Entrevista Helio Hara, 2005

Escritor e pesquisador de cinema, o carioca João Carlos Rodrigues é autor do livro “O negro brasileiro e o cinema”, lançado em 1988, que faz um levantamento da participação de afro-brasileiros na produção de filmes no país, e fala de lacunas, conquistas e estereótipos no cinema nacional. Aqui, ele fala dos avanços conquistados e dos desafios ainda a serem vencidos. HH- Cerca de 15 anos depois da publicação do livro “O negro brasileiro e o cinema”, houve mudanças perceptíveis, consideráveis e concretas da participação da população afro-brasileira na produção cinematográfica? JCR- Sim. Surgiram alguns novos cineastas, muitos novos atores, e a temática também se ampliou. Parece que o Brasil, aos poucos, vai se democratizando. Ainda não estamos num mundo ideal, mas mudou sim, e para melhor. HH- Em seu texto para o catálogo da mostra você lembra que, enquanto os afro-descendentes ocuparem os estratos mais baixos da sociedade brasileira, os cineastas estarão apenas se inspirando na realidade (ao mostrar personagens marginais). Enfatizar uma minoria (que faz parte de estratos mais elevados) poderia ser uma boa tática para promover a auto-estima de afro-brasileiros? JCR- Essa é uma situação muito complexa. Se o cinema nacional mostrar apenas negros marginais, estará ajudando a perpetuar a baixa estima da população afro-brasileira. Mas se, por outro lado, só mostrar uma classe média negra, estará fugindo da realidade, dourando a pílula, pois essa elite privilegiada não representa a maioria. Acho que o melhor é coexistirem as duas correntes democraticamente. HH- “Filhas do vento”, com o maior elenco negro do cinema nacional, é saudado como um marco. Você acredita que há um contexto favorável para o filme não se tornar uma iniciativa pontual e isolada? JCR- Tudo vai depender da receptividade do filme diante do público negro, e do público brasileiro como um todo. O filme é bom, mas isso não basta. É preciso que seja bem lançado em salas que estejam em bairros com todas as classes sociais, independentemente da cor da pele. Acho que pode ultrapassar o fato de ser um fenômeno isolado: foi premiado em Gramado [no festival de cinema], teve uma boa crítica no [jornal americano] “New York Times” etc. Mas é preciso que seja visto, e não tenho certeza de que sua distribuidora, a Riofilme, esteja à altura dessa tarefa. Mas vamos torcer. Em São Paulo, o Jefferson De, outro cineasta negro que prepara seu primeiro longa-metragem, tem uma proposta semelhante à do Joel Zito [Araújo]. Portanto, “Filhas do vento” não é mais um fenômeno isolado. HH- A produção de canais de TV comerciais brasileiros incluiu, nos últimos anos, minorias como nordestinos e gays. Você avalia isso como um fenômeno ligado ao “politicamente correto” e, nesse sentido, a inclusão de afro-brasileiros seria natural e positiva? Ou seria apenas um modismo? JCR- Não acho que seja um modismo politicamente correto. Isso não acontece por acaso, nem por bondade. É uma estratégia comercial. As agências de publicidade, assim como os fabricantes dos produtos em questão, sabem que há fatias do mercado bem específicas: crianças, mulheres, negros, homossexuais, minorias regionais... E investem nelas. Mas não acho uma má coisa: mostra que essas pessoas são agora consideradas consumidores potenciais, o que não acontecia antes. Mal ou bem, para desespero de sociólogos e dos políticos populistas, está havendo alguma distribuição de renda, mesmo que na informalidade. HH- Em países como a Grã-Bretanha, apresentadores de TV negros e/ou velhos são parte da rotina. No Brasil, contudo, isso é extremamente raro, privilegiando-se juventude e pele clara (combinada a cabelos muito lisos). Você acredita que é possível manter por longo tempo essa imagem, completamente dissociada da realidade? JCR- Não acho que seja possível enganar todo mundo durante todo o tempo. Mas lembro que já existiram apresentadores negros de TV desde os anos 1960, como o Noite Ilustrada, a Glória Maria, a Aizita Nascimento, e alguns outros negros. E o Cid Moreira é tão velho que tem até cabeleira branca, assim como o Boris Casoy. A estética do jovem branco de olhos claros e cabelo liso (que representaria 51% da população nacional), não sabemos bem de onde vem, mas não é dos Estados Unidos, onde a mídia já é multirracial desde os anos 1970, pelo menos. Parece coisa de quem faz a TV no Brasil. Vai acabar e não vai demorar tanto assim.

Associação Cultural Videobrasil

Ensaio João Carlos Rodrigues, 2005

Observações sobre o Negro no Cinema Brasileiro

Há mais de um enfoque para estudarmos a relação entre o negro brasileiro e o cinema nacional. Vejamos: 1 Se escolhermos, por exemplo, a História do Brasil, teremos surpresas. Existem algumas dezenas de filmes ambientados no período pré-Abolição, mas, com as exceções que confirmam a regra, a maioria deixa muito a desejar, seja por erro, seja por omissão. O tráfico negreiro, tão primordial para a economia do país, não é muito freqüente na nossa ficção. Mas há seqüências de impressionante beleza plástica, pontuadas com música épica, em duas produções pouco conhecidas: “O despertar da redentora” (1942), média-metragem de Humberto Mauro, produção estatal do Estado Novo; e a co-produção portuguesa “Vendaval maravilhoso” (1949), biografia de Castro Alves dirigida por Leitão de Barros, um dos cineastas favoritos do regime salazarista. Foram inspiradas pelo poema “Navio negreiro”. Mas todo o terrível processo de captura, transporte e venda dos prisioneiros, do continente africano até aqui, surge somente, com todas as suas contradições, em “Chico Rei” (1985), de Walter Lima Junior. Bem mais tarde, portanto. Esse mesmo filme é também o que melhor apresenta um panorama geral da escravidão entre nós, com o paradoxo dos negros livres proprietários de escravos, e dos intelectuais brancos abolicionistas. Em geral impera, também na televisão (vide as duas versões da novela “Escrava Isaura”), a visão simplificadora de uma sociedade em que todos os negros são vítimas, e todos os brancos, algozes. Pierre Verger e Gilberto Freyre já nos provaram que não foi bem assim. Um ótimo exemplo do equívoco é “Sinhá moça” (1953), de Tom Payne e Osvaldo de Oliveira, que, apesar de tudo, possui boas cenas da fuga dos negros para o quilombo. Esse subtema (o quilombo, terra da liberdade) foi abordado em “Ganga Zumba” (1964) e “Quilombo” (1984), e também em produções mais corriqueiras, nos tempos da ditadura militar. Aqui, além da história antiga do Brasil, falava-se paralelamente da luta contemporânea contra a opressão política. Na campanha abolicionista, que durou quase 70 anos e dividiu a nação, fica evidente que ser pró ou contra a escravidão não foi somente um problema de raça. Do lado dos escravos, além dos negros Luiz Gama, André Rebouças e José do Patrocínio, esteve Joaquim Nabuco, branco e filho de usineiro. E contra a emancipação, o líder conservador barão de Cotegipe, que era mulato, além dos muitos traficantes mestiços, e dos reis africanos do Daomé e do Benin, que viviam da venda de seres humanos. Esse assunto é praticamente virgem no cinema brasileiro. Incomoda muita gente. Desse modo, os filmes históricos brasileiros, por um lado, rotulam erroneamente o negro como “apenas escravo”, mas, por outro, usam-no como metáfora para lutas e conquistas da população como um todo, independentemente da sua origem. Todos nós seríamos escravos (do imperialismo estrangeiro), buscando a liberdade. Acredito que esse reducionismo ideológico foi um fator determinante na pouca verossimilhança histórica da nossa produção cinematográfica, independentemente da boa qualidade artística dessa ou daquela película. 2 Se, por outro lado, preferirmos nos dedicar ao estudo dos personagens negros e mestiços do cinema de ficção, esbarraremos numa série de arquétipos e caricaturas, alguns de origem muito antiga, e transpostos de outras artes, como a literatura, a música popular e a pintura. Inspirado pela peça “Os negros”, de Jean Genet, e nos estudos de Verger sobre os orixás, esbocei um estudo pioneiro desses personagens no livro “O negro brasileiro e o cinema” (primeira edição em 1988, a terceira em 2001). Vários possuem personalidade análoga à de entidades dos cultos afro-brasileiros. Seu número beira uma dúzia, mas alguns se destacam pela permanência ou importância. Os Pretos Velhos, por exemplo, cultuados na umbanda, existem como personagens secundários de filmes e romances. Sua versão feminina, a Mãe Preta (que criou um filho branco), símbolo do sofrimento, é figura de destaque em telenovelas como “O direito de nascer” e outras. O Malandro tem algo de Zé Pelintra, outra entidade umbandista. E a Mulata Boazuda, muito da sedutora Oxum e das voluptuosas Pombajiras. Já o Crioulo Doido, personagem cômico e irresponsável das chanchadas imortalizado por Grande Otelo, age como os Erês, espíritos infantis cultuados no dia de São Cosme e São Damião. Também está próximo do Saci-Pererê, que se diverte pregando peças nos pobres humanos. Ainda mais complexo é o Negro de Alma Branca, que recebeu educação esmerada e distanciou-se da comunidade de origem. Quer tentando melhorar a vida dos seus iguais, quer alienando-se completamente deles, carrega sempre um alto potencial de dramaticidade. Outro arquétipo ambíguo e contraditório é o Negão Revoltado. Por vezes adquire uma conotação sexual amedrontadora; em outras se comporta como líder de reivindicações comunitárias. Mas o mais das vezes é um bandido ameaçador, ladrão, traficante e assassino (vide “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles, entre muitos outros). Um número significativo de intelectuais afro-brasileiros vê nisso um estereótipo nocivo e de substrato racista. Há quem pregue um cinema em que “o negro não apareça de revólver na mão”. Entretanto, enquanto os afro-descendentes ocuparem os estratos mais baixos da sociedade, e formarem a maioria absoluta da população carcerária, os cineastas e roteiristas nada mais fazem do que se inspirar na realidade. Isso certamente influencia a baixa auto-estima da população negra e mestiça, num círculo vicioso e cruel. Todo personagem negro de ficção da cinematografia nacional se enquadra em algum dos arquétipos e caricaturas acima, ou numa mistura deles. E assim continuaremos, até que mude a sociedade, e outros surjam. É interessante notar que filmes estrangeiros, como o cubano “La última cena” (1978), de Tomás Gutiérrez Alea, e o americano “Bamboozled” (2000), de Spike Lee, apresentam alguns tipos muito semelhantes aos que levantei. 3 Mudando de assunto, e focalizando agora a temática das relações inter-raciais, encontramos uma escassez quase suspeita de um tema que deveria ser mais comum no país da miscigenação. Há um pouco de “cordialidade democrática” nas duplas que Grande Otelo fez nas chanchadas com parceiros brancos (Oscarito e Ankito), destinadas ao público popular dos anos 1950. Mas, também aqui, volta e meia surge (até mesmo em números musicais, inspirados no teatro de revista) uma piada étnica comparando o negro ao urubu ou ao macaco, não raramente proferida pelos próprios personagens afro-brasileiros. Essa situação de conflito explode diante do relacionamento amoroso entre o homem negro e a mulher branca (não há a mesma reação adversa diante da união do homem branco e da mulher negra). Em nosso cinema temos poucos filmes sobre o tema, mas expressivos. O mais antigo e importante é “Também somos irmãos” (1949), de José Carlos Burle, corajoso precursor do anti-racismo, cujo protagonista é um advogado negro repudiado pela irmã (branca) de criação. Mas também merece elogios “Compasso de espera” (1971), única experiência cinematográfica do diretor teatral Antunes Filho, em que um jornalista negro é espancado por ter um romance com uma jovem branca da classe média. (Interessante observar que o mesmo personagem é sustentado por uma ricaça branca de meia-idade sem causar nenhuma celeuma.) Nos dois casos, o negro é digno, civilizado, de “alma branca”. Mas isso não é suficiente. A sociedade o aceita, desde que não queira se misturar. Quase sempre, quando essa situação surge no cinema brasileiro, o casal de amantes termina separado. (Uma louvável exceção é “Tenda dos milagres” (1977), de Nelson Pereira dos Santos). Isso, entretanto, vai contra a realidade dos fatos, pois, de acordo com o censo de 1990, cerca de 40% dos brasileiros são mestiços – e a esmagadora maioria destes, entre negros e brancos. 4 Para encerrar, é interessante refletir se existem diferenças fundamentais entre cineastas brancos e negros quando abordam uma temática afro-brasileira. Esse assunto se faz cada dia mais pertinente quando toda uma nova geração de atores negros, e também roteiristas e até diretores, chega ao mercado. O Brasil democratiza-se, ao que parece. Merecem especial deferência Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Carlos Diegues, pela persistência dessa temática em quase todos os seus filmes. E também o roteirista Alinor Azevedo, pelo conjunto de sua obra. Embora pertencentes à outra etnia e classe social, foi graças a eles que os negros do cinema brasileiro superaram os ingênuos Crioulo Doido e Mulata Boazuda das comédias, conquistando personagens adultos, plenos de realidade e responsabilidade. Cineastas negros tivemos poucos. E assim fica difícil fazer a comparação. O mais antigo, e o que fez mais longas (cinco), Cajado Filho, foi também um importante roteirista e cenógrafo das chanchadas. Nenhum de seus filmes chegou aos nossos dias. Entre 1950 e 1980, houve tentativas isoladas de Haroldo Costa, Odilon Lopez, Antonio Pitanga, Waldir Onofre – todos também atores. Seus filmes são sempre interessantes, mas nenhum chegou a conquistar o público. O caso de Zózimo Bulbul é um pouco diferente, pois optou pelo gênero documentário, com certa continuidade, e uma evidente militância política. Nos dias que correm, depois de tantos anos, surgem promessas de renovação. Em São Paulo, o Dogma Feijoada, grupo de curta-metragistas que prega um cinema feito por negros e sobre negros, sem os recursos do folclore e da violência. E também Joel Zito Araújo, radicado no Rio de Janeiro, autor de um livro importante sobre o personagem negro na televisão brasileira, que transformou em documentário premiado, “A negação do Brasil” (2000). Seu primeiro filme de ficção, “Filhas do vento” (2004), um melodrama familiar, recebeu vários prêmios no Festival de Gramado. Parece ter vindo para ficar, abrindo assim um novo ciclo.

Catálogo da Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea: de 18 de março a 17 de abril de 2005, p.33 a 35, São Paulo, SP, 2005.