Texto de apresentação Roberto Amado, 1996

retirado do catálogo do 11º Videobrasil Fonte: Catálogo 11º Videobrasil

A completa identidade entre criatura e criador


Nam June Paik criou e erigiu uma linguagem artística — a videoarte — da qual é sua mais notável expressão


Aquele 4 de outubro poderia ter sido apenas mais um típico dia de outono em Nova York. Mas foi diferente. Era 1965, o Papa Paulo VI estava na cidade naquele dia e, no momento em que visitava a catedral da San Patrício, sua presença causou confusão e engarrafamento do trânsito local. Até aí, nada ainda poderia distinguir aquele dia dos demais. Preso dentro de um táxi no tráfego da rua 47, um coreano de 33 anos filmava o evento com uma estranha máquina, recém-adquirida por US$ 1.900 — dinheiro que a Fundação Rockfeller doara para suas pesquisas. A máquina era, na verdade, o primeiro modelo portátil de câmara de vídeo, uma Sony CV 2400 recém-lançada no mercado. O coreano era Nam June Paik. E o que ele produziu naquele dia foi mostrado, horas depois, no badalado Café à Go-Go, na Bleecker Street, em Greenwich Village, sob o nome de Eletronic Video Recorder — obra considerada, hoje, como o nascimento formal da videoarte. E isso, sim, fez daquele 4 de outubro um dia muito diferente dos demais.

Três décadas depois, Paik já não é o mesmo — engordou, adquiriu uma saúde frágil, passou dos 60. Não é o mesmo que, em obscuros encontros no lofty de Yoko Ono, com John Cage, George Maciunas, Joseph Beuys, engendrava as bases do movimento anárquico, pós-dadaísta, conhecido na década de 60 como Fluxus. Paik já não é mais aquele performático destruidor que, em 1963, na sua primeira exposição individual, na cidade de Wuppertal, inaugurou um conceito artístico, mostrando a primeira videoescultura — uma bizarra combinação de pianos preparados, máquinas de fazer barulho e treze velhos televisores. Tudo isso com a valiosa participação de Beuys, que foi incumbido de tocar ao piano. Com um machado.

Não, Paik já não é o mesmo daquela época. Ele é muito mais. Ainda mora em Nova York e conserva aquele olhar benevolente cujo brilho emana de uma obscura zona entre o sonho e o delírio. Difícil não associá-lo imediatamente à videoarte, de quem é pai e expressão máxima — o que lhe confere uma aura quase mítica, capaz de inspirar reverência e admiração. Paik veio do Oriente, cresceu espiritualmente na Europa e encontrou os meios técnicos para fazer vídeo nos Estados Unidos. Ele é um símbolo vivo da era multimídia, a expressão máxima da globalização. Funde a delicadeza do Oriente com a eletricidade ocidental e paira no além-cibernético, etéreo, zen. "Sou asiático mas reconheço o valor da cultura ocidental. Ela tem o poder dialético de se regenerar constantemente, enquanto a Ásia mantém sua estagnação histórica", diz Paik, com seu inglês fluente mas desde sempre temperado à moda oriental. É o próprio ponto de fusão entre dois mundos, entre ironia e agressividade, entre ideologia e cinismo. "Não vejo razão para rotular artistas de acordo com sua origem. Eu gosto dos colecionadores europeus, porque eles compram meus desenhos e colagens confusas, enquanto os americanos preferem comprar minhas videoesculturas, mais clean. Adoro a confusão dos elementos siberiano-mongólicos que correm em minhas veias."

Depois de sair da Coréia, estudar no Japão e se formar em música na Alemanha, Paik tinha diante de si um horizonte infinito e toda a efervescência do fim dos anos 50 e começo dos 60. Era um músico inquieto, cheio de idéias e propósitos, já disposto a utilizar a imagem eletrônica e cruzá-la com outras experiências e atividades artísticas. Foi então que encontrou John Cage, com quem estabeleceria uma frutífera comunhão de idéias precursoras. Em 1959, em carta a Cage, fez referência a uma "composição multimídia", na qual pretendia utilizar, entre outros materiais, "um projetor colorido, duas ou três telas de cinema, um stripteaser, um boxeador, uma galinha viva, uma menina de 6 anos, um piano de luzes e, naturalmente, um televisor".

A identidade entre ambos deu a Paik a confiança necessária para seguir seu caminho. "Eu escolhi morar na Alemanha porque me disseram que não havia arte moderna nos Estados Unidos. Mas daí conheci John Cage e acabei indo para Nova York por causa dele." Lá encontra ambiente estimulante, fertilidade de idéias e acesso a novas tecnologias, nas quais sempre se ligou. Integrando o grupo Fluxus, participa da primeira exposição utilizando aparelhos de TV. Descobre uma maneira de interferir através do som em imagens de vídeo. Faz as primeiras experiências com TV colorida E realiza a primeira exposição individual de videoinstalação. Shigeko Kubota, sua mulher, sintetiza essa evolução: "Quando conheci Nam June Paik ele não era videoartista e sim músico. Tornou-se videoartista nos anos 60. Quando eu o conheci era um compositor. Quebrava pianos e, depois disso, passou a quebrar televisores. Mais tarde perguntou-se por que quebrava pianos e televisores se podia conseguir mais beleza utilizando-os para criar objetos. Por isso, começou a fazer esculturas e a utilizar televisores como material escultórico".

"Meus primeiros amigos nos Estados Unidos, aqueles que integraram o movimento Fluxus, eram sempre ‘anti’ alguma coisa. Anti-música, anti-arte, anti-Stockhausen, anti-tudo. Já a nova videogeração era sempre ‘pró’ alguma coisa, queria construir uma nova sociedade com a ferramenta do vídeo", conta Paik.

Seja como for, naquele ambiente específico, Paik definiu a amplitude de seus recursos, produzindo videoarte, criando videoesculturas e realizando performances — ainda que submerso, por opção, no ambiente underground, o único capaz de fazer germinar a ousadia e a criatividade da vanguarda dos anos 60. Mesmo que tenha sido uma opção consistente, Paik emerge dos porões, na década de 70, para uma nova realidade. E se deixa seduzir definitivamente pela tecnologia do vídeo, cujos recursos mais avançados incorpora e usa para desdobrar as múltiplas facetas da sua criação. Em 1974, explorando a câmara ao vivo, cria uma de suas obras mais expressivas: Buda, captado eletronicamente, assiste sua própria imagem na TV, zen. Um koan visual, paradoxo elementar da vida. TV Buddha. Segue-se uma série de criações — vídeos, esculturas, programas de TV, performances — cuja consistência define e impõe uma linguagem.

Paik obtém na década de 70 o reconhecimento universal da comunidade artística. Recebe verbas e apoios culturais, expõe no sagrado espaço dos museus europeus e, anos mais tarde, é eleito membro da Academia das Artes, em Berlim. Reconhecer Paik é, na verdade, reconhecer a arte do vídeo, celebrar a existência desse universo e incorporar todo seu estoque de recursos no elenco da arte. Paik germinou, pariu e fez crescer, madura, essa sua cria que hoje, trinta anos depois, já é adulta e segue seu próprio destino — produzindo idéias, unindo pessoas, forjando artistas e abrindo caminhos que podem conduzir até o topo.



(catálogo do 11º Videobrasil)Associação Cultural Videobrasil - "11º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil ": de 12 a 17 de novembro de 1996. p . 40 a 42, São Paulo, SP. 1996

Ensaio Marco Maria Gazzano, 1996

retirado do catálogo do 11º Videobrasil Fonte: Catálogo 11º Videobrasil

Nam June Paik_ "As 'Antenas' de Paik - Trinta anos de arte eletrônica nas obras de um mestre"


As “Antenas” de Paik

Trinta anos de arte eletrônica nas obras de um mestre


Passaram-se pouco mais de trinta anos desde que, no verão de 1963, Nam June Paik inaugurou sua Exposition of Music/Electronic Television, na Galeria Parnass, em Wuppertal. No decorrer dos anos, esse evento adquiriu a aura de uma lenda e hoje é considerado o nascimento da arte eletrônica. O mesmo aconteceu com a performance posterior do artista coreano na cidade de Nova York. A minimização dessa performance começou pelo título, reduzido a um simples endereço, um dia e um horário — Café a Go-Go, 152 Bleecker Street, 4 & 11 de outubro de 1965, 9 da noite — em harmonia com a rigorosa tradição do modernismo radical e num claro desafio à retórica oficial da “grande arte” e aos rituais da mídia da indústria cultural. Seja como for, foi um ato que gerou, juntamente com o evento de Wuppertal, uma combinação incomum de “música” e “televisão”, inaugurando uma nova dimensão de expressividade. Ao mesmo tempo resgatava uma forte tradição: os universos do “self-video” e da criação eletrônica unidos, na forma determinada pela histórica vanguarda européia, às utopias progressivas do movimento Modernista. Estas e outras raízes culturais (Zen, anarquismo, naturismo etc.) foram submetidas, por Paik e seus amigos e admiradores, a uma reconsideração à luz da energia internacionalista, transcultural, radical-democrática da contracultura universal dos anos 60. Amigos e admiradores que desde então tornaram-se seus “cúmplices poéticos” e protagonistas de seus vídeos — incluindo John Cage, Merce Cunningham, Joseph Beuys, Judith Melina, Charlotte Moorman, Allen Kaprow, Dick Higgins, Allen Ginsberg, George Maciunas, Jud Yalkut e Shigeo Kubota. Todos eles mestres de uma nova dimensão de “intermídia” da arte e da comunicação contemporânea.


Esse primeiro “movimento duplo” paikiano (Wuppertal, 63/Nova York, 65: a vanguarda européia e a nova vanguarda norte-americana obrigadas a confrontarem-se com um artista oriental) conseguiu, em pouco menos de dois anos, refletir os dois lados do Atlântico para construir um novo continente, único em sua expressividade.


Apesar de o tom em Wuppertal residir na “distorção” do sinal de TV, em Nova York o elemento fundamental era a “performance”, o desejo de apropriar a televisão “direta” e recriá-la artisticamente. Foi uma inspiração conceitual dupla — e também bastante “musical” — que se desenvolveu não somente na realização das pesquisas conduzidas por Paik com relação ao meio, mas que também marcaram o nascimento da televisão abstrata, da utilização antinaturalística do vídeo. Foi o ano zero — excetuando-se a intuição do “movimento espacial para televisão” do ítalo-argentino, Lucio Fontana, nos anos 50 — da desarticulação daquele instrumental, cujos efeitos conduziu a novas concepções, as quais mais tarde seriam conhecidas como “vídeo arte”. Ou melhor, como Paik mesmo declarou por ocasião da sua primeira apresentação solo em Nova York (Galeria Bonino, dezembro de 1965), não “videoarte” mas — com a mente já voltada para o futuro — “arte eletrônica”. Ou melhor ainda, “televisão eletrônica” — numa tentativa de demonstrar como a televisão broadcast não havia ainda utilizado toda a extraordinária técnica e expressividade de aspectos do veículo, controlado comercialmente por elas.


Foi uma prática artística — uma teckné — que não somente uniu, mais uma vez — graças a Paik e aos outros mestres da nova vanguarda —, tecnologia, ciência, arte, engenharia melhor ainda, “televisão eletrônica” — numa tentativa de demonstrar como a televisão broadcast não havia ainda utilizado toda a extraordinária técnica e expressividade de aspectos do veículo, controlado comercialmente por elas. e pintura: o cristal e o elixir da era de Da Vinci. Mas uma teckné que, nestes últimos anos do milênio, atravessou e redefiniu artes plásticas, cinema, comunicação de massa e TV. Sugeriu novos meios de comunicação e expressão, através de imagens e sons em movimento, e de ampliação dos novos ritmos de edição e novas formas de combinar audio-logo-visual, a hipótese mais importante da revolução perceptiva e estética que marcou o século 20.

Por outro lado, desde o princípio as obras de Paik foram apresentados explicitamente como gestos de não-separação: o desejo de combinar diversas linguagens artísticas e experiências performáticas e humanas; de cor, imagem, sons, linguagens, objetos, memórias e materiais distintos entre si apenas pela aparência. Essa exploração eclética do mundo da arte e da comunicação reflete-se claramente no número de “formas” de expressão empregadas pelo artista: filmes, composições musicais, performances, videoesculturas, instalações, programas experimentais de TV, videografias, transmissões de televisão, pinturas e ensaios.


No universo poético de Paik — que antecipou em muitas décadas o universo insensível e mais formalista oferecido hoje pela Internet — não existe contradição entre as fantasmagorias das linhas e curvas abstratas e a contínua atração da filosofia Zen: as distorções e ruídos, na música concreta e eletrônica, tornaram-se narrativas; o consciente “détournement” do meio televisivo, bem como as formas clássicas das artes plásticas, como um convite contínuo à concentração (“seja consciente” ante a TV) e à meditação (“permita-se”). E, ao mesmo tempo que estabelecia um elo entre a herança oriental e a tecnologia ocidental, Paik vinha elaborando desde os anos 60 um projeto mais “intermídia” do que simplesmente “multimídia” — criando assim a hipótese de uma combinação (que se tornou uma significativa extensão recíproca) entre as artes e linguagens “em uma arte total, no sentido proposto por Richard Wagner”, ou das grandes óperas italianas muito apreciadas pelo maestro coreano.


Compositor com experiência em música atonal, que estudou primeiro no Japão e depois na Alemanha, e com conhecimento de Cage e Cunningham, Paik amadureceu — mesmo antes de concentrar sua pesquisa nas possibilidades de expressão através da imagem eletrônica — um profundo descontentamento com os limites da linguagem, com a obrigação da narração, com a rigidez formal da edição harmônica e linear.

Trabalhos de “edição” por excelência (mas de que tipo?), as criações de Paik mostram, por exemplo, como — assimilando as regras clássicas da composição para poder esquecê-las, e da música e da pintura, e ainda da TV e dos filmes — foi surpreendentemente possível, no novo mundo da imagem eletrônica, compor música com vídeo. Isto é, não somente estabelecer um relacionamento original entre som e imagem em um “audiovisual” integrado — o que foi sempre almejado mas nunca realmente praticado nos cem anos da história do cinema — mas também considerar as “imagens” (e não somente aquelas que são “visuais”) mais como “notas musicais” ou “pinceladas coloridas” do que — de acordo com a tradição de edição do cinema e televisão — seqüências assimiláveis por “palavras escritas”.


As videografias mais importantes de Paik, incluindo Global Groove, Guadalcanal Requiem, Tribute to John Cage e Good Morning Mr. Orwell devem, além de suas profundas inspirações, antes de mais nada, ser percebidas não como “documentários” para televisão ou “ensaios”, mas como uma nova cinematografia eletrônica na qual as imagens, as cenas da realidade, as “trucages” e as cores são usadas como notas musicais em uma estrutura expositiva (às vezes “narrativa”, às vezes não) , claramente não-linear. O fato de Global Groove ser uma imitação do eclético e planetário “fluxo” televisivo revisto por Paik à luz de suas inspirações ecléticas (do Zen ao rock); o fato de Guadalcanal ser um verdadeiro Requiem musical, além de um dos mais intensos audiovisuais contra a guerra deste século; ou o fato de Tribute to John Cage não ser de jeito nenhum um “documentário” sobre as músicas e performances de Cage, não importando quão criativo seja, mas uma autêntica “composição” audiovisual realizada — em dez “movimentos” facilmente identificáveis — da forma como Cage lida com seus sons materiais; ou o fato de Homages to Cunningham or to the Living Theater serem exatamente o que são graças aos esforços sempre feitos por Paik para restaurar — com imagens, sons e edições — não somente o “conteúdo” da poesia desses artistas, mas também a estrutura profunda, formal, eloqüente de suas obras, isso é outra questão.


Por outro lado, Paik é habilidoso na armadilha que prepara para seus observadores: lhe agrada essa passagem de “détournement” do veículo para “détournement” de seus significados.


Os “95% de inovação” que ele atribuía ao seu trabalho, na verdade não consiste — apesar das suas próprias declarações — em “pintar” com a válvula de raios catódicos e trocar a tela pelo monitor. Nem em substituir o violoncelo por um monitor ou corpo do artista, a despeito de suas provocações grandiosas com Charlote Moorman (agora incluídas no vídeo Topless Cellist). Consiste, se tanto, no “tratamento” da imagem, em modificar seus sinais e significados, em “arranhá-la” com linhas e cores não naturais (como nos primeiros vídeos, Electronic Video Opera, N°s. 1 and 2, Magnet TV, Beatles Electroniques, Videotape Study N°. 3, Electronic Yoga etc.), ou em “embuti-las” em outras imagens ou objetos (como na série dos robôs videoesculturas); e em intervir diretamente na verdadeira especialidade da televisão, em modificar criativamente o indiscriminado “fluxo” das imagens de TV, dando-lhes um novo contexto em situações incomuns (videoinstalações) ou em novas “paginações” da percepção da televisão (Global Groove, Good Morning Mr. Orwell, Wrap Around the World etc., obras fundamentais que, tanto na América quanto na Europa, contribuíram para modificar a linguagem e as formas de comunicação da televisão broadcast).


Nessas explorações pirotécnicas do veículo, a contribuição de Nam June Paik para a história da arte e das comunicações contemporâneas é a consciência de que, em vídeo, a luz — naturalmente eletrônica — é a matéria-prima básica, o material sintético principal, e o tempo é a forma de estruturá-lo. E isso se deve a motivos técnicos e perceptivos que, contudo, somente com o afastamento provocado pelos artistas de vídeo, começando com Paik, dos códigos tradicionais da TV, foram significativamente avaliados. A natureza específica do vídeo (e do computador ) lhe atribui a qualidade de um texto de imagens desde que com luz (fotografia) ou de luz (filmes), mas sempre em luz. Isto é escrever com energia pura: sem limites, reflexões ou frames, como a luz na verdade é. A luz evocada dessa forma torna possível aceitar algumas definições recentes e bizarras de Paik, como um “xamã” ou “mago”. É uma luz fluida, corpuscular como água (uma metáfora como a que pode ser encontrada na surpreendente instalação TV Fish, com o peixe no aquário nadando como imagens de vídeo) e lácteo como a luz da lua (uma metáfora do vídeo como um espelho da luz do sol, que sempre foi apreciada por Paik desde o vídeo Electronic Moon, N°. 2 de 1969, e a bem-sucedida instalação TV Moon. Contudo, é uma lua que, na poesia de Paik, é também um símbolo feminino e portanto semelhante à perfeição do ovo na TV Egg; ou uma extensão de pixel, uma luminosidade singular, ponto eletrônico, o princípio e o fim de todo conto da luz no Zen for TV).


É uma luz que — difusa e potencialmente sem frame, e portanto não refletida como é no cinema — define-se mais no tempo que no espaço; e, em qualquer caso, origina-se como sons de idênticas faixas de freqüência. Isso é importante para a estrutura atribuída por Paik , e por outros pioneiros como Vasulka, ao som como uma interface da imagem não apenas narrativa mas especificamente “tecnológica”; e à música — a linguagem do tempo — como a forma mais consistente dentro da estrutura do vídeo: e ao vídeo como a materialização de uma aproximação perceptiva e sensorial que nem sempre é conscientemente racional. O tema central da supremacia Zen (a paz interior alcançada depois da atividade intempestiva) que se repete em muitas das obras de Paik, por exemplo, é a precisa justaposição, na mesma obra, da aceleração frenética no ritmo das imagens, sons e cores com uma repentina desaceleração até alcançar o silêncio absoluto, acompanhado por uma “de-saturação” de cores até atingir o preto.


Criador incansável de metáforas (todas as suas instalações e videoesculturas são desvios e recomposições que conjugam ao mesmo tempo símbolos e significados, além de espaços e percepções), Paik também é um criador de ícones, de sinais visuais que se tornaram parte do imaginário coletivo de nossa era, e, de todas maneiras, das imagens simbólicas da cinematografia e das artes plásticas contemporâneas. Esse é o caso de Moorman com sua TV Cello ou a TV Bra; ou das imagens selvagens de TV Garden; ou das imagens quase religiosas de TV Buddha, que olha eternamente para si mesmo, absorto em uma meditação infinita, refletida em um monitor que lhe devolve, com a mudança incessante das estações do ano, a infinita passagem do tempo.


Intérprete irônico e jovial justamente por ser profundo, às vezes apocalíptico com relação a nossa era, Paik, com suas “antenas” observa à distância: é um artista emblemático do fim deste milênio que por trinta anos vem nos oferecendo novas emoções, surpreendendo-nos com um convite para pensar e olhar além das primeiras impressões de fenômenos, imagens e significados. Ocupando-se — entre outras coisas — da TV, ele não se esqueceu dos valores profundos e das possibilidades transformacionais inerentes à energia interior dentro de cada um de nós; e que ele, por meio de sua arte, deseja recompor em movimento. Dessa forma o “fluxo” televisivo pode ser transformado em um “fluxo” planetário de energia criativa.


Marco Maria Gazzano

Crítico de vídeo e diretor do Festival de Videoarte de Locarno na Suíça

Autor da tese Teorias e Técnicas de Comunicação de Massa na Universidade de Urbino (Itália, 1954)

(catálogo do 11º Videobrasil) ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. "11º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil ": de 12 a 17 de novembro de 1996. p . 44 a 46, São Paulo, SP. 1996