Depoimento 2003

Resposta às perguntas formuladas pelos organizadores do 14º Videobrasil "Web Paisagem 0" é uma máquina nômade de samplear que permite a produção de visões do nordeste brasileiro a partir de mixagem de todos os sons, imagens, vídeos e textos de seu banco de dados. Todas as mixagens são disponibilizadas on line e podem ser enviadas por e-mail, além de acrescentadas ao seu banco de dados, gerando um processo de criação coletivo de imagens multimídia sobre o nordeste brasileiro, tratado não como identidade geográfica, mas como princípio de uma cultura de reciclagem. Idéias de Brasil, flora, fauna, símbolos nacionais, causos, personagens entre outras categorias, trazem trechos de obras fundamentais, como os Sertões e Casa Grande e Senzala, imagens e dados sobre a caatinga, a mata atlântica, folclore, mitologias contemporâneas_bundas, férias, indústria do carnaval etc_ depoimentos sobre o tropicalismo, cinema novo, manguebeat, enfim, inúmeros fragmentos que permitem pensar, recompor e samplear a idéia de “nordeste em todo lugar”. Trabalha-se aqui com uma paisagem negativa, desconstrutiva e desconstruída. Na home page, encontra-se o nada/tudo do branco e seus incontáveis pontos derivados em que se propõe uma situação inusitada: reconstruir a paisagem pela recomposição permanente dos fragmentos de nossa história cultural. Severinos, sertanejos, suburbanos, corruptos, globalizados, insiders e eruditos, convivem aqui com o que temos de mais sórdido e sublime, da favela à natureza e vice-versa, ao que nos define e “desdefine” histórica, antropológica e economicamente... Não se trata de mais um discurso sobre o local, o global, ou o glocal. Trata-se de um processo de remixagem translocal. As ações e interações que se produzem aqui são instáveis, recombináveis, antropofágicas e, por que não assumir de vez, canibais... Tudo que se disponibiliza é passível de reconfiguração, remixagem, sampling e recombinação seguindo apenas um comando de desorde: Aproprie-se, tome posse. Faça seu nordeste, viabilize o seu Brasilpontonadapontotudopontobr. Mixe, sampleie, decifre, perca-se e multiplique. O nordeste é aqui. O nordeste é lá. O nordeste está em todo lugar....

Associação Cultural Videobrasil

Ensaio Giselle Beiguelman, 04/2004

ensaio_ Detanico Lain_ "Assim é se não lhe parece" - por Giselle Beiguelman

 

Assim é se não lhe parece


Vire o monitor. (não tenha medo)

Esqueça a janela. (qualquer janela)

Negue todas as molduras. (inclusive os frames)

Ignore a fonética. (sim, você pode falar sem ela)

Desfigure as imagens. (é possível enxergar, sabia?)

Experimente desenquadrar, empilhar, mover (o mundo, o globo, seus olhos).

Pronto?

Não responda sim. Diga sempre não. (nunca pós, nem pré, nem anti, muito menos pró...)

Fale somente assim. Veja assim (e também assado). Pense assim (pense, pense, pense muito): Não-vídeo, não-imagem,

não-web, não-arte, não-CD-ROM, não-arquitetura, não-game, não-quem, não-não.

Pronto?

Plaf!

Entre.


Angela Detanico e Rafael Lain operam por desconstrução. Elaboram universos temporários que desafiam as formas de identificação dos limites entre visível e invisível e dos horizontes de legibilidade, independentemente da plataforma e/ou interface que escolham.

Tipografia, design gráfico, vídeo, arquitetura, internet, CD-ROM são alguns dos formatos já contemplados pela dupla que não usa suportes, mas transforma artefatos e dispositivos midiáticos em modalidades discursivas de diagramas instáveis.

Enunciam uma cultura de apropriação que se faz na contramão da sampleagem. Em seus projetos tipográficos, por exemplo, instauram uma dinâmica na qual o paradigma do remix torna-se um movimento de entrega.

Afinal, para que servem fontes senão para serem usadas por outros, em textos de autores diversos, que apagam a mão do criador original da letra em novos tecidos discursivos?

Exercício de generosidade intelectual, copyleft sem bandeira, várias de suas criações na área de tipografia foram reunidas em um curioso CD-ROM. “Entre” (2001) é o seu nome e traz embutido no título algumas das suas chaves de leitura.

Entre, no caso, é mais que um comando. É um convite e um desafio. Convite porque nos chama a não pensar em mais nada além de incursionar no seu universo particular. Um desafio porque nos faz, a todo momento, titubear ao tentar defini-lo.

Trata-se de um projeto que fica entre a escrita e a fala, entre a música e o desenho, entre a letra e o dígito. Sem explicações, dá-se ao leitor por meio de duas possibilidades: tocar imagens, desenhando com sons, utilizando aleatoriamente o teclado do computador, ou instalar uma série de 26 fontes.

Na primeira situação, escolhe-se um fragmento de um dos desenhos dos autores, que vêm encartados como miniposteres junto com o CD, e, ao iniciar a digitação, começa-se a processar novas formas, ao mesmo tempo em que se compõe uma trilha sonora, dando cor ao áudio e som aos traços.

Mas não é só esse campo entre o áudio e a visão que interessa. As fontes também sofrem um tratamento rigoroso para que se posicionem nesse universo de fronteiras fluidas em que se interceptam tipografia, imagem e som, num processo de recombinação de linguagens que assume um perfil deleuziano, evidente na própria epígrafe do CD, que cita uma passagem de “Mille Plateaux”:“Há ritmo desde que haja passagem transcodificada de um para outro meio”.

Um axioma que é levado ao limite na fonte “Utopia”, criada a convite da revista “Big” para compor um número especial dedicado a Oscar Niemeyer, feita com miniaturas de projetos do arquiteto, como o Memorial da América Latina (SP) e o Palácio da Alvorada (Brasília), e ícones dos resultados da falta de planejamento que prevalece nas grandes metrópoles brasileiras.

Às letras maiúsculas ficaram reservadas as belas linhas que tornaram a arquitetura de Niemeyer internacionalmente conhecida. Às minúsculas, placas que remetem a congestionamentos sem fim, grades que pretendem impedir a ocupação dos viadutos pelos sem-teto, entre outros signos de nosso horror urbano...

Propositadamente, as letras minúsculas foram construídas em quadros mais largos do que as maiúsculas e, por isso, quando digitadas em conjunto, seguindo as regras básicas da ortografia, fazem com que as minúsculas (os dejetos urbanos) subam, literalmente, em cima das maiúsculas (as formas da arquitetura modernista).

Emerge daí um texto que aparece como um tecido social sujo, em que o impasse entre o rigor e a beleza modernista e sua fragilidade para enfrentar o descontrole do crescimento urbano torna-se a chave de leitura de parte de nossa história recente, imprimindo tensões urbanas às frases, sem apelar a qualquer recurso vernacular.

Misturando referências diversificadas, que vão de zuzana licko (tipógrafa do famoso estúdio californiano Emigre) ao traçado revolucionário de El Lissitzky, “Entre” é um CD que desincumbe o design de qualquer função suplementar.

Não se desenha aqui apenas o que não se pode dizer com palavras. Tampouco dá-se à escrita uma função de mediação entre a natureza e a razão. As relações não são de convenção.

Antes, fazem pensar, lembrando Derrida, que a conjunção das práticas da informação, da cibernética e das ciências humanas conduz a uma profunda subversão, em que a escritura aparece como “uma partilha sem simetria que desenha de um lado o fechamento do livro e, do outro, a abertura do texto”.

Texto que não é revelação de mensagem, mas processo de interrogação da possibilidade de mensagem, inquietação gramatológica que percorre todos os projetos de Angela e Lain, mas que ocupa “Pilha” (2003) de ponta a ponta.

Aqui, um sistema de escritura por objetos (re)traduz o que nos circunda em enunciados visuais que implodem a letra para dar volume à quebra da horizontalidade da linha. Funciona, basicamente, a partir de empilhamentos de objetos idênticos que, numa escala de 1 a 26, relacionam quantidades a valores fonéticos. Assim, 1 batata = a, 2 batatas = b, 26 batatas = z.

O espaço se dilui em possibilidades combinatórias, entre frases de cubos de açúcar, de livros, de vasos, soprando Deleuze, mais uma vez, entre diferenças e repetições, produzindo uma vertigem essencial que se efetua pela desestabilização da forma (relativizada pelo número) que se transforma em letra, desaparece no objeto e se apaga na sua especificidade para voltar como interrogação sobre não mais a possibilidade de mensagem, mas os possíveis da linguagem.

Algo que o vídeo “Flatland” (2003) expande e extrapola, fatiando pixels, pervertendo a lógica do quadro - do frame - para criar cores que não pertencem à palheta videográfica, viabilizando a visualização de tons pastel que não estão lá.

Documentário líquido, dilui a imagem em movimento em stills, transformando terras planas do delta do rio Mekong em múltiplos arco-íris animados pelo som murmurante das suas margens.

Margens do rio e da imagem. Bordas. Mais que isso. Dobras. Outra vez Deleuze...

A técnica (ferramenta) usada é simples. A tecnologia (produção de repertório cognitivo), complexa. A seqüência captada com uma mini-DV é decupada em fotos isoladas. Recurso banal do próprio programa de edição. As fotos, horizontais, são então recortadas verticalmente. Cada recorte é esticado até a largura do quadro original. Nascem os arco-íris improváveis que triangulam a visão como queria ver (e nos ensinou a enxergar) Merleau-Ponty.

Como ver “Flatland” e não lembrar do mestre do visível (Merleau-Ponty, é preciso dizer?!), que nos ensinou a perceber a magia das figurações do “instante do mundo” que Cézanne queria pintar?

Aquele instante louco que há muito já passou, não volta, mas nunca passa, porque se faz e refaz em todas as rochas que estão e não estão nas montanhas de Santa Vitória que esse poeta da luz, Cézanne, pintou para desequilibrar tudo aquilo que entendíamos como cor, luz, sombra, figuração.

Gesto nobre e desdenhoso que volta - com tudo - nas cores, na paciência, na luz, no desdém de “Flatland”. A terra plana que se ergue em relevo do pixel esculpido em cor que não tem e não retrata.

Um movimento se anuncia aí. Para voltar impiedoso no gesto agressivo, sutil e inóspito que se impõe em “Seoul/Killig Time” (2003). Fina ironia. Macabra. Arrogante. O retrato do mundo dos games. Balelas. Chatices. Falcatruas.

Uma cidade desterrada - pelas corporações do entretenimento fashion. Palco de uma cena insólita. Aviões aterrissando no território de uma cidade que se transforma em mero espaço de ação de jogadores estúpidos. Ali acontece a quebra da regra: o jogo idiota vira história de uma deserção.

Contra a norma da babaquice e do paradigma da clicagem burra. De quem acha - ainda - que o mais interessante na cultura digital é reconhecer regras, atacar e vencer.

Contra a retórica fetichista de levar os games a sério, Angela e Lain nos obrigam a tratar os games com são. Cenários - ideológicos - de uma motivação vulgar: matar, morrer ou ganhar.

Novamente a técnica é simples e a tecnologia, complexa. O jogo (belicista, machista, wasp) tem seu stage capturado por uma câmera de vídeo ligada ao computador. O stage é remodelado em 3-D - bem ao gosto do cliente burro/cego e se transforma em maquete do espetáculo da ignorância, onde temos suas premissas mais banais: Uma cidade sem escala e sem ninguém.

Fina ironia. Só ri dela quem é capaz de driblar o movimento do mundo. Digitalizar suas coordenadas, fazer um exercício de “world align” (2003)... Brincar com coordenadas. Mover o mapa - afinal somos globais, não? - para lá e para cá...

Está tudo na tela e não está.... Por isso é possível abstrair a topologia e redesenhar a geografia. Trabalhar com as linhas de um desenho, em vez de ceder à dureza dos territórios. Num gesto simples e preciso, o mapa-múndi é dividido em linhas paralelas como se fosse uma página em branco, aberta à nossa conquista.

Tratado dessa forma, é possível submetê-lo às regras da edição do texto, deixando que os continentes se alinhem - à direita, no centro, à esquerda - seguindo as beiradas do monitor, sem nunca parar, sempre em loop, fugindo à regra orbital e a todas, comportando-se como matéria arquitetônica pronta a ser modificada pelos acidentes e pela história.

Fazer da arquitetura plano de mudança (não a ação da mudança) é também um dos pressupostos recorrentes de Angela e Lain, e que se evidenciam em projetos como “5 Times 10 Steps” (2003) e “Plaf!” (2004).

No primeiro caso, cinco escadas de tamanhos variados foram espalhadas pelo espaço expositivo do Palais de Tokyo, interagindo com o ambiente, tendo suas alturas determinadas por alguma característica do lugar em que se apóiam e os espaçamentos dos degraus definidos pelas suas respectivas alturas.

Diferença e Repetição, outra vez. Arquitetura relacional, da desconstrução e do acaso... Como em “Plaf!”, intervenção realizada na fachada da Galeria Vermelho em São Paulo, que invertia a posição do chão e da parede.

Ali também a técnica usada era simples e a tecnologia, complexa. Raspou-se a fachada branca até a revelação do concreto e projetou-se o que antes ocupava aquela mancha no chão, pondo em questão o papel da estrutura no processo de orientação do observador e dos cheios e vazios no funcionamento da máquina-casa. Desmanche de estruturas, perversão do olhar, empilhamentos, realinhamentos, interferência, apropriação, desconfiguração da fonética e umas poucas perguntas sem fim: O que é que você vê quando você vê? Como é que você lê o que você vê? Você lê?

Grifos Nossos. Grifos Deles.

Associação Cultural Videobrasil. "FF>>Dossier 001>>Angela Detanico e Rafael Lain". Disponível em: . São Paulo, abril de 2004.

Ensaio Giselle Beiguelman, 03/2007

ensaio_ Alice Miceli_ "Irretratáveis anos-luz" - por Giselle Beiguelman

Irretratáveis anos-luz

Por Giselle Beiguelman

O fim no começo

A palavra cortada

na primeira sílaba.

A consoante esvanecida

sem que a língua atingisse o alvéolo.

O que jamais se esqueceria

pois nem principiou a ser lembrado.

O campo – havia, havia um campo?

irremediavelmente murcho em sombra

antes de imaginar-se a figura

de um campo.

A vida não chega a ser breve.

Carlos Drummond de Andrade

O que me fascina no trabalho de Alice é a sua coragem de enfrentar o efêmero, recusando a lógica do instantâneo. Investindo sempre na imagem do que não é retratável, parece posicionar suas câmeras como uma astrônoma e não como documentarista, testemunha, ou narradora.

Os astrônomos são cientistas que desafiam nossas medidas banais, baseadas em referências mais e menos antropocêntricas, como pés e polegadas, que têm obviamente o corpo humano como parâmetro, ou o metro, baseado nas dimensões da Terra.

Sua unidade de distância é o ano-luz, a distância que a luz percorre em um ano no espaço vazio, na velocidade de 300 mil quilômetros por segundo. Quanto mais distante um objeto, mais anos-luz percorridos, pois maior a distância que sua luz viaja. Isso faz com que se produza um fenômeno desconcertante descrito com rara simplicidade e poesia pelo físico Marcelo Gleiser: “Olhar para o cosmo é viajar para o passado”. Afinal, a luz que vemos corresponde ao objeto como era no passado e não no presente. Só para se ter uma noção das escalas de deslocamento que estão envolvidas nessa relação, basta lembrar que a luz da galáxia Andrômeda, vizinha da Terra, saiu de lá há 2 milhões de anos, ou mais ou menos na época da formação da espécie humana.

Em tamanhas escalas espaciais de deslocamento, o instante parece não fazer sentido algum. Não importa aqui o suposto “tempo real”, que tanto intoxica o discurso midiático, a virtualidade do cruzamento do aqui e agora com o lá e então. Importa ter ciência de que o presente, em muitas dimensões, é apenas passado, e o que se vê como real não passa de poeira cósmica. E é aí que Alice nos obriga a repensar as estratégias correntes de lidar com a história e com a memória, nos assaltando, sem terror, com vestígios por vezes mórbidos, por vezes imponderáveis, muitas vezes trágicos, da ação humana, na política e na ciência.

Sem alarde, por exemplo, nos convida a contemplar o peso da dor das vítimas das prisões políticas do Camboja com seu 88 de 14.000, de 2004. Neste projeto, um dos destaques do transmediale.05, apresentava retratos de 88 dos 14 mil mortos em uma prisão de extermínio no período do Khmer Vermelho, nos anos 1970.

As horas ou dias decorridos da entrada na prisão, quando era tirada a foto, até a execução são representados pelo período equivalente no qual cada imagem é projetada em uma parede de areia. Nesse tempo em suspensão, somos convertidos de espectadores em cúmplices de um silêncio lancinante que parece ficar entranhado nas paredes etéreas da projeção. Trata-se de um silêncio quase sufocante porque é incapaz de reter as imagens fantasmagóricas que se projetam no intervalo entre a última foto da vida/primeiro instante da morte de cada um desses 88 rostos de uma multidão de 14 mil.

É essa elasticidade do tempo, esse enigma do intervalo, da incapacidade das medidas humanas darem conta da duração da vida, incluindo-se aí a que separa a vida da morte, o elemento que me parece alinhavar os projetos todos de Alice sob uma mesma densa linha de pesquisa.

Em 14 horas, 54 minutos, 59,9...segundos (2006), propõe um curtíssimo longo vídeo de quarenta segundos em que estende o último momento do fotógrafo Robert Capa, fundador da agência Magnum, manipulando única e exclusivamente a foto derradeira de um dos maiores artistas-documentaristas de todos os tempos.

Alice nos lembra que no Vietnã, às 14 horas e 55 minutos do dia 25 de maio de 1954, o fotógrafo Robert Capa pisou em uma mina e morreu, durante a cobertura que realizava da Guerra da Indochina. A última foto que realizou, momentos antes de sua morte, contudo, permaneceu em sua câmera. Ela mostra seus companheiros de viagem, os soldados, atravessando o campo que se estende até um horizonte que Capa contemplou e capturou em sua fotografia, mas que nunca foi atravessado por ele.

Nos poucos segundos do vídeo, Alice distende esse último segundo e faz com que interroguemos: qual é a duração do intervalo do tempo que se interpõe entre o clique da última foto de Capa e a morte? É possível medir o tempo da dor, do implacável e do imponderável da história? Seria possível imaginar o irretratável da memória?

São indagações que as “imagens-limite” da artista sugerem num estilo que por vezes insinua um certo ceticismo drummondiano.

Assistindo aos vídeos de Alice, é difícil não escutar os versos do poeta que nos ensinou que a memória é a resistência ao tangível e aos sentidos do fim. Algo que se coloca com delicadeza e força no vídeo Little White House (2005), que mostra o trajeto do campo de concentração de Chelmno-nad-Nerem, na Polônia, ao vilarejo mais próximo, acompanhado por dois sobreviventes da violência nazista. O percurso é curto, mas não a dor e o imponderável do tempo que se aloja nesse espaço.

E Little White House trabalha esse paradoxo distendendo o percurso num tempo ficcional de quarenta minutos, como que buscando não a medida da dor, mas, novamente, uma imagem-limite que se deixe atravessar pelo irretratável da memória e da história.

Irretratável que desafia não só a lógica do instantâneo, mas a da suposta capacidade técnica de que dispomos hoje para dar forma visível ao nosso próprio código genético.

Numa situação extrema, a de gêmeos univitelinos, que dispõem do mesmo DNA, o que o mapeamento de seu código genético retrata? Fazendo de si mesma alvo de suas câmeras, Alice parte dessa pergunta para novamente nos obrigar a pensar o intervalo e o irretratável.

Em Ínterim/auto-retrato, expõe durante vinte minutos seu rosto transformando-se no de sua irmã gêmea idêntica. A transformação é tão lenta que a imagem parece estática. É Alice quem comenta:

“Eu e ela somos tão parecidas, que se tem a impressão de que a mudança é pouca ou nenhuma. No entanto, entre os pontos inicial e final, as imagens percorrem todos os mínimos graus de diferença entre nós duas. Essas imagens não são nem eu, nem ela, mas entre uma e outra, o que não fomos. A partir das duas únicas atualizações reais de uma mesma carga genética – eu, a primeira a nascer, e minha irmã, que nasceu vinte minutos depois – uma série de fenótipos potenciais foi criada. Essa série preenche o intervalo entre nós duas. Nesse ínterim, dá-se então uma seqüência virtual de possibilidades não realizadas. São tudo que não fui até ela, e tudo que ela não foi até mim.”

Esses não-acontecimentos projetados, seguidamente, no interior de intervalos sem parâmetros de escala nas medidas humanas, anunciam o que está por vir no seu premiado projeto de imagens invisíveis sobre Chernobyl.

Nessa nova empreitada, procura produzir uma série de imagens radiográficas da zona de exclusão através da própria radiação que assola o lugar, utilizando, para tanto, uma câmera pin-hole de chumbo especialmente desenvolvida para seu projeto.

Trabalhando apenas com a radiação presente na zona de exclusão, Alice propõe dar corpo agora ao imensurável da destruição. Do vazio que se imprimirá aí, é possível que possamos vislumbrar os invisíveis anos-luz de cada efêmero momento “irretratado” por suas lentes astronômicas.

Giselle Beiguelman é webartista, professora da pós-graduação em comunicação e semiótica da PUC-SP e co-editora da revista eletrônica Trópico. Seus projetos foram apresentados em exposições como a 25ª Bienal de São Paulo, Arte/Cidade, Net_Condition e Algorithmic Revolution (ZKM, Alemanha). É autora do livro Link-se(arte/mídia/política/cibercultura), entre outros.

Site pessoal: www.desvirtual.com

Site de pesquisa: netart.incubadora.fapesp.br

Associação Cultural Videobrasil. "ff>>dossier 027>>Alice Miceli". Disponível em: . São Paulo, março de 2007.