Ensaio Henry Burnett, 2010

Aquilo de que ninguém precisa

Em 1980, Arnaldo Antunes tomou uma decisão: deixaria seus pais morando no Rio de Janeiro e voltaria a morar em São Paulo, isso um ano depois de ter deixado a Pauliceia. Seus motivos pessoais pouco importam. Simbolicamente, tal dado biográfico indica algo importante em relação ao artista e sua obra, e permite um lance de dados: ele não poderia viver longe da cidade em que nasceu porque lhe é a síntese; Arnaldo é São Paulo inteira, e a cidade nutre sua obra de identidade multifacetada.

Cantor e compositor é apenas uma forma restrita – e consagrada – de se referir aos poetas-cantores como ele. Mas, aliado à notoriedade adquirida nos Titãs, isso explica, em parte, o desconhecimento que grande parte dos seus ouvintes possa ter em relação aos inúmeros desdobramentos de sua criação musical. Não é de hoje que essa designação tão comum não diz quase nada sobre a extensão de sua obra. Podemos pensar em seu trabalho a partir de pelo menos três frentes: o disco, o livro e a tela. Não por acaso deixamos de optar pela designação estilística comum: música, poesia e artes plásticas; é que, dentro daquelas mídias, Arnaldo desenvolve todos os seus interesses, independentemente do formato padrão e de suas atribuições corriqueiras.

Ao descobrirmos que sua formação acadêmica foi realizada num curso de letras, muito da direção posterior de suas criações ganha ares mais claros. Se a palavra foi sua fonte primordial, ela por si não bastou, quer dizer, aquela palavra escrita, e restrita à forma livro, foi desde sempre limitada. A palavra foi sendo extraída com o passar do tempo do casulo clássico e dinamitada a ponto de quase esfacelar, projetada sobre outras superfícies, o papel, o CD e a tela (plástica e virtual). Ainda que Arnaldo se arriscasse em representações geométricas e experimentais, a base de suas obras é a palavra.

Na série Caligrafias, termos soltos (‘instinto’, ‘instanto 4’, ‘transparente transpirante’, ‘olho bolha 2’) são destilados aos olhos, reditos, deformados, como se fosse preciso reler com dificuldade para que se pudesse “reentendê-los”. Claro que suas representações da palavra têm uma fonte ainda mais específica que seu laço com o curso de letras, e é bem conhecida essa fonte: o concretismo dos irmãos Campos e de Décio Pignatari. Mas a apropriação operada por Arnaldo foi além do vínculo anterior, estabelecido pelo tropicalismo. Como resultado, parece ter sido difícil assimilar um artista cujas fontes provinham do domínio culto, e mais ainda quando essas referências foram atravessadas pelo universo pop rock e pela MPB de modo bem mais radical que o ocorrido com os antecessores. Basta ver a distância que há entre a crítica de seus discos e a de seus livros. Decerto tomam-lhes por distintos e desconectados.

Mas os livros de Arnaldo não são caprichos de artista famoso; seu primeiro, OU E (edição do artista), foi lançado em 1983, praticamente ao mesmo tempo de seu envolvimento com os integrantes dos Titãs, com os quais formou as primeiras bandas de sua carreira. De lá para cá, os livros foram lançados em paralelo à produção musical, quinze, ao todo. Complementam sua carreira musical e são complementados por ela. Mesmo aquele onde ele se aventurou pela prosa, 40 escritos (Iluminuras, 2000), guarda a inquietação de quem manipula as palavras por necessidade vital. A diversidade de sua produção plástica e poética inclui poemas visuais, instalações, performances, arte digital, entre outros.

Mas esse peso da literatura e de todas as transgressões impostas a ela por Arnaldo não deve ocultar outra característica: sua música não se deixa apreender facilmente. Isso significa dizer que a destreza com a palavra somada ao conteúdo intelectual de seu uso integram-se em suas canções como uma forte subversão da tradição; no entanto, seu conhecimento e musicalidade podem conduzir facilmente à ideia de uma integração passiva e pacífica com o passado; uma reverência que não existe.

Se tomarmos uma canção de forte teor escatológico como O pulso (Marcelo Fromer, Tony Bellotto, Arnaldo Antunes, Õ Blésq Blom, 1989), encontraremos nela a mesma simbólica de outra, de 2003, parte da produção solo do artista e dita “de ninar”, Saiba (Arnaldo Antunes, Saiba, 2004); vejamos as duas na íntegra:

O pulso ainda pulsa 
O pulso ainda pulsa 
Peste bubônica câncer pneumonia 
Raiva rubéola tuberculose anemia 
Rancor cisticercose caxumba difteria 
Encefalite faringite gripe leucemia 
O pulso ainda pulsa 
O pulso ainda pulsa 
Hepatite escarlatina estupidez paralisia 
Toxoplasmose sarampo esquizofrenia 
Úlcera trombose coqueluche hipocondria 
Sífilis ciúmes asma cleptomania 
O corpo ainda é pouco 
O corpo ainda é pouco 
Reumatismo raquitismo cistite disritmia 
Hérnia pediculose tétano hipocrisia 
Brucelose febre tifoide arteriosclerose miopia catapora culpa cárie cãibra lepra afasia 
O pulso ainda pulsa 
O corpo ainda é pouco

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Saiba: todo mundo foi neném
Einstein, Freud e Platão também
Hitler, Bush e Saddam Hussein
Quem tem grana e quem não tem

Saiba: todo mundo teve infância
Maomé já foi criança
Arquimedes, Buda, Galileu
e também você e eu

Saiba: todo mundo teve medo
Mesmo que seja segredo
Nietzsche e Simone de Beauvoir
Fernandinho Beira-Mar

Saiba: todo mundo vai morrer
Presidente, general ou rei
Anglo-saxão ou muçulmano
Todo e qualquer ser humano

Saiba: todo mundo teve pai
Quem já foi e quem ainda vai
Lao-tsé, Moisés, Ramsés, Pelé
Gandhi, Mike Tyson, Salomé

Saiba: todo mundo teve mãe
Índios, africanos e alemães
Nero, Che Guevara, Pinochet
e também eu e você

Numa espécie de avesso uma da outra, a primeira canção avisa que há um sopro de vida em meio às verdadeiras doenças da civilização (o rancor, a estupidez, o ciúme, a hipocrisia, a culpa): o pulso (impulso?) artístico resta único para fazer frente aos males humanos, diluídos sorrateiramente em meio às doenças fisiológicas e degenerativas, maioria enganadora do poema, já que têm remédio.

A segunda enumera os homens famosos da humanidade que já foram criança. Ideia simples demais? Seria, se não servisse para diluir alguns dos mais doentios sinônimos daquela decadência do poema de 1989 (Hitler, Bush, Saddam). Com o mesmo dispositivo poético, a esperança permanece, agora com outros impulsos redentores possíveis: Gandhi, Che, Nietzsche.

Sua musicalidade expressa-se de formas múltiplas. Flerta com movimentos canônicos como a bossa nova e o tropicalismo, como em Alta noite (Arnaldo Antunes, Nome, 1993) e Passe em casa (A. Antunes, M. Monte, C. Brown, Tribalistas, 2002); funde a poesia de Alice Ruiz com a rítmica possante de sua verve pop em Atenção (Arnaldo Antunes, A. Ruiz, J. Bandeira, Paradeiro, 2001); compõe para o grupo Corpo (O corpo, 2000), transcria o iê-iê-iê de Roberto & Erasmo, e se multiplica em todas as direções.

Produziu apenas dois DVDs. Mas são projetos ímpares e marcantes. Nome é de 2006, e basta para que se tenha uma ideia exata dos cruzamentos entre sua lírica e o concretismo como experiência da forma da palavra em suas inúmeras possibilidades. Já no ano seguinte Arnaldo gravou para a Biscoito Fino o DVD Ao vivo no estúdio. Ambientado quase num quarto escuro, de sombreamento kafkiano – diríamos, abusando do clichê –, cercado de violões acústicos, um teclado, uma sanfona e detalhes mínimos. Para quem não entende o que se quer dizer com subversão da tradição – até porque Arnaldo não facilita –, o DVD é um primor de explicitação. Arnaldo canta as canções como se as estivesse falando, a melodia quase se oculta sob o grave impactante e até assustador – para quem se acostumou com a frugalidade do canto comercial. Mas é ali, na redução ao mínimo, que ele pode demonstrar aquilo que falta a toda música popular que pensa renovar a tradição repetindo-a: a inversão sonora do canto, a inadequação ao figurino, o trato soberbo com a palavra cantada.

As inúmeras transgressões operadas na música popular comercial no interior de sua obra têm uma sustentação que cada vez mais se impõe como o grande limite entre a tradição e seu vanguardismo: seu canto. Quando expressou em letra a extensão múltipla de sua obra, fê-lo de modo aparentemente conciliador em Música para ouvir (Arnaldo Antunes, Edgard Scandurra, Um som, 1998):

música para ouvir no trabalho
música para jogar baralho

música para arrastar corrente
música para subir serpente

música para girar bambolê
música para querer morrer

música para escutar no canto
música para baixar o santo

música para ouvir música para ouvir música para ouvir

música para compor o ambiente
música para escovar o dente

música para fazer chover
música para ninar nenê

música para tocar na novela
música de passarela

música para vestir veludo
música pra surdo-mudo
música para ouvir música para ouvir música para ouvir

música para estar distante
música para estourar o falante

música para tocar no estádio
música para escutar no rádio

Na verdade, suas distintas faces estão presentes nas possibilidades abertas na letra ou, melhor dizendo, os possíveis destinos comerciais de sua música aparecem claramente. Mas, se por um lado poderíamos pensar que Arnaldo está aceitando o relativismo atual acerca das diversas esferas da música popular, isto é, se imaginamos que ele cede à crítica rasteira do ‘tudo é música’ porque expressa camadas sociais destituídas de percepção culta e chafurdadas na miséria, parece um engano deixar de ver na letra exatamente sua própria multiplicidade escancarada. Ainda que Arnaldo flerte com a tradição brega ao cantar Americana (Dogival Dantas), trata-se de um procedimento tropicalista, um exemplo, portanto, distinto da chamada “música de periferia”.

Música para ouvir é também música para quem pode ouvir, ou ainda, para aqueles que, mesmo na distração da novela, da mesa de baralho, do baile numa sede qualquer do Pará ou, sobretudo, por causa de todas elas, vivem a música como parte da vida. Aparente contradição pensar em Arnaldo como um didático (e enganoso), pois o relativismo vigente atinge (e pensa proteger) exatamente aqueles que não necessitam de música, que não foram educados para precisar dela – estamos infelizmente no terreno do conceito. Bem ao contrário, elas dispensam a explicação que teimamos em lhes dar; e é essa a máscara que Arnaldo Antunes empunha diante de sua face bizarra: ele dá aquilo de que ninguém precisa.