Entrevista

O olhar vertical do videomaker Carlos Nader - Entrevista por Marcos Cesana

Um Zoom no sagrado “Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça", foi a frase de Glauber Rocha que sintetizou um dos maiores movimentos do cinema nacional, o Cinema Novo. Mais de vinte anos depois, ela pode ser aplicada, com exatidão, ao exemplo de Carlos Nader, videomaker de O Beijoqueiro, Trovoada e O Fim da Viagem. O cinema certamente mudou desde Gláuber e o vídeo capta agora as luzes do mesmo mundo de uma outra forma. A tal câmera na mão e a idéia na cabeça pertencem, hoje, ao universo dos videoartistas. A definição das imagens ganhou um granulado maior, mas não perdeu a magia, a antropofagia, o artesanato e o sagrado. Carlos Nader, por exemplo, esmera-se na confecção de trabalhos tão sólidos quanto uma câmera na mão e uma idéia na cabeça permitem fazê-lo. O resultado desses oito anos como produtor, diretor, roteirista, pode ser avaliado pela sua premiação no Brasil e no exterior, ou melhor, pelo reconhecimento nacional e internacional da qualidade técnica, plástica e narrativa desenvolvida por ele nos seus vídeos. Não há como passar pelas imagens de Carlos Nader, ou pelo que elas contam, sem se incomodar. A coragem do seu "auto-retrato", em Carlos Nader, por exemplo, é visceral. Um vídeo que a princípio parece uma confissão transforma-se em um documento sobre a busca da identidade, ou mais ainda, em uma discussão do que é identidade. Filosofia, antropologia, psicologia, teologia, todas as ciências do homem são expostas em seus vídeos, a partir de pessoas comuns, ou não tão comuns assim, como é o caso de José Alves de Moura, o famoso Beijoqueiro, personagem do primeiro vídeo de Nader, feito em tomo de “uma espécie de canibal", como Carlos mesmo o define, "um serial kisser". Foi para falar dos seus vídeos, do que aprende com cada trabalho, e dos seus próximos projetos, que Carlos Nader recebeu a VideoMaker. VideoMaker - Como você começou? Carlos Nader - Eu publicava uma revista de variedades, entre 1987 e 1990, chamada Caos, e meu primeiro trabalho foi uma co-direção com o Marcelo Machado sobre a revista. Em seguida, com o Plano Collor, a revista fechou. Um amigo, Henrique Goldman me chamou para produzir um vídeo chamado Os Judeus Caboclos da Amazônia que é a história de judeus marroquinos que migraram para lá no começo do século. Mas só mais tarde, em 1992 é que eu dirigi o meu primeiro trabalho, O Beijoqueiro. VideoMaker - Como vive um videomaker? Carlos Nader - Vivo basicamente de projetos ligados a publicidade; making of de eventos, agora mesmo, voltei de Interlagos onde faço um vídeo sobre os preparativos do Grande Prêmio Brasil de Fórmula 1. E da venda dos meus trabalhos em video para outros países. VideoMaker - Quem vende seus vídeos rio exterior? Carlos Nader - A Jane Balfour, da Inglaterra, faz a distribuição dos vídeos: O Beijoqueiro e O Fim da Viagem. Já a Video Data Bank the School of the Arts of Chicago comercializa Trovoada e Carlos Nader. VideoMaker - Por quanto é vendido um vídeo no exterior? Carlos Nader - É vendido no máximo por U$ 500 o minuto, para duas ou três exibições, por um período de quatro anos. Às vezes não é vendido, fica de graça. VideoMaker - O que o dirige para um determinado trabalho ou assunto? O que o move a fazer um trabalho? Carlos Nader - Uma curiosidade talvez. Mas pra mim também é uma incógnita. Quando faço um vídeo quero mais ouvir do que dizer. No caso de Trovoada, por exemplo, a palavra que eu tinha pensado era Tempo; no caso de Carlos Nader a palavra era Ser. VideoMaker - Qual é o seu próximo projeto ? Carlos Nader - Estou fazendo um documentário misturado com ficção sobre missigenação. Mas vou preparar um terceiro vídeo que só agora vejo que é a terceira parte de uma trilogia - os dois primeiros vídeos são Trovoada e Carlos Nader - e a palavra que me move é "morte"... Veja, a palavra que me move é “morte", mas não é necessariamente um vídeo sobre a morte que eu vou fazer. Ele pode virar outra coisa. Cada vídeo meu tem um jeito de diário. É como se fosse um diário de adolescente. VideoMaker - Qual é o custo de uma produção como Carlos Nader e O Fim da Viagem? Carlos Nader - Carlos Nader, sinceramente não sei. Já O Fim da Viagem custou R$ 2 000, fora a edição. VideoMaker - Que tipo de equipamento você usa? Carlos Nader - Uso uma camcorder XL1, Canon, Broadcast para TV. Mas antes eu usava qualquer uma. Esta é melhor pela definição que dá quando o vídeo vai para a TV. Uso ilhas de edição não-lineares, Media 100... A fita é a Mini-DV. VideoMaker - Os seus vídeos tem uma relação muito próxima com a poesia. Por isso, talvez, poderia se dizer que a poesia está para o vídeo como a prosa está para o cinema? Carlos Nader - Dizer isso é verdadeiro e falso. Com o meio cinema ou vídeo você pode fazer poesia ou prosa. O filme Festa de Família, por exemplo, foi feito em vídeo e depois passado para película e não dá para enxergar poesia naquilo. E mesmo assim o filme é extraordinário! VideoMaker - Quais são as características básicas para se fazer um bom vídeo e o que deve se evitar? Carlos Nader - A curiosidade genuína pelo tema é metade de tudo. A outra é entregar-se ao tema e ao projeto. O que se deve evitar é a distância do trabalho. VideoMaker - Qual o papel que as TVs desempenham no caso do vídeo e o que se poderia fazer para o trabalho ser mais difundido? Carlos Nader - A televisão não é para mim o veículo ideal para o vídeo. Gostaria que o vídeo fosse exibido em uma sala escura, como o cinema. No futuro seria interessante se existissem lugares, onde as pessoas pudessem permanecer em salas escuras por 15 minutos. Salas localizadas em parques, talvez. Onde a pessoa pudesse passar por uma espécie de devaneio; um lugar de meditação. VideoMaker - Seus vídeos já foram exibidos pelo mundo afora conquistando prêmios. Como você se sente em relação a este tipo de coisa: serve de incentivo, ou a recepção do público é o maior incentivo para você? Carlos Nader - Sem demagogia. A melhor coisa é a experiência de se fazer um vídeo. Prêmio você tem que relativizar: a) Significa que as pessoas que julgaram, gostaram; b) Existe sempre uma dinâmica política, querendo ou não, uma composição política. O video premiado é, às vezes, aquele que tem menos rejeição. VideoMaker - Existe alguma coisa de sagrado no seu trabalho, como isso se dá? Carlos Nader - Me incomoda a sacralização da arte. Existe o sagrado, mas o sagrado não é o trabalho nem o artista. O sagrado acontece, mais ou menos, como disse uma vez um rabino: um inseto que não consegue olhar para cima está andando, portanto este inseto não conhece a chuva e, de repente, alguma coisa pinga sobre ele. É isso que é o sagrado. Um encontro com algo que você não conhece, não vê. VideoMaker - Quais são as influências de Carlos Nader? Carlos Nader - Jesus Cristo e Rimbaud. VideoMaker - Como foi para você fazer o seu auto-retrato em video? Carlos Nader - Foi muito importante para mim, apesar de não gostar de ver o vídeo. Ele me comoveu, mexeu comigo. Eu fiquei exposto demais, mas quis fazer o vídeo. Filmes de cabeceira 1. O convidado trapalhão 2. Touro indomável 3. Terra em transe 4. Um lugar ao sol 5. De repente o último verão 6. O pecado de todos nós 7. Acossado Todos os filmes do Stanley Kubrick Todos os filmes do Martin Scorsese Todos os filmes do Alfred Hitchcock Documentários que fizeram a cabeça de Carlos Nader: Quando éramos reis, Roger and me ( “A história de uma pessoa comum que não consegue falar com o presidente da general motors.”), Apocalipse de um cineasta (“Makinf of the Apocalipse Now”), Hope dreams. Prêmios: Festival franco latino - 2º lugar, 1996; Videobrasil - 2º lugar, 1996; Internationaler Videojunstpreis, production prize, alemanha, 1996; Prêmio especial do juri do Rio Cine Festival, 1996; Prêmio especial do juri do fórum do BHZ video,1995; Prêmio estímulo do governo de São Paulo, 1994; Prix aide à l'ecriture du CNC, França, 1994; Prêmio estímulo do governo de São Paulo, 1993. Tokyo internacional video festival, Special distinction, 1993; Mondial de la video de Bruxelles, Best documentary,1993; Algarve international festival, special mention, 1993; Rio Cine Festival, melhor direção,1993. Videografia Caos, 1989, 52 minutos co-diretor com Machado Os Judeus: Caboclos da Amazônia, 1990, co-produtor com H. Goldman O Expresso Transiberiano, 1991, co-produtor com H Goldman O Beijoqueiro, 1992, 29 min, diretor Território do Invisível, 1994, 26 min, co-diretor , com M Dantas Carlos Nader, 1996, 16 min, diretor O Fim da Viagem, 1998, 38min, diretor Onde encontrar os vídeos de Carlos Nader: - MIS - Museu da imgem e do som. Avenida Europa, 158, Jardim europa Fone : (011) 881-4417 -exibição gratuita - Videobrasil - Rua Fernandes de Abreu, 31, 1º andar. Fone (011) 820-8454 (exibição gratuita) O que já fez Revista Caos, Editor, 1986-89 Revista Circuit, Editor, 1990- 92 TV Globo, 1992, produtor do Programa Legal e Doris para Maiores TV Globo, 1995, Roteirista, programa Brasil Legal Onde seus videos foram exibidos: Holanda, Portugal, Bélgica, USA, SP, Tokyo, Festival internacional do Cone Sul, Espanha, Escócia, Itália, Canada, França, Argentina, Alemanha, Austrália

CESANA, Marcos. "O olhar vertical do videomaker Carlos Nader". Revista Videomaker.

Depoimento Carlos Nader, 07/2003

homenagem a Waly Salomão_ "À Imagem do Poeta"


À Imagem do Poeta


“O poeta trabalha com imagens”, disse a professora primária a uma classe distraída, e também a mim, aluno silente em cujo espírito a frase caiu como um raio. Um raio real, de trovão e voltagem metafóricos, ou seja, também reais.


Fiquei tonto. Ainda hoje, lembrando aqui, sinto um pouco mais dessa tontura benigna que a frase gerou. “Como assim, imagens?”, pensei absorto num ambiente de vida cujo lado interior era o gás ainda liquefeito da minha alma nova e o lado exterior era a sala de aula, logo a sala de aula, um dos cenários fundamentais da etapa inicial do processo civilizatório, aquela em que sondas tão inteligentes quanto as bombas americanas são lançadas dentro desse gás da gente para uma missão de guerra cirúrgica: apartar a palavra da paisagem, extrair o nome da imagem, dissociar definitivamente a realidade da imaginação.


“O poeta trabalha com imagens.” Nem sei se o paradoxo da frase e da situação chamou a atenção dos meus colegas. Mas eu fiquei mesmo muito confuso. Na boca da professora, o poeta já parecia querer contradizer tudo aquilo que a própria professora estava lá para ensinar. O que talvez eu ainda não tivesse entendido a respeito dessa introdução da poesia no currículo, é que ela é antes de tudo uma chance oficial dada à criança de reaprender tudo aquilo que ela já nasceu sabendo. Imaginação é paisagem. Chão é Sonho. Palavra é Imagem. Não é?

Dos desregramentos que a poesia aplicou aos meus sentidos, a frase do primário deve ter sido o primeiro. Mas o maior, sem dúvida, foi ter conhecido Waly Salomão. Não um poema de Waly, mas a sua própria pessoa primária. Por uma simples razão. Como quase todos os poetas, Waly projetou imagens no papel. Como quase nenhum deles, Waly projetou a poesia imediata na tela da vida. Na cena da realidade. Alterando-a, ou, pelo menos, alterando-me, para sempre.


Lembro do nosso primeiro encontro. Fui levado pelo Duncan, um amigo comum. Lembro bem. Em HDTV, com som digital e edição emocional, afinal, como dizia o próprio Waly, “a memória é uma ilha de edição”. Faz uns 15 anos. Waly estava hospedado no mais banal dos apart-hotéis de São Paulo. Toquei a campainha. E ele abriu a porta de uma daquelas amizades instantâneas. De humor à primeira vista. Conversamos, numa troca justa, ele entrando com o verbo e eu com a gargalhada. Uma hora, o telefone tocou. Ele atendeu à janela, olhando para fora, para a cidade. Atrás dele, procurei discretamente o relógio, de soslaio. Pra quê. “Tá atrasada, querida?”, ele perguntou, virando direto na minha direção. Enrubesci, claro. A professora primária não tinha me avisado que poeta tem um olho nas costas.


“Não é nas costas não, é no cu mesmo.” Ele não disse isso. Mas foi por acaso. Quem conviveu com o Waly sabe que ele certamente me diria uma coisa dessas, mesmo tendo sido apresentado a mim poucos minutos antes. Sempre em sintonia radical com os versos de Oswald de Andrade que ele adorava citar: “poesia é tudo: jogo, raiva, geometria/ assombro, maldição e pesadelo/ mas nunca/ cartola, diploma e beca”. A poesia 24 horas de Waly vinha às vezes travestida em blagues ácidas e pedestres, ou em agressividades quase sempre macias, congregadoras, golpes certeiros no apartheid existencial em que pode se transformar a boa educação. E onde quer que se localizasse de fato o tal do olho, a impressão era de que ele fosse mesmo onisciente. Na vida e no papel. A poesia de Waly captava/lançava cut-ups raciocinados de/para tudo quanto é lado do tempo/espaço. Como se pretendesse ser algum radar total, alguma câmera irrestrita, algum browser absolutamente esfomeado, conectado à vida em banda larga.


Não sei se a presença de Waly tornava as coisas mais reais ou irreais. Mas sei que ela certamente tornava as coisas mais. Essa experiência de mundo, tão ampla, teve um impacto enorme na minha maneira de pensar. Na vida e no vídeo. Um dia, andando pelas calçadas do Leblon, indo para nenhum lugar, conversávamos mais uma vez sobre imagens. Eu disse que queria ver o vídeo bem diferente do cinema, não como um projeto de realização, não como uma meta. Se o filme, o filmão, é sempre o resultado de um árduo e longo caminho para realizá-lo, eu queria que o vídeo fosse apenas o documento de um caminho de vida, de uma experiência. E Waly traduziu toda essa pretensão num poeminha simples, dedicado a mim, mas cujo título poderia muito bem ser dedicado à sua própria obra, como um todo:


Pan Cinema Permanente


Não suba o sapateiro além da sandália

– legisla a máxima latina

Então que o sapateiro desça até a sola

Quando a sola se torna uma tela

Onde se exibe e se cola

A vida do asfalto embaixo

e em volta.


A partir daí, não paramos de colaborar um com o outro. Ele fez performances em quase todos os meus vídeos ou instalações, em diferentes cantos do planeta, sempre apoiados, de uma maneira ou de outra, pelo Videobrasil. Mas numa hora dessas, ainda a poucos dias de sua morte, tenho que ser muito sincero e confessar que costumava sentir uma ponta de decepção ao final de cada trabalho que realizamos juntos. Não que não tivéssemos dado a alma. Não que não tivéssemos feito sucesso. Pelo contrário. Demos. Fizemos. É que, na comparação inevitável, a performance de vida de Waly era uma obra-prima insuperável.


Carlos Nader

São Paulo, Julho de 2003

(catálogo do 14º Videobrasil) ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "Deslocamentos - 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, p. 221 a 223 , São Paulo, SP, 2003.