Entrevista Teté Martinho, 2006
Dos artistas brasileiros que usam o audiovisual como ferramenta de expressão poética, você é um dos mais aceitos e valorizados no mundo dos festivais de cinema. Isso acontece apesar de você jamais trabalhar dentro dos limites de um gênero cinematográfico, como o documentário. Ao que você atribui essa aceitação? A uma crescente abertura nessas instituições ligadas ao cinema? Ou a alguma característica do seu trabalho em particular?
Acho que é justamente por não acreditar em limites e em gêneros cinematográficos! Sou contra categorizacões e o cinema é uma arte que ainda está no berço. Na medida em que despendemos tempo e esforço para fazer com que a criança ande, somos 'aceitos', pelo menos por aqueles que acreditam na força do cinema enquanto arte e 'ferramenta de expressão poética'.
Olhando retrospectivamente para sua obra, você acha que se distanciou muito do que chamava de “cinema de cozinha”? Se ela não é mais apenas o “exercício diário de observação solitária do mundo”, o que mudou no que diz respeito à despretensão e à intimidade com o meio?
Não creio que me distanciei do que chamo de “cinema de cozinha”. Apenas equipei minha cozinha com fornos, fogões, geladeiras, utensílios mais modernos e sofisticados. O avanço tecnológico é sempre bem-vindo, mas os ingredientes para fazer uma boa comida são geralmente os mesmos. Não podemos nos encantar demais pelos balangandãs eletrônicos de nosso forno. É preferível manter sempre o olho na massa para que ela não queime ou passe do ponto. Meu trabalho nunca foi apenas o “exercício diário de observação solitária do mundo”. Isso talvez seja sempre o ponto de partida. Para criar, por exemplo, um filme sobre um outro mundo é inevitável que eu parta de minha própria referência de mundo. Por outro lado, é inevitável que, às vezes, eu me entedie um pouco, pois nosso mundo anda se repetindo muito. O medo é o que mais me preocupa em nossa contemporaneidade. As pessoas andam com medo de ser elas mesmas e preferem se agrupar ao semelhante, sendo que o diferente é o que gera movimento.
Você vê movimentos diferentes em seus trabalhos: os mais plásticos são contemplativos; os mais documentais, um mergulho no tema; e os que registram uma ação, provocações. Existe uma linha evolutiva aí ou todos são igualmente importantes? Para qual desses movimentos você se volta mais neste momento?
Todos são obviamente importantes. Todos foram importantes naqueles momentos em que nasceram. Sempre busquei fazer algo diferente do que já havia feito, sempre busquei um embate comigo mesmo para me conhecer melhor. Concluí que, para mim, é mais fácil ficar numa posição contemplativa da realidade e retratar essa realidade através do olhar. Mais difícil é, às vezes, ter uma boa idéia; mais que isso, programar antecipadamente uma obra em todos os seus detalhes. Por isso ando pensando em parar um pouco minha vida para escrever um roteiro. Não porque eu ache importante escrever roteiros, mas porque nunca fiz isso. Sempre que tentei escrever algum, acabou virando um texto literário. Quero investigar o que é isso de imaginar um filme antes de realizá-lo. Note que é uma proposição para que eu mude também meus hábitos cotidianos. Para que eu viva uma outra realidade (a do filme imaginado) dentro da minha realidade. Não deve ser fácil, talvez eu não seja uma pessoa tão concentrada e objetiva assim, mas não custa tentar.
Desde o nome, Concerto para clorofila é uma obra marcada pela musicalidade. Como criador de audiovisual e (pelo menos originalmente) “homem da imagem”, como você se relaciona com o som nos seus trabalhos?
Da mesma forma que a imagem pode ser som, o som pode também ser imagem. Existem muitos pontos de confluência e fusão entre estes dois elementos. Imagem e som são farinha e ovo para a massa que vai ao forno. Para cada trabalho existe uma medida onde um mistério é fermentado. Tenho uma relação romântico-barroca com o som. Foi preciso encontrar O Grivo (e John Cage via O Grivo) e João Cabral de Melo Neto para que eles me ensinassem o outro lado da sonoridade. Aprendi a respeitar e ter carinho especial por cada partícula de som que nossos ouvidos alcançam (inclusive os que imaginamos). Aprendi a distinguir a gravidade da gravidez sonora, e expandir isso para as imagens. Se para Cage “o silêncio está grávido de som”, que tela estaria grávida de imagem, a branca ou a negra? Me pergunto se o silencio é branco ou negro. Se o silêncio está grávido de som ou se é um cemitério, um depositário de ossadas sonoras.
O que são as Gambiarras? O que te atrai continuadamente na fotografia?
Gambiarra é a síntese do que chamamos Ser Humano. Um ser inacabado, graças a Deus! Cada um dando seu jeito para continuar vivo. Gambiarra é filosofia, religião e arte. Gambiarra é ainda encontrar aquele galhinho na queda do abismo. Gambiarra é constante reinvenção, é rediagramar as leis da natureza. Gambiarra é Deus quando fez o mundo. O que sempre mais me atraiu na fotografia foi poder desenhar com a luz.
Como começou sua colaboração com Marcelo Gomes? O que ele traz para o seu trabalho?
Conheci Marcelo há dois anos em Belo Horizonte quando ele estava editando seu filme Cinema, aspirinas e urubus com a Karem Harley na cidade. Ficamos amigos (talvez porque eu o tenha tirado de um sórdido e impessoal apart-hotel na cidade). E, como todos os amigos, deliramos e divagamos muito ao redor de um copo de cerveja e/ou cachaça - pensamos a revolução 'fora-do-eixo' do cinema nacional; engendramos filmes mirabolantes que nunca serão feitos; discorremos sobre nossos heróis e nossos algozes comuns e in-comuns etc. Ou seja, descobrimos identidades e desejos comuns que são o embrião de toda parceria. Decidimos então experimentar essa parceria na edição de Concerto para clorofila, que foi maravilhosa. Ele trazia uma experiência e uma forma de fazer cinema que era diferente da minha mas que não obstruía o que até então eu havia construído enquanto método do fazer. Pelo contrário, era uma somatória de diferentes pontos de vista, coincidentes ou não, que se confluíam no desejo do fazer e do trocar. Cada parceria traz elementos novos para meu trabalho. No caso específico do Marcelo, acho que foi principalmente sua noção do tempo cinematográfico e sua obstinação/perseverança em realizar um cinema de expressão poética, livre das amarras e dos códigos que a indústria geralmente impõe (ficou, por exemplo, sete anos para realizar seu primeiro longa, o que eu pessoalmente acho impressionante).
Em quais projetos você está envolvido agora? A trilogia da solidão, inaugurada com A alma do osso, continua?
Estou terminando a edição de um filme que é a segunda parte da trilogia da solidão. Um filme sobre andarilhos que tem o título provisório de Com os pés um tanto fora do chão. Junto com o Marcelo Gomes, estamos iniciando o processo de roteirizacão da terceira parte da trilogia baseado no conto de Edgar Allan Poe O homem das multidões. Junto com O Grivo, vou ao México realizar vários pequenos filmes para um DVD e uma exposição no Museu Carrillo Gil, na Cidade do México. Junto com a Rivane Neuenschwander, estou acabando de editar um pequeno filme sobre formigas carnavalescas. E, finalmente, um trabalho extremamente necessário: neste ano/início do próximo, espero lançar, no circuito de cinema, dois ou três filmes. Se tudo der certo, os filmes A alma do osso, Acidente e Com os pés um tanto fora do chão poderão ser vistos por um público maior que os de galeria, museus e festivais de cinema. Para tanto é preciso um esforço sobre-humano de tentar uma forma alternativa a esse sistema viciado de exibição cinematográfica no Brasil.
Quando será sua residência no Gasworks? Você já tem algum projeto em mente para realizar lá?
Será nos meses de outubro, novembro e dezembro. Ainda não defini um projeto para realizar lá, mas suspeito que terá algo a ver com a emoção do reencontro com uma cidade onde já vivi (no caso, Londres).