Depoimento César Meneghetti, 2003
Cachorro Louco
I. nota do autor | nação jovem “O futuro das novas gerações será o presente dos nossos filhos” O cachorro louco é um jovem que já nasce sem saída, mesmo que, paradoxalmente, percorre muitas estradas, “saídas”, quilometros todos os dias. O trabalho de motofrete é o mais difundido oferecido ao “futuro da nação”, na metrópole mais rica e industrializada da América Latina, São Paulo. O cachorro louco, além de notícia em programas de TV sensacionalista, não produz riquezas. Não tem consciência do seu valor dentro da sociedade, nem a responsabilidade dele nem consciência de civilização. Como um motoqueiro que faz uso de cannabis ou alcool para “enxergar melhor as estradas”, numa forma de torpor, de uso dos corpos, de seres, numa ilusão de movimento, rodando em vão, gastando meios de consumo importados e a mercadoria mais rara e preciosa de todas: o tempo de vida. Neste vagar do motoboy, é como se o país se fundisse e se tornasse uma única coisa com o próprio motoboy, que luta para sair do sub|desesenvolvimento exatamente como o motoboy procura a sair do seu estado sub|urbano (quando é privilegiado) e não escorregar ao estado sub|humano dos 50 milhões de brasileiros em semi-indigência. E’ este o maior desafio que o Brasil enfrenta no século XXI. Condenado a um moto perpetuo no vácuo do motoboy, na ilusão de estar se desenvolvendo ou tutelar com novos horizontes a vida e o tempo de uma nação jovem que não há nada a perder. II. RESPOSTAS ESPECIFICAS 1. Durante o festival estaremos discutindo as questões do deslocamento e dos processos nômades como imagens e ações emblemáticas da situação política e cultural contemporânea. Como você reflete isso no painel da arte eletrônica? Este é um tema de interesse em sua obra? 1.O vagar, migrar, viajar, “errar”, perceber da vida em um lugar outro é uma alegoria do próprio tempo que devemos passar neste planeta, chamada vida. Logo neste processo de nomadismo que o homem vive há séculos e hoje mais que nunca, o uso dos instrumentos de comunicação de massa por artistas, meios cada vez mais difusos, economicos, fáceis de manipular é uma emblemática documentação da nossa era. Basta apontar a camera para a nossa pseudo-realidade para enquadrar de uma outra forma e falar de coisas de um modo diverso do homologado. Este convite à reflexão, ao pensamento, ao olhar se torna automaticamente político. Nos meus trabalhos a questão do “deslocamento” como ponto de partida da pesquisa e todas as consequências que este “deslocamento” exerce na minha vida/obra é o tema fundamental de várias mostras individuais: NO LIMITE DO TEMPO 1994, O PENSAMENTO BRASILEIRO 1995, PONTOS DE FUGA 1997, MONTAGE 2002/3 e nos vídeos: SEM TERRA 2001, A SUD DEL SUD 2000, e na série MONTAGE 1999-2003). No caso específico do vídeo CACHORRO LOUCO este vagar do motoboy, é um vagar metaforicamente nomade, um estrangeiro no próprio país que não tutela a sua cidadania e de outras centenas de milhões de pessoas, mas que sai e luta com todas as forças. Ele faz parte de uma nação que trabalha duro e no vídeo as partículas vem aceleradas e colocadas como um grande circuito fechado de controle, como se o país se fundisse e se tornasse uma única coisa com o próprio motoboy, que luta para sair do sub|desesenvolvimento exatamente como o motoboy procura a sair do seu estado sub|urbano - sub|humano. 2. A relação entre arte e política é ao mesmo tempo rica e conflituosa. Como você percebe esta relação no caso específico do seu trabalho? 2. Existem dois tipos de trabalhos: os bons e os ruins. Não importa se tratará de temas estéticos quase abstratos e impalpáveis para a maioria dos mortais ou se retratará simplesmente a mais crua das realidades. Terá de haver no seu interno certas características que o farão durar no tempo ou ser relegado ao esquecimento. Terá de haver algo de muito humano e transversal às culturas. No meu caso já fiz no passado por períodos trabalhos estetizantes e outras vezes trabalhos mais políticos. O trabalho que apresento CACHORRO LOUCO representa minha última pesquisa, ou seja de dosar, de haver um equilíbrio entre forma e conteúdo, entre narração e expressão, entre o socialmente útil e a meu olhar subjetivo. Não é uma fórmula pré-concebida e racional mas uma necessidade existencial. Um modo de produzir que fui amadurecendo nos anos e colocando em prática aos poucos. Para mim o tecnicismo narcisista e estetizante ou a militancia festiva não me satisfaem. Precisa-se buscar novos meios para dizer coisas novas, sejam elas saídas, ilusões, constatações, visões, convicções. 3. As tecnologias da imagem e da informação participam de estratégias de controle e vigilância, sutis (ou não) e generalizadas. Diante desta realidade, qual seria , a seu ver, o papel da arte em contextos midiáticos? 3.A função da arte é de simplesmente existir, trabalhar e servir-se dos mesmos meios de informação e imagem deste contexto mediático. 4. No contexto sócio-político e cultural contemporâneo, as identidades locais se reconfiguram em tensão com os fluxos globais. Inserida neste processo, a arte eletrônica participa como um campo aberto à experimentação e expressão de novas formas de subjetividade. Como essas questões se manifestam em seu trabalho? 4. O meu trabalho é propositalmente ambivalente. Local por tratar de aspectos específicos do meu modo de ver e conceber o mundo, através da “forma mentis” completamente “formatada” em cultura brasileira urbana e na língua portuguesa. E de outro lado por ser audiovisual, é tendencialmente aberta ao fluxo global. Se o conseguir visibilidade global se tornará uma espécie de pequeno elemento de disturbo neste grande matrix-panorama. 5. Atualmente, verifica-se nas culturas locais o desafio de reinventar as memórias pessoais e coletivas, sem deixar que elas se esvaziem frente aos fluxos de comunicação global. A seu ver, como este desafio se traduz nas experiências da artemídia? 5. É uma das mais interessantes possibilidades desta especificidade. Só que ela exite há milhões de anos. O trabalho de artemídea contemporanea é a transposição tecnologicamente mais desenvolvida dos desenhos das cavernas de nossos antepassados. Somos intrinsecamente ligados por não saber de onde viemos nem para onde vamos, então contamos aos outros o que achamos que vale a pena da nossa existencia. A projeção das memórias coletivas e pessoais não é que uma tentativa direta de aspirar a vida eterna. E’ uma luta inconsciente contra a morte. Como um trabalho audiovisual todos nós temos um início, meio e fim mas além deste aspecto se deve também reiventar o modo de produção, a estética pessoal, regional, e aí sim pode se transformar num importante laboratório de idéia e ideias para um mundo melhor. 6. No contexto de abordagem dos meios eletrônicos-digitais , interessa-lhe as questões do corpo? Como o corpo aparece em sua obra? 6. Me interesso muito do uso do corpo, mas no trabalho apresentado ele tem uma acepção de “figura humana”, “representação humana” ou até de “cadáver” como o do uso de um corpos de outros seres para acumulo de capital mais do que corpo como meio expressivo totalizante. Pode ser até um corpo metafórico: no coração pulsante das metropolis, nas artérias monstruosas onde escorrem nossa existencia, a velocidade, a obssessiva pulsação, às vezes inúteis, do movimento. E então no ritmo do mundo, o verdadeiro elemento significante da sociedade, se fragmenta na representação visionária de uma realidade histórica perdida. No CACHORRO LOUCO, os seus protagonistas não tem consciência do seu valor dentro da sociedade, nem a responsabilidade dele nem consciência de civilização. Como um motoqueiro que faz uso de cannabis ou alcool para “enxergar melhor as estradas”, numa forma de torpor, de uso dos corpos, de seres, numa ilusão de movimento, rodando em vão, gastando meios de consumo importados e a mercadoria mais rara e preciosa de todas: o tempo de vida.
Associação Cultural Videobrasil