-makers) foram os pré-socráticos. Heráclito era um craque. Os vídeos de Empedoles eram de primeira linha. Parmênidas deixou Paik de boca aberta. Guimarães Rosa, embora nunca tenha sabido de vídeo-arte, realizou magníficos trabalhos neste campo. Não é necessário ter equipamento para realizar vídeo-arte. Basta estar afinado com o aqui e o agora. E a copa do mundo é nossa. Entre os orientais, os melhores vídeos são os dos fazedores de hai-kais. Outra informação útil e sigilosa: o vídeo-tape não é cristão, não tem sentimentos de autopiedade, expiação e do bem e do mal, embora possa ter muito amor e respeito pelos seus semelhantese desemelhantes. Em uma palavra, ele não é dualista. Em matéria de religião, ele puxa mais para o zenbudismo.

Estava à toa na vida, no meu glorioso ateliê, quando uma carta passa por baixo da porta colonial de cinco metros. É um convite do CAYC para um Encontro Internacional de Vídeo-Arte a ser realizado em Tóquio. Como de hábito, estou duro. Olho tristemente pela janela e vejo minha Brasília branca. Iluminado, exclamo: "Ah, carrinho meu, você vai me levar ao Japão". Vendi a Brasília e fui para o Japão.

Ensaio Arnaldo Antunes , 1986

Repetição do Perigo

Ele dá aula. Que mais eu posso dizer? Eu nunca fui bom aluno de ninguém e estou aprendendo desde a barriga de mamãe. Anti-aula. Aguilar dá anti-aula. De se aprender sem aprender. Como se aprende a cair depois que já se sabe andar. Como quando trabalhei com ele no vídeo “Sonho e Contra-Sonho de uma Cidade”, nas performances e na Banda Performática.

Que as pessoas tímidas são os melhores atores. Na tela se revelam. Que a câmera pega uma aura que você não sabe que tem. Alquimia eletrônica. Que quando se está no auge do cansaço, depois de filmar horas e horas, aí às vezes saem as melhores coisas. Que você pode pisar no chão e isso não ser nada ou podes pisar no chão e isso ser uma performance fabulosa. Dependendo da maneira como você faz. Assim, você pode fazer qualquer coisa, mas também não pode. Você está livre, mas com o rigor absoluto da verdade/intensidade de cada gesto. E a beleza do lixo. E a repetição do perigo. E a descompartimentação, ou seja: contra a lei do olho sem ouvido e do ouvido sem tato e do tato sem sotaque e assim por diante. Ou seja: contra a lei da pintura sem música e da música sem gesto sem cheiro, etc. O profano sacralizado, que a execução de um quadro pode durar três segundos mas conter três milênios de ideias. E que a cultura é uma prostituta, e é assim que Aguilar a trata. Bandidagem. Dashiell Hammett revisitado. E o não saber fazer potencializado pela coragem de fazer. E que o saber fazer que se repete e mostra só o que já sabe não interessa. E a atitude duchampeana dos mil projetos e esboços. Nada de obra acabada, sedimentada na crosta do reconhecimento público. Movimento inquieto. Ebulição. E o resto que vá pros museus.