Entrevista Solange Farkas, 2015

“Uso os tecidos como pintura, porque encontro neles todas as cores que quero. Comecei a usá-los nas instalações, porque queria que as pessoas tocassem o material, entrassem nas obras.”
(bio)
ABDOULAYE KONATÉ
Diré, Mali, 1953
Vive em Bamako, Mali
Em uma obra que reinventa a rica tradição têxtil malinesa no contexto contemporâneo, Abdoulaye Konaté trata de questões africanas, mas também universais: aids, guerras territoriais, nacionalismos e extremismos religiosos, desrespeitos aos direitos humanos, êxodos forçados – e os impactos da globalização. 
Formado em pintura no Mali, Konaté aprofundou seus estudos em Havana, onde seria influenciado pelo trabalho do pintor surrealista Wifredo Lam. De volta à África, trabalhando no Musée National de Bweineramako, mergulharia na tradição dos trabalhos em tecido, uma das formas fundamentais de expressão da África Ocidental. 
Na década de 1990, o foco de sua prática mudaria da pintura para a tapeçaria, e trabalhos envolvendo tecido, volume e espaço. Suas obras em grande escala são marcadas pelo uso potente da cor e pelo contraste entre a suavidade do tecido e a delicadeza da trama, de um lado, e a brutalidade dos temas, de outro.
Premiado na Dak’Art Biennale de 1996, participou da documenta 12 (2007), da coletiva Africa Remix (2004) e expôs no Centre Georges Pompidou (Paris) e no Mori Art Museu (Tóquio). Há dez anos, dirige o Conservatoire des Arts et Métiers Multimédia em Bamako.

(Entrevista)
A cor ao redor
Você começou na arte pintando; só mais tarde se aproximou dos trabalhos em tecido, que são tradição no Mali. Em qual momento se deu essa mudança e o que significou para você incorporar um suporte tradicional em seu trabalho?
Fiz minha formação artística na Escola de Belas-Artes de Bamako. Depois trabalhei no Museu Nacional e, em seguida, fui a Cuba continuar meus estudos. Lá, fiz formação em pintura e artes plásticas. Aprendi técnicas como pintura a óleo, aquarela e um pouco de gravura, sobretudo serigrafia e litogravura. 
Cheguei aos têxteis por acaso, nos anos 1990. Tinha vontade de trabalhar em grandes dimensões; e, às vezes, quando usava tinta acrílica, sentia falta de algumas cores que não encontrava para comprar no Mali. 
Uso o tecido como pintura, porque encontro todas as cores que quero nos tecidos. Comecei a trabalhar tecidos nas instalações, porque queria que as pessoas tocassem o material, que entrassem dentro das obras. Nem cheguei a desenvolver um conceito de trabalho em tapeçaria. 
É fácil encontrar têxteis no Mali. Em todo o vale do rio Níger, que passa pela Nigéria, pela Guiné, pelo Mali, há uma forte tradição de tecelagem. E o Mali tem uma enorme produção de algodão; é um dos maiores produtores da África Ocidental. 
Na medida em que continuei trabalhando, percebi que essa relação está em todo o desenvolvimento da arte no continente africano: os artistas sempre fizeram arte com os materiais disponíveis em seu entorno. Como na escultura africana, por exemplo. Assim, uso os têxteis como pintura, tentando suprimir as fronteiras e os limites que são colocados ao trabalho com tecido.
Essa escolha tem um significado estético, mas também político. Você poderia falar sobre como essas duas vertentes se equilibram em seu trabalho – uma busca de natureza estética e algo que é quase uma pauta social.
Os temas são, em geral, assuntos que interessam pessoalmente ao artista. Cada um desenvolve seu trabalho artístico em função do interesse que tem por esse ou aquele tema. Sempre procurei trabalhar com os problemas sociais, mas a estética – o trabalho com a cor, a composição – também sempre me interessou muito. Os fenômenos sociais que mais me interessam são as tragédias que atingem a sociedade, e que eu apresento como interrogações, perguntas, questionamentos. Mesmo que não tenha a solução, chamo a atenção do público para esses temas. 
Frequentemente, essa relação entre as mensagens e o trabalho estético é difícil. Dá medo de ficar apenas no literal, no conceitual, e não valorizar o lado artístico. É um equilíbrio difícil de alcançar. Tento me inspirar nos objetos africanos, em trabalhos de antigas culturas, africanas em geral, mas não só nisso. E procuro também ser muito simples na realização do trabalho, não sobrecarregando demais. Procuro ficar na essência do que quero comunicar, fazendo um trabalho, de fato, artístico sobre o suporte.
Seu trabalho lida com a simbologia de uma cultura muito particular. Você acha que os artistas africanos são vistos hoje no mundo como artistas africanos ou como artistas do mundo? Há uma divisão, uma valoração nisso?
Há muito existe essa questão de colocar um rótulo que classifique o trabalho dos artistas que vêm da África. E, quando saímos um pouco do que é esperado, diz-se: “Ah, isso não é africano”, como se não pudéssemos. Isso influenciou bastante o trabalho de vários artistas. Mas essas classificações – artista africano, artista europeu – não me incomodam. Para mim, elas não são o problema. O problema é que a mensagem que apresento é uma mensagem universal. Não estabeleço uma fronteira com relação ao público que vê meu trabalho. Claro que, para os curadores e museus, é importante reconhecer que as pessoas vêm de uma ou de outra região, apenas para compreender melhor. Mas não estou de acordo quando a classificação “artista africano” é usada para diminuir o valor do trabalho. Dizer que venho de um determinado continente não me incomoda; mas se isso for pejorativo, para diminuir o valor do trabalho artístico, então acho muito ruim.
O Videobrasil trabalha com o conceito de Sul geopolítico, composto pelas regiões que não pertencem ao circuito Europa-América do Norte e sua contribuição específica à contemporaneidade. Como você se posiciona em relação a isso? 
Em âmbito mundial, eu diria que há uma luta para ocupar um espaço intelectual, o que é terrível, porque há muitos interesses financeiros em jogo também, sem falar dos conceitos culturais, políticos. Acho que o festival permite que alguns artistas reencontrem seu caminho, entendam o que acontece no mundo e se confrontem com o que se faz de melhor na área artística hoje. É uma plataforma ideal para valorizar o trabalho dos artistas, que poucos países têm, poucos continentes têm.
Desde que você começou a trabalhar com arte, o que mudou na cena artística no Mali e na África? Acredita que exista, hoje, um ambiente mais propício para a criação? 
O ambiente artístico mudou muito na África. Surgiram algumas bienais, que começam a fazer os artistas aparecerem. Dacar e também o Benin fizeram bienais, e há outros eventos grandes. Surgem eventos de fotografia em vários países africanos, assim como de cinema e música. Há realmente uma ebulição cultural começando; não vou dizer que ela chegue ao que seria desejável, mas alguma coisa começa a funcionar. Isso é fundamental para transformar a visão da arte dentro e fora da África, e para fazer crescer a presença de artistas africanos na cena internacional.
Como você vê a nova produção artística do Mali e da África? As tradições artesanais africanas reverberam no trabalho de artistas mais jovens, como no seu?
Isso acontece há muito tempo. Quando jovens artistas europeus começaram a utilizar máscaras africanas, influenciaram bastante os jovens pintores e artistas africanos. Depois, foram deixando as máscaras, e outros elementos da cultura foram surgindo. Jovens e mesmo artistas mais conhecidos usam a cultura africana em sua expressão, e acho isso muito bom. Mesmo artistas que usam vídeo ou fotografia buscam coisas que sejam da tradição, pesquisam a tradição intelectual, vão buscar em algum lugar.
Você dirige uma escola superior que forma artistas, músicos e designers. Gostaria que falasse do conceito da escola.
Nossa escola é muito nova, tem dez anos, mas algumas coisas já começam a germinar. Em minha formação, houve um vazio: ela seguia um programa que era, antes de tudo, acadêmico e europeu/americano, ou seja, não contemplava a cultura africana. Propus para o projeto da escola uma formação em três frentes. Uma primeira, acadêmica, que ensina ao aluno as linguagens artísticas – música, dança, teatro, artes plásticas –, seguindo algumas regras acadêmicas. Depois, ele pode libertar-se delas, mas primeiro precisa aprender o bê-á-bá da arte. O segundo elemento: para mim é importante que o aluno conheça, domine e seja capaz de comunicar-se usando as tecnologias que estamos vendo surgir e que são muito úteis para o Mali e para a arte. E o terceiro é o papel da tradição na formação artística. O aluno que termina a escola de arte conosco é capaz de produzir novas obras inspirando-se em sua cultura, dominando as novas tecnologias e conhecendo os elementos da linguagem artística. Para mim, esses três elementos são importantes, hoje, para que um jovem artista possa estar na ponta, compreender o que se passa no mundo e possa intervir no mercado internacional.
Você estudou as tradições e simbologias no Mali?
Sim. E também trabalhei quinze anos no Museu Nacional. A gente não se dá conta, mas vai incorporando elementos da cultura; elementos que depois você pode utilizar, dando a eles outro sentido, usando-os como textura, ou não exatamente com o conteúdo que carregavam antes. A composição também permite fazer coisas de uma forma diferente do que é o tradicional. Seja qual for o continente, quando você analisa uma produção artística que vem de lá, você percebe um equilíbrio, algo de estável, de recorrente. Isso não é fortuito, mas algo que vem como o resultado dos muitos anos de experiências visuais realizadas ali. Nas plumagens do grupo de índios brasileiros que visitei [o artista visitou uma aldeia guarani em Ubatuba, São Paulo], sente-se que há uma composição muito simples, mas profundamente ligada à cultura, e uma combinação de cores extremamente pensada.
Qual seu interesse por povos e culturas ameaçados?
Quando se analisam as culturas, seja onde for, percebe-se que as sociedades subestimam parte de sua população, dizendo que não são evoluídas, que são atrasadas. Esses povos resistem, porque têm alguma coisa de diferente em relação aos outros e querem preservar isso. Em vez de achar o que há de positivo nesses povos, o mundo os rejeita e frequentemente os destrói. O conjunto humano inteiro é uma riqueza universal. Temos que fazer o que for preciso para preservar o que é positivo em culturas diferentes.
Entrevista concedida a Solange Farkas, Teté Martinho e Ana Paula Vargas em São Paulo, novembro de 2014
Tradução: Marilia Scalzo

Concedida para o catálogo Panoramas do Sul | Artistas Convidados