Depoimento Marcelo Tas, 2003

A MINHA HISTÓRIA DA OLHAR ELETRÔNICO CAPÍTULO 1: A TV SOBRE O CAIXOTE Numa noite paulistana do início dos anos 80 fui numa festa que mudou minha vida. Era um dos muitos eventos “multimídia” da época: lançamento de livro junto com show de nova banda, leitura de poesia e algum debate sobre política. E obviamente, bebida e paquera, eixo principal da atividade da maioria ali, incluindo eu. O lugar se chamava Teatro Lira Paulistana, um galpão cheio de labirintos borbulhando de gente. Era o epicentro das atividades da “vanguarda paulista” na música capitaneada por Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Grupo Rumo, Premeditando o Breque e várias outras manifestações como os inesquecíveis shows-bailes de salsa da banda “Sossega Leão”. Este mini-complexo cultural ficava no porão de um prediozinho feioso em Pinheiros acessível apenas por uma longa escadaria que começava numa portinha despretenciosa, dessas de correr tipo chaveiro 24 horas, na calçada de frente para a praça Benedito Calixto, no bairro de Pinheiros. A estrela da noite era Glauco, o novo cartunista da Folha de S. Paulo, que lançava o primeiro livro dele. A festa ia sem grandes novidades até que ao sentar para uma cerveja dei de cara com uma TV em cima de um caixote. Vocês, crianças que vivem hoje cercados por telinhas de todos os lados, não tem idéia de como aquela era uma visão surreal: era a primeira vez na vida que eu assistia televisão fora de casa! Mais estranho ainda, era o que passava dentro do tubo. Não parecia TV normal: jornal, novela ou programa de auditório. Tratava-se de um material bem tosco e diferentão. Mas muito engraçado e atraente. Fiquei mais de uma hora grudado nas histórias que saíam daquele televisor. Até que chegaram os autores das imagens. Eram uns moleques como eu, entre os dezoito e os vinte e poucos anos, estudantes e recém-saídos da universidade. Finalmente elucidaram o que era aquela coisa: vídeo! Vídeo, como assim? É bom lembrar que no Brasil do início dos anos 80 não existia video cassete, nem TV à cabo. Toda programação era produzida pelas próprias emissoras com câmeras e equipes jurássicas. A novidade daquele momento eram as primeiras câmeras portáteis de vídeo que chegavam ao Brasil compradas por particulares. Com esses novos equipamentos entrando no país, nem sempre pela alfândega, surgia um novo tipo de empresa onde toda moçadinha descolada queria trabalhar: as produtoras independentes de vídeo. Assim como “internet” hoje; “vídeo” era a palavra da hora naquele princípio dos 80. Os rapazes que eu acabava de conhecer no Lira Paulistana estavam fundando uma produtora independente de vídeo ali mesmo na Benedito Calixto. Quer aparecer por lá? Mas é claro que sim! CAPÍTULO 2: OLHAR ELETRÔNICO Na sede da produtora independente Olhar Eletrônico Vídeo já tinha papel timbrado, cozinha comunitária, aula matinal de Tai Chi Chuan, panelão sempre cheio de arroz integral, ervas aromáticas no final da tarde e até um casal casado oficialmente vivendo num dos quartos, o Agílson Araújo e a Patrícia Frajmund. Um monte de gente como eu, entre os dezoito e os vinte e poucos anos, vivendo numa espécie de comunidade hippie. Só que no meio de tanta coisa “orgânica e alternativa” num dos cômodos da casa fui apresentado à tecnologia mais impressionante que já tinha visto até aquele pondo da minha vida: uma ilha de edição. O encontro com aquele monstro barulhento selou definitivamente minha escolha profissional. Era tudo que eu nunca tinha tido coragem de sonhar: uma máquina de manipular sons e imagens para contar histórias. Uma espécie de cruzamento sexy entre os dois equipamentos que eu mais utilizava na época: a calculadora e o fliperama. A sede da empresa, um sobradinho voltado para a praça, era residência e também ponto de encontro depois do expediente daqueles meus novos e estranhos amigos. Eram estudantes dos lugares mais variados: Arquitetura, Física e Filosofia da USP; Psicologia da PUC e até gente de Rádio e TV da FAAP. Me identifiquei de cara com aquela mistura de especialidades. A minha vida já era bem agitada e multidisciplinar naquela época. Terminava o curso de engenharia na Escola Politécnica da USP, onde à noite também estudava Rádio e TV na ECA- Escola de Comunicações e Artes. Mas o que garantiu o carimbo no meu passaporte para entrar na Olhar Eletrônico foi o fato de na época também fazer parte da primeira turma do CPT- Centro de Pesquisas Teatrais, do diretor de teatro Antunes Filho, no SESC Consolação. Depois de muitos vídeos experimentais e alguns documentários, os jovens fundadores da Olhar, estavam fissurados para trabalhar com atores e roteiros de ficção. A primeira incursão ficcional do grupo tinha acabado de ser finalizada: SAM, vídeo de 30 minutos, uma superprodução para os padrões daquele início de produtora. Teve até lançamento com comes e bebes na casa dos pais do autor da façanha, Paulo Morelli. Cheguei em cima da hora junto com Evaldo de Brito, ator e assistente de Antunes Filho, ambos exaustos depois de um longo dia de ensaios no SESC. Novamente, aquelas imagens diferentonas saltando da tela do televisor da sala de visitas lotada de gente balançou a minha alma. Tive certeza que ali tinha alguma coisa muito importante acontecendo. SAM foi gravado na praia, com vários atores, travellings, diálogos bem ensaiados, quase um média-metragem. A fotografia, cheia de bossa, super closes, ângulos e movimentos inusitados de câmera, era de Fernando Meirelles, um loirinho sempre sorridente com cara de nerd. Além de líder natural do grupo, Fernando também se tornaria sócio principal da empresa já que injetou uma grana extra para comprar uma nova câmera: uma Ikegami alaranjada, tecnologia de ponta japonesa, de três tubos, a primeira câmera “profissional” que caía na mão da moçada. Além da chegada da nova câmera, buscada “pessoalmente” por Fernando no Japão, o ambiente da Olhar ficou ainda mais elétrico com o anúncio do primeiro Festival VideoBrasil, para Agosto de 1983, no MIS. Antes do festival acontecer já tinha uma disputa declarada. A principal rival criativa da Olhar, a TVDO (leia-se TV Tudo) de Tadeu Jungle, Walter Silveira e Pedro Vieira, prometia entrar pesado na competição. Como autênticos Beatles e Rolling Stones do video tupiniquim, Olhar Eletrônico e TVDO sempre alimentaram um confronto estético e artístico. A ousadia de uma era combustível para o avanço da outra. No começo de 1983, Walter e Tadeu já tinham um programa semanal de grande sucesso na TV Bandeirantes: o Mocidade Independente. A gente se roía de inveja. Os meninos da TVDO conseguiram realizar antes o grande sonho de todos nós na Olhar Eletrônico: entrar na televisão. CAPÍTULO 3: O VIDEOBRASIL E O GOULART DE ANDRADE O Festival VideoBrasil é um nó fundamental nessa história. Marca a entrada em cena dos videomakers e sua enorme contribuição na linguagem audio-visual brasileira. Desde 1983, o festival é um alto-falante de gerações de criadores de uma nova gramática especialmente influenciada pelos novos equipamentos portáteis de vídeo e as novas tecnologias. Para mim não é nenhuma coincidência que o grande vencedor do 1º VideoBrasil de 1983 é o mesmo cara que seria reconhecido mundialmente vinte anos depois com o filme “Cidade de Deus”. Dos 10 prêmios principais do festival, a Olhar Eletrônico levou três, todos originados na tradicional criação coletiva do grupo e com direção do Fernando Meirelles. “Marly Normal”, o primeiro prêmio do festival, era uma ficção dirigida por Fernando em dupla com Marcelo Machado. Vídeo bastante experimental, mostrava as 24 horas do dia de uma pessoa comum passando freneticamente em poucos minutos numa edição matemática. Cada plano tinha examente o mesmo tempo de duração. Foi a minha estréia nos créditos da Olhar: como operador de VT. As câmeras eram portáteis mas o gravador com a fita U-matic para captação de som e imagem era um trambolho enorme e chato de carregar. Tarefa sempre dispensada a recrutas recém chegados ao grupo como o meu caso. Graças à inspiração, suor e bons relacionamentos de Solange Farkas, a organizadora do festival, alguns nomes importantes do cinema, televisão e jornalismo, como Roberto Talma, Walter Lima Jr., José Joffily, Pipoka e Gabriel Priolli, testemunharam tudo aquilo como jurados do festival. Mas o primeiro convite de trabalho para a molecada da Olhar Eletrônico partiu de uma figura inusitada: o jornalista Goulart de Andrade. Ele tinha inventado um programa chamado “Comando da Madrugada” que mostrava cenas curiosas da cidade de São Paulo nos intervalos dos filmes noturnos da TV Globo. Agora, queria mais. Tinha ocupado integralmente todas as noites da semana na TV Gazeta, canal local que atingia apenas a Grande São Paulo. Ligou numa quinta convidando a Olhar Eletrônico para estrear na outra segunda-feira um programa próprio, ao vivo. Era tudo que a gente queria da vida: entrar na TV! CAPÍTULO 4: O ERNESTO VARELA E OUTRAS CRIAS TV Gazeta, 22 de Agosto de 1983. A estréia da Olhar Eletrônico foi uma farra. Goulart fez um discurso de abertura e entregou pra Deus. O programa teve de tudo: dois começos porque achamos que faltou ritmo na largada, desfile de moda com alguns dos meninos dos Titãs como modelos e uma câmera na rua pedindo para as pessoas falarem sobre a morte delas próprias. Essas matérias de rua viraram uma referência do programa. O hoje documentarista premiado Renato Barbieri era o perguntador principal. Recém aterrizado no grupo, Renato vinha do curso de Psicologia da PUC e tinha munição infindável de abordagens para cutucar a mente dos passantes com os temas mais inesperados. Todos nós saíamos para “fazer rua”, como dizíamos na época. Mas foi Barbieri que aperfeiçou o formato em dupla com Paulo Morelli na câmera e na troca de idéias. Renato e Paulão eram autênticos pescadores de filósofos populares pelas ruas de São Paulo. Sabiam como ninguém criar silêncios entre a pergunta e a resposta, gerando longas pausas reflexivas que desconcertavam os entrevistados e os telespectadores. Era um timing bem esquisitão para o padrão da TV da época. Como quase toda a obra da Olhar, ainda é um material bastante vivo e inusitado de se ver. Até hoje tem gente curiosa sobre possíveis atividades misteriosas dos membros da equipe da Olhar Eletrônico. Sempre paira uma suspeita ligada ao sobrenatural. Daquele antro ser sede de uma seita esotérica. Tirando a variedade de orientações espiriturais e mundanas do grupo, o certo é que há um segredo espetacular em todo período em que ficamos juntos: uma reunião semanal chamada “Cultural”. Entre 1983 e 1987, auge criativo e comercial da empresa, tirávamos todas as manhãs de segunda-feira para estudar em grupo. A firma parava. Os telefones eram desligados e até o boy e a secretária participavam. Cada semana, um de nós era responsável por apresentar o “Cultural”. Já éramos quase vinte pessoas, havia tempo de sobra para estudar e preparar qualquer assunto. Tudo era planejado minusciosamente com antecedência com a coordenação de Dario Vizeu, um jovem amazonense recém saído da FAU- Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, o intelectual mais respeitado do grupo (Dario continua fazendo culturais, só que agora para muito mais gente participar. É dele a série “Ética” e os “Grande Cursos”, ambos veiculados na TV Cultura de São Paulo). O “Cultural” permitia que, antes de entrar no “horário comercial” da semana, o grupo desse uma parada para ficar três ou quatro horas mergulhados em Platão, Freud, Mazzaropi… ou estudar Astronomia, Botânica ou os filmes de Buster Keaton. No início de cada ciclo escolhíamos em votações sempre polêmicas e barulhentas a pauta do próximo semestre. O “Cultural” não era um mero diletantismo juvenil. Mas uma vontade coletiva de criar um campo magnético para nossas conversas e relacionamentos. Uma plataforma de links para outros assuntos fora da rotina mesquinha do cotidiano. Era uma brincadeira levada à sério. Não se admitia atrasos. E havia sempre um de nós anotando os insights da reunião num livrão preto. Bastante ousados e caras de pau, escrevemos na primeira página o objetivo do grupo: revolucionar a TV do terceiro milênio! Este era o segredo misterioso da Olhar: o Cultural. E tem mais outro. No trabalho havia um rodízio permanente de funções. Todo mundo passava por cada etapa do processo da realização: da direção da kombi à direção do programa de TV. Incluindo aí fazer câmera, fotografia, edição, texto, cenário e apresentar o programa. Curiosamente, esta última era a tarefa que menos agradava à maioria do grupo. Por isso, na hora de ir para a frente da câmera, existia um revezamento. Como o das peladas de futebol quando ninguém quer ser o goleiro. Foi numa das minhas vezes de ser o “goleiro” que surgiu o rascunho do personagem Ernesto Varela. Começou com uma voz diferente, uma situação non-sense, um modo desajeitado de olhar para a câmera para disfarçar o constrangimento… Pimba! Apareceu uma figura no vídeo bastante diferente de mim. Todo mundo riu e para mim foi um alívio muito grande. Era muito mais gostoso interpretar um personagem do que ser eu mesmo naquele momento insuportável que é ficar diante da maldita arma de destruir espontaneidade que se chama câmera de TV. Estávamos na cidade de Santos, sem saber o que fazer numa tarde de chuva. Descemos a serra de kombi com duas missões: gravar à noite um show de Itamar Assumpção e inventar alguma história para fazer durante o dia. Já sentíamos a pressão e a voracidade da televisão. Só depois de estrear tinha caído a ficha. Tínhamos que preencher duas horas de televisão por semana. Haja saúde e idéia para gastar. Diante de um relógio digital quebrado na praia, gravei um boletim daquele repórter ainda sem nome. Surpreendente variação climática em Santos, 85 graus na Praia do Gonzaga! Voltamos a São Paulo e aquela brincadeira ingênua virou um quadro de humor do programa. Foi colada uma vinheta “Santos Urgente”, com as letras aparecendo nervosas sobre um papel em branco numa máquina de escrever. Trilha sonora vibrante de “Breaking News” à la CNN. O que dava uma credibilidade telejornalística e deixava aquele absurdo bastante divertido. O autor da vinheta e o câmera-man debaixo de chuva foi Toniko Melo, hoje um dos diretores mais criativos e atuantes da publicidade brasileira. Mas o parceiro no parto do personagem que depois me acompanharia por vários anos viajando pelo Brasil e o mundo foi outro. Fernando Meirelles bateu os olhos no material e ficou com a mente em chamas. Começamos juntos a inventar mil outras situações para aquele germe de repórter. Decidimos que ele ia falar de economia, política, esportes e entrevistar personalidades de verdade. Começamos com uma reportagem que explicava a dívida externa brasileira num terreno abandonado na Avenida Paulista. Foi calculado o preço de cada cacho de banana plantado ali no metro quadrado mais caro do Brasil. E assim sugerimos às autoridades a saída para a crise nacional: derrubar todos os prédios dos bancos da Paulista para a produção daquele tipo de banana. O governo militar não aceitou a sugestão e a dívida externa está aí até hoje. Mas a televisão ganhou um novo personagem: o repórter Ernesto Varela. Graças ao Varela, tive encontros com seres inusitados. Do cacique Raoni a Paulo Maluf, de Nelson Piquet à guarda do exército vermelho na União Soviética, de garimpeiros em Serra Pelada ao Chico Buarque em cima do palanque das Diretas-Já. Foram viagens pelo Brasil e o mundo que consumiria boa parte dos próximos anos da minha vida. Daqui de longe, reconheço duas pequenas contribuições da experiência varelesca para a linguagem televisiva. A primeira delas foi abordar temas “sérios” com humor. O personagem de mentira trazia perguntas simples, ingênuas e diretas para os personagens da história de verdade que passavam na frente da câmera dele. Num mundo já complexo e confuso, era um alívio alguém fazer a pergunta que o telespectador queria mas nunca podia fazer. Muitas dessas perguntas que pareciam improviso eram fruto do trabalho em equipe. Havia um roteiro bem desenhado antes das gravações turbinado pelas idéias do grupo ao longo da semana e especialmente no “Cultural” das segundas-feiras. Na hora do “vamos ver”, com a câmera literalmente ligada, as vezes surgiam muitas das sacadas. Momentos onde a inteligência e generosidade do Fernando, parceiro na criação e direção nesta primeira fase do personagem, foram fundamentais sugerindo perguntas e situações para a performance final do repórter Ernesto Varela. A segunda contribuição varelesca é a de provocar um novo formato de telejornalismo. Como já disse, a ilha de edição era o verdadeiro altar da Olhar Eletrônico. Lá nós passávamos dias e noites cutucando os botões da máquina e os dos nossos cérebros atrás de novas formas de contar uma história na televisão. Com o Varela radicalizamos a participação da câmera, o tal “Olhar Eletrônico”, na história. Ao contrário do credo do jornalismo tradicional, não tínhamos nenhum receio de misturar ficção, realidade e até o próprio camera-man na edição da narrativa. Varela começou a pensar alto e conversar diretamente com o seu câmera-man. Assim surgiu mais um personagem de ficção, a contraposição ideal para as estrepolias do repórter, o câmera Valdeci. Nos anos 80, além do Fernando, houve outros dois Valdecis, igualmente parceiros de criação, edição e direção. Cada um deles da sua maneira ajudaram a aperfeiçoar e ampliar o personagem. O primeiro deles foi Toniko Melo, com quem lá no início criei o episódio do relógio quebrado em Santos. Extremamente criativo e habilidoso com as imagens, tive com Toniko um verdadeiro “casamento” profissional. A palavra é essa mesmo já que passamos grande parte do tempo convivendo vinte e quatro horas por dia na cobertura da Copa do México 86. E também numa viagem histórica a Cuba, no verão de 1985, quando nos tornamos os primeiros profissionais da TV brasileira a filmar livremente na ilha de Fidel. O talento de Toniko para a cinematografia trouxe para o Varela um arrojo e beleza de imagens surpreendentes. Na Copa marcamos dois gols. A famosa e polêmica entrevista com o presidente da CBF, o deputado Nabi Abi Chedid. E um quadro com imagens inéditas que conseguimos captar de dentro do campo durantes os jogos do Brasil. Travestido de operador de VT, eu narrava os bastidores do jogo mostrando cenas que as câmeras da transmissão oficial não mostravam. Foram imagens belíssimas captadas por Toniko que profissionais experientes do Centro Internacional de Imprensa consideraram as mais lindas da Copa. O terceiro Valdeci não era da equipe da Olhar Eletrônico. Depois da aventura em Cuba, tentei tirar as primeiras férias profissionais da minha vida, em Nova York. O encontro com a cidade me deixou literalmente sem dormir por alguns dias. Não consegui tirar férias no meio de tanta eletricidade. Para minha sorte, na primeira semana por lá conheci o parceiro ideal para produzir o Varela em solo novaiorquino. Liguei a cobrar para São Paulo e graças a sensibilidade do jornalista Narciso Kalili, diretor da Abril Vídeo que transmitia os vídeos do Varela num programa dominical chamado Olho Mágico, obtive aprovação para começar a trabalhar imediatamente na série “Varela em Nova York”. O “Valdeci” da empreitada foi um judeu errante nascido em São Paulo mas cidadão do mundo por opção e vocação: Henrique Goldman, hoje cineasta radicado em Londres. O auge da experiência de criar e fazer televisão coletivamente na Olhar Eletrônico se deu com o “Crig-Rá”. Em 1984, a convite da Abril-Video inventamos esse programa semanal dedicado ao público jovem. Virou um espaço de experimentação de formatos variados. Marcelo Machado, o nosso homem ligado à música e artes plásticas, articulou a produção dos primeiros video clipes de bandas de rock que brotavam que nem cogumelo depois da chuva naqueles barulhentos anos 80. Sem concorrentes nas outras TVs, o “Crig-Rá” virou um hit da molecada. Aprendemos a ter controle de uma hora inteira na televisão. O programa começou a ser transmitido numa rede independente para várias capitais do Brasil. Chegamos a ser o programa escolhido para lançar oficialmente o U-2 no Brasil. Beto Salatini, um dos sócio-fundadores da empresa, voltou ao Brasil depois de uma longa experiência como editor de imagens na TV Globo de Londres. Trouxe de lá mais idéias e um padrão técnico de qualidade muito útil para aquela meninada que não tinha tempo nem saco para ler os manuais do equipamentos. O Crig-Rá virou uma incubadeira de jovens talentos que foram se juntando ao núcleo original da Olhar Eletrônico. A sede na Avenida Pedroso de Morais ficou pequena para tanta gente. Alguns dos que chegaram nesta segunda onda são hoje figuras ilustres em várias mídias. Entre elas: a atriz Giulia Gam; a jornalista Paula Cesarino Costa- secretária de redação da Folha de S. Paulo; o fotógrafo Adriano Goldman; o diretor Hugo Prata; a produtora Yone Sassa- programadora musical da MTV; o fotógrafo e roteirista José Roberto Sadek; e Sandra Annemberg, jornalista da TV Globo, que estreou como repórter do “Crig-Rá” com apenas 15 anos com jeito de quem fazia aquilo há décadas. Curiosamente, na mesma semana da estréia da Sandrinha no vídeo recebemos um telefonema da TV Globo querendo contratá-la para o Fantástico. Perguntaram se ela já era jornalista formada. Desligaram desconcertados quando informamos que ela não tinha aparecido naquela manhã pois estava no colégio. O “Crig-Rá” se auto denominava o “melhor programa de rádio da TV brasileira.” A minha participação no programa era suave mas bastante divertida. Fazia um personagem que era o apresentador do programa. Era um ser totalmente eletrônico, gravado em estúdio, com todos os efeitos que a tecnologia da época dava direito. Como uma crítica irônica, usava os bordões e o jeito animadinho dos DJs das rádios FM. O nome dele era uma síntese de todas as lanchonetes de fast-food da época: Bob Mac Jack. Minha última experiência na Olhar Eletrônico foi um programa que durou apenas quatro edições. Mas que gerou uma grande repercursão e também uma grande confusão: O Mundo no Ar. Tratava-se de uma paródia de um telejornal realizado com grande apuro técnico. Foi co-produzido para a recém nascida TV Manchete, dentro de uma série chamada Aventura, dirigida por Fernando Barbosa Lima. Gravamos o primeiro programa numa grande convenção política do PMDB, no clube Pinheiros em São Paulo. Para mostrar ao telespectador como é fácil manipular a informação na TV, fingimos que aquela festa toda foi armada para a estréia do nosso programa na TV. Com alguns truques de edição não foi difícil fazer o Dr. Ulisses Guimarães, o economista João Sayad e o ministro Almir Pazianotto saudarem a estréia do novo programa. E dizer o quanto estavam honrados em estar na “nossa” festa. A saída do programa da TV Manchete foi causada por um mal-entendido surrealista. O dono da emissora, o Sr. Adolpho Bloch, não gostou de uma paródia que fizemos de um famoso comercial dos computadores Apple. As imagens mostravam um mundo dominado pelo Big Brother, de George Orwell. O Sr. Adolpho achou que era uma fila de judeus indo em direção ao forno crematório. Esse episódio precipitou a minha despedida da Olhar Eletrônico, em 1987, quando fui morar por um ano e meio nos Estados Unidos, com uma bolsa de aperfeiçoamento profissional da Fundação Fulbright. Deixei o país antes de saber o resultado do 5º VideoBrasil, que continuávamos participando a cada ano. Só em Nova York, recebi uma ligação dos meninos da Olhar com a notícia da premiação dupla do “Mundo no Ar”, do júri e do Grande Prêmio Popular, concedido por votação direta do público do festival. EPÍLOGO: PARA O INFINITO E ALÉM É difícil precisar quando a Olhar Eletrônico acabou. Não houve uma Yoko Ono ou um estopim que causou a separação do grupo. Se perguntados aposto que cada um dos envolvidos vai dizer uma data ou mesmo um ano diferente. O fato é que a experiência artística coletiva não sobreviveu sem um lugar na TV onde o grupo pudesse para fazer televisão “de autor”. Aos poucos os videos institucionais e comerciais foram ganhando espaço e os integrantes começaram a tomar diferentes rumos como pessoas físicas e jurídicas. É curioso notar que depois da dispersão surgiram grandes projetos que voltaram a reunir partes daquela equipe. E foram justamente esses projetos realizados fora da Olhar, dentro das TVs, que ajudaram a consolidar o espírito e talvez as contribuições mais evidentes da “Olhar Eletrônico” no audio-visual eletrônico brasileiro. Em 1990, foi o caso da série infantil Rá-Tim-Bum, para a TV Cultura de São Paulo. Na direção-geral, Fernando Meirelles convidou Paulo Morelli e eu para nos juntarmos ao animador Flávio del Carlo e ao roteirista Flávio de Souza na criação do projeto. Depois vieram vários outros ex-olhares para dirigir quadros e ficções da série que virou uma grande aventura de 175 capítulos de 30 minutos cada. Foi um exercício de experimentação em escala industrial que ao meu ver soube tirar partido e aprofundar a década de experimentações anterior na Olhar Eletrônico. Em 1988, uma invasão de ex-Olhares na TV Gazeta criou e realizou o TV Mix, um longo programa que misturava jornalismo com variedades ao vivo ancorado de um estúdio na Av. Paulista. Além do formato inusitado de estúdio-redação, algo incomum na época, foi também a primeira experiência na TV brasileira de uma equipe telejornalística com apenas uma pessoa: o video-repórter. Também no início da década de 90, o repórter Ernesto Varela foi parar na MTV. No mês de estréia da emissora norte-americana de clipes no Brasil, Varela ancorou a série “Netos do Amaral”. Era uma paródia divertida das antigas viagens ufanistas capitaneadas pelo repórter Amaral Neto durante a época da ditadura no país. O fotógrafo da série foi o ex-Olhar Adriano Goldman, que já mostrava o talento para imagens que o tornou um dos diretores de fotografia mais requisitados do mercado de filmes e clipes do país. Com “Netos do Amaral” encontrei outro parceiro precioso para dividir a criação e direção do Varela: o videoartista mineiro Éder Santos. A série foi uma co-produção da MTV com a Videofilmes, dos irmãos João e Walter Salles. Com tanta energia e talento junto, o “Netos” foi um gran finale para a saga do repórter na TV. Hoje, vinte anos depois, vejo em vários lugares as ramificações daquela linguagem audio-visual iniciada lá atrás na Praça Benedito Calixto. A “Olhar Eletrônico” continuou e continua presente na TV, no cinema e no trabalho individual e coletivo dos seus ex-integrantes. Mas só o tempo vai responder quando e em que medida foi atingida a intenção daquela molecada metida e ambiciosa- “revolucionar a TV do terceiro milênio”- rabiscada com grande entusiasmo no livrão preto do “Cultural”.

Marcelo Tas, 2003

ITAÚ CULTURAL. "Made In Brasil: Três Décadas do Vídeo Brasileiro". São Paulo, 2003.

Texto crítico Arlindo Machado

Olhar Eletrônico

O que marca mais profundamente os documentários culturais e sociais do Olhar Eletrônico é a sua rejeição a toda espécie de representação totalizadora. O grupo deixa patente nas obras as suas próprias dúvidas e a parcialidade de sua intervenção, interroga-se sobre os limites de seu gesto enunciador e sobre a sua capacidade de conhecer realmente o outro. Nesse sentido, busca uma "negociação" com o seu objeto de indagação, uma troca, a possibilidade talvez de um diálogo, um exercício de polifonia que permita restituir a multiplicidade de vozes. A partir da intervenção do Olhar Eletrônico, aquele que representa visa inscrever o seu trabalho dentro de um processo de comunicação em que ele é apenas uma dentre as muitas vozes em conflito, como se pode ver, por exemplo, nas suas "reportagens" desmistificadas, tendo à frente o anti-repórter Ernesto Varela. Assim, o Olhar Eletrônico vai buscar, em seus trabalhos mais conseqüentes, a quebra de qualquer relação de saber ou de autoridade que possa existir entre o realizador e o sujeito enfocado, evitando sobrepor às imagens deste último um pretenso discurso da verdade e criando dispositivos para que o enfocado possa responder ele próprio, com autonomia, às indagações do primeiro. Devolver a palavra ao povo, deixar que o enfocado se coloque livremente, fazer com que as técnicas de produção se tornem transparentes aos protagonistas - tais são alguns dos princípios norteadores do trabalho do Olhar, que podem ser identificados, por exemplo, em Do Outro Lado de Sua Casa (1986). Nessa obra exemplar, os realizadores Marcelo Machado, Renato Barbieri e Paulo Morelli enfocam o universo cotidiano de um grupo de mendigos que vivem mais ou menos à margem da sociedade. Não há aqui, entretanto, mais nada daquele sentimento de comiseração ou de culpa que marca uma certa maneira cristã ou católica de se encararem as populações humildes. Pelo contrário, à medida que o vídeo evolui, os indigentes começam a impor o seu próprio discurso e a colocar com autonomia a singularidade de sua visão de mundo. Um dos mendigos, inclusive, acaba por assumir a própria enunciação do trabalho e, de microfone em punho, passa ele mesmo a dirigir as entrevistas com seus parceiros. Aqui, numa virada perturbadora, o objeto da investigação passa para trás das câmeras e se torna também sujeito da investigação, impedindo qualquer abordagem humilhante para os enfocados.