Texto de apresentação 2006
extras DVD + sobre os artistas + sobre os diretores Os extras "Mau Wal: Encontros Traduzidos" inclui o making of da instalação e performance "Deus é Boca" (2000), realizada no Rio de Janeiro. Na obra, Maurício Dias e Walter Riedweg lidam com a necessidade da fé e com os discursos de persuasão que saem de diferentes bocas: de um pastor, de uma drag queen, de um vendedor de rua. Quatro projetores e quatro canais de som envolvem o público com imagens e sons velozes, enquanto uma performer sorteia números do interior de uma vitrine de vidro e Deus ganha 44 definições, em palavras de quatro letras cada. Os artistas Nascido em 1964, o carioca Maurício Dias formou-se pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O suíço Walter Riedweg, de 1955, estudou na Academia de Música de Lucerna. O encontro casual na Suíça, em 1993, evoluiu para o desenvolvimento de uma prática artística conjunta, que envolve elementos de performance, documentação e instalação para provocar interferências em situações do cotidiano e questionar, a partir delas, as tramas sociais, afetivas e hierárquicas que conectam e desconectam os indivíduos. “O trabalho de Dias e Riedweg nos convida a repensar a relação entre estética e política”, escreve a crítica Catherine David. “Ele remete mais a ações poéticas, que produzem e abrem temporariamente, ou mesmo permanentemente, uma falha, uma interrupção, um distanciamento na ordem dos sentidos e no curso das coisas.” Dias e Riedweg expuseram nas Bienais de Havana, Liverpool, Istambul, Veneza, Xangai e São Paulo. Em 2005, foram objeto de uma grande retrospectiva no Museu de Arte Contemporânea da Finlândia, em Helsinque. Os diretores Marco Del Fiol é diretor, roteirista e editor de documentários e longas-metragens. Para a coleção Videobrasil Coleção de Autores, co-dirigiu também "Rafael França: Obra como Testamento" (2001). Para o Instituto Itaú Cultural, dirigiu "Emoção Art.ficial 2.0" (2004). Para o Centre Pompidou de Paris, "Marepe" (2005). Assina a edição e coordenação dos DVDs "Nomadismos: homenagem a Waly Salomão" (2003) e "Antologia Videobrasil de Performances" (2005), da Associação Cultural Videobrasil. Desde 1999 colabora com a ONG Cedac nos vídeos do Programa Escola que Vale, da Fundação Vale do Rio Doce. É professor de edição e câmera da Miami Ad School de São Paulo. Historiadora e crítica de arte, Fabiana Werneck Barcinski é formada em Desenho Industrial, com especialização em Arte e Arquitetura do Brasil e mestrado em História Social da Cultura, pela PUC-Rio. Escreveu o texto diretor do livro "Ivan Serpa" (2003) para o Banco Pactual; uma biografia de José Resende para publicação sobre a obra do artista pela editora Cosac & Naify; e ensaios sobre artistas visuais contemporâneos como Nuno Ramos e Claudio Elisabetski. Em 2005, foi roteirista do documentário "Marepe", dirigido por Marco Del Fiol. É editora da linha infanto-juvenil do selo Girafinha, da editora A Girafa.
Texto crítico Afonso Luz, 05/2003
Coreografias sub-urbanas (subterrâneas)
Produção da dupla Mauricio Dias e Walter Riedweg, compilada em documentário, propõe construção recíproca com diferentes grupos humanos, de porteiros nordestinos em São Paulo a imigrantes ilegais nos EUA. Numa sessão quase clandestina (sabe-se lá o porquê, talvez, na exagerada oferta cultural, tenha passado despercebida ao "Guia da Folha"), em meados de setembro do ano passado, no Cinesesc da rua Augusta aconteceu a avant-première dum vídeo-documentário sobre Maurício Dias e Walter Riedweg; filme que depois deste dia não passou a ser exibido em sala alguma do circuito oficial, pelo que me consta. Nessa rara oportunidade pudemos acompanhar como os dois artistas realizaram vários de seus trabalhos explorando situações urbanas bem particulares, experiências que se desenvolveram em diversas “praças” das Américas e da Europa, espaços de convívio indeterminado, situados no intervalo do público com o privado. A documentação impressiona pelo que faz ver desses experimentos artísticos. Há proposições desenvolvidas com a população carcerária juvenil e adulta de Los Angeles, com candidatos a “exilado” na fila de espera para obter visto de entrada na Suíça, com porteiros nordestinos que vivem em prédios residenciais paulistanos, com policiais americanos e imigrantes ilegais que convivem na fronteira do México com os EUA. Os trabalhos apresentados no documentário, sem dúvida alguma, são “antropologicamente” interessantíssimos ao flagrarem o fluxo de nossas sociedades contemporâneas e suas territorialidades diversamente precárias. Mas, além de delimitar as circulações e os trânsitos simbólicos de populações e comunidades que sofrem de um deslocamento em relação ao sistema global, o interesse para o campo da reflexão estética surge no como o material “humano” será formalizado dispondo de recursos que, poderíamos dizer, dialogam com a arte atualmente feita, ou melhor, com certas manifestações e práticas culturais que se tornaram a arte de hoje em dia. De um modo bem singular, cada trabalho propõe que um grupo humano, especificamente identificado pelos artistas, se reflita através de procedimentos variados dirigidos pela sensibilidade. Usando de sua própria linguagem e estruturas rudimentares de comunicação esse grupo de participantes, junto com os artistas, projeta a geração de registros sensoriais que põe em evidência as situações deste agrupamento problemático para ele mesmo; imagens, falas, gestos, ações serão re-dirigidos a si próprios. Esta produção de simbolizações identitárias, apesar de esteticamente desenvolvida pelos “artistas”, através de recursos que estão bem mais em seu domínio, se fará num intenso diálogo com os participantes da experiência. Note-se bem que não se trata da banalizada “interatividade”, nossa conhecida. Nestas obras há uma construção recíproca dos dispositivos (suporte, equipamentos e tecnologias) e da língua que será através dele veiculada, como se cada círculo social pudesse autonomamente construir um sistema de comunicação articulando, para falar no vocabulário corrente, o hardware e o software, como fazem os grandes conglomerados econômicos em suas complexas redes de produtos e de informação. Para definir estes trabalhos num campo comum de obras e procedimentos, diríamos insuficientemente que são “performances”, até pela sua afinidade com teatro, música e dança contemporâneos; isto se visássemos mais os procedimentos artísticos que levaram a um diálogo sensorial entre os envolvidos na situação inicial. Se os pensarmos como obras em seu contexto expositivo, diríamos que são “vídeoinstalações”. Mas tudo nesse registro de vagas “definições curatoriais” para a arte feita hoje está sendo redefinido na atividade da dupla. Alimentados em grande parte por um circuito internacional que financia projetos experimentais e eventos artísticos, a produção destes trabalhos se estabelece numa relação problemática com o próprio meio de arte, ocupando um lugar que não é nem “institucional”, nem “antiinstitucional”. Sua assombrosa independência dessa querela, para lá de infrutífera na maioria dos casos nela envolvidos (sobre o que faz de alguma arte a Arte), nos faculta uma experiência estética capaz de pensar situações limites da vida contemporânea. Uma das obras registradas no filme é a intervenção vista na última edição da mostra Artecidadezonaleste, que tinha como ponto de partida o agrupamento de camelôs e suas barracas de comércio popular no largo da Concórdia no centro de São Paulo. A proposta, negociada com os ambulantes, foi a criação de um sistema integrado de publicidade através de aparelhos de vídeos e TVs dispostos em cada ponto de venda. Nesta rede eram veiculados anúncios gerados pelos próprios comerciantes que discorriam sobre a qualidade de seus produtos, sobre a preferência de seus clientes, como foram parar ali, suas famílias, seus envolvimentos afetivos e tudo mais que lhes viesse à cabeça ao enfrentar uma câmara que produzirá sua imagem. Padronizados em inserções de 30 segundos a um minuto, intensificam o ruído entre o conteúdo precário das mensagens e a formalização em que são veiculados. Dois níveis discursivos e estéticos se interpenetram: por um lado, a tecnologia publicitária absorvida pelo circuito fechado onde produtores e receptores de imagem se identificam, através de sua auto-reprodução e auto-representação; de outro, sua auto-imagem desfigurada se redesenha através da tecnologia numa imagem consumível, sendo que este “consumo” se torna tão-somente uma experiência estética imaginária, uma “desfetichização” pelo enfeitiçamento do que é televisivo. A mercadoria, objeto de desejo eternamente insatisfeito, é tornada condição de uma satisfação objetiva. Há como que uma perversão dos meios pelo uso imprevisível do fluxo tecnológico e suas circunscrições em padrões de consumo e em estilísticas mercantis. A realização do projeto ganha um registro em vídeo, que diríamos ser a “obra de arte”, fita que será posta em circulação nas próprias barracas dos camelôs como um brinde comercial dado aos fregueses na compra de produtos acima dum valor estipulado. Uma comercialização que suspende a determinação do valor da arte por equivalentes monetários. Sabe-se lá o que fará o proprietário do trabalho casualmente adquirido, reconhecerá ele o valor do que possui? A reflexividade e o espelhamento deste processo se configura na criação de um observatório – lugar que dá nome à obra, Mera Vista Point – por meio da suspensão por andaimes duma barraca de pastel, ponto de vista elevado do qual vemos nas lonas, fazendo teto para as barracas, fotografias ampliadas do rosto de seus ocupantes. Coube aos artistas a reprogramação de um sistema de relações e intercâmbios para uma outra escala de circulação, capaz de ressaltar o que vai sendo silenciosamente tragado pelo violento fluxo urbano e acaba por ser disposto à margem dum mundo publicitário que fantasticamente fabrica nossa imagem coletiva. Afonso Luz ----------------- BOX - AGENDA MAU WAL, Encontros Traduzidos Direção: Fabiana Werneck Barcinski e Marco Del Fiol, 52 min, cor, 2002 Produção: Associação Cultural Videobrasil (av. Imperatriz Leopoldina, 1150, São Paulo, www.videobrasil.org.br)
LUZ, Afonso. "Coreografias sub-urbanas (subterrâneas)". Revista Número Um, Ano 1, Nº 1, maio-junho de 2003.