Entrevista Teté Martinho, 02/2006
Em um texto sobre Un Cercle autour du Soleil você menciona a “amnésia que a sociedade de Beirute escolheu deliberadamente como caminho para sair da guerra civil”. Você acha que sua arte é um antídoto para essa amnésia – ou um caminho alternativo para escapar do trauma da guerra?
Não encaro minha arte como um processo de cura de uma experiência traumatizante de qualquer natureza. Acho que uma das razões pelas quais o povo libanês escolheu a amnésia como caminho para deixar a guerra civil para trás é a incapacidade de comunicar essa experiência de forma “adequada”. Uma situação de guerra não é necessariamente uma experiência única, impossível de representar, mas a imagem preexistente que temos da “guerra”, com base na ficção ou em reportagens nos noticiários, é distante da experiência real. Acho que não dispomos dos meios e da linguagem para discutir a guerra. Com minha arte, busco uma linguagem que possa comunicar ou compartilhar elementos dessa experiência, não como um antídoto para o estado de amnésia no qual talvez estejamos vivendo, mas visando ficcionalizar minhas memórias da guerra. Não se trata de “lembrar”, mas de “inventar”, para conseguir entender.
Como você acha que a experiência da guerra lhe afeta como artista?
Durante uma guerra civil, principalmente quando ela dura 17 anos, a lógica das coisas é quebrada. Mas o caos da guerra também tem sua lógica. A guerra é vivida em sua rotina cotidiana, suas alegrias e tristezas no dia-a-dia, e se funde com nossas histórias pessoais. Talvez o problema esteja no fato de que a guerra não pode ser vista como uma série de eventos dos quais conseguimos nos lembrar, mas também não pode ser vista como uma série de histórias pessoais, uma vez que a natureza do trauma afeta essas histórias. Talvez seja isso que a guerra faz: ela expõe a ligação entre experiência pessoal e história.
Quando aconteceram suas primeiras experiências com arte? Como foram essas experiências? De que modo surgiram temas recorrentes, como a morte e a superfície do corpo, em seus primeiros trabalhos?
Meu primeiro diploma foi de Bacharel em Design Gráfico pela Escola de Arquitetura de Beirute, onde estudei História da Arte e Arquitetura. Minha carreira no design me deu a oportunidade de trabalhar bem perto de artistas, mas sempre na posição de designer. Comecei no teatro como performer, depois fui cenógrafo. Histórias de assassinatos misteriosos sempre me intrigaram. Ficava fascinado pelo detetive que sai em busca de uma pista perdida ou de um corpo desaparecido. Um de meus primeiros projetos foi um game interativo sobre um assassinato misterioso numa biblioteca. Existe, na ficção policial clássica, uma oposição entre o tema e a linguagem; por isso a biblioteca é o lugar mais adequado – ou o mais inadequado –, o lugar mais perturbador para encontrar um cadáver. O projeto Un Cercle autour du Soleil começou como a história de um detetive que perambula pelas ruas de Beirute em busca de um corpo desaparecido. Tenho interesse em lidar com esse assunto não resolvido em minha cidade depois da guerra. Gosto de inspecionar essa linha nebulosa entre estar vivo e estar morto, entre Beirute, a metrópole, e Beirute, a necrópole. Não sei se alguém sai vivo da guerra.
Em As Dead as Ever, você usa endereços de pessoas mortas para desenhar seu próprio mapa de Amsterdã – uma forma de se apropriar da nova cidade. Em sua infância, havia um processo semelhante na maneira como você desenhava seu mapa pessoal de Beirute?
Quando eu era criança Beirute não era tanto uma cidade geográfica. Era reduzida aos seus elementos: ruas, postos de gasolina, lojas… Todas as ruas tinham perdido seus nomes. As coisas eram divididas e subdivididas todos os dias. Não conseguia enxergar Beirute em um mapa imaginário. Mesmo hoje em dia, a maioria dos cidadãos de Beirute não sabe ler um mapa de sua cidade. Beirute, a cidade, era um nome e um conceito. As ruas, a geografia não correspondiam necessariamente àquela cidade.
Qual a história da Noteboomschool, citada em RedRum? Por que a referência a O Iluminado, de Stanley Kubrick?
No início do século passado, a Noteboomschool era uma escola para crianças com problemas respiratórios. A escola tem uma história intensa, muitas crianças doentes morreram no prédio. A DasArts, escola de artes do espetáculo, foi a primeira instituição a ocupar o prédio desde o fechamento da Noteboomschool, no início da década de 1990. O prédio é bem estranho, com longos corredores e muitas portas. Na instalação RedRum, tentamos evocar a história do prédio, bem como nossa relação de recém-chegados a esta escola. Queríamos reavivar o mito da escola, invocando as crianças a voltar, como mortos-vivos, para reivindicar seu espaço. Foi uma tentativa de pensar nossa relação com o novo espaço que pretendíamos ocupar, comentando a sensação “unheimlich” (sobrenatural) que todos nós tínhamos nesse novo prédio. Um triciclo foi oferecido ao DasArts para que fosse colocado em seu longo corredor, em homenagem a O Iluminado de Kubrick.
As imagens que você menciona em sua performance Give Me a Body Then são sedutoras e, em alguns casos, mortais. Qual o poder da imagem para você?
A relação entre fotografia e morte sempre foi evocada. As imagens nos levam de volta a um estado objetificado, e sempre há tensão entre o fotografado e a fotografia. Uma das primeiras fotografias jamais feitas é um auto-retrato de Bayard interpretando um homem afogado em 1840. Desde o seu nascimento a fotografia flerta com a morte e, sendo assim, carrega o germe de seu próprio fim. Para mim, essa característica das imagens é muito sedutora. Como designer gráfico, sou um criador de imagens, mas tenho consciência do poder das imagens que crio: um poder que vai além de mim. Para mim, a autoridade de algumas imagens está na disponibilidade que elas têm de serem tocadas, de serem olhadas por nós e também de olharem para nós; sua disponibilidade de serem possuídas e penetradas.
Essa performance foi a primeira ocasião em que você explorou os limites entre memória e ficção?
Em toda a minha obra, não traço uma linha entre o que é ficção e o que é recordação. Em Un Cercle autour du Soleil descrevo uma relação pessoal com meu corpo e com Beirute. No entanto, naquilo que parece ser um relato íntimo dos anos de guerra, permito que a ficção habite minha história. Não questiono esses limites e definitivamente não os tento definir. Sinto uma necessidade de ficcionalizar minha experiência para poder explorar a ligação entre corpo e espaço público, entre memória pessoal e fantasia coletiva. Descobri que, através da ficção, o inconsciente pode habitar o espaço público.
Você está preparando uma instalação em colaboração com Rabih Mroué para Hadith (Conversation), uma exposição coletiva que deve acontecer ainda este ano em Beirute. Do que se trata?
O título da instalação é I Feel a Great Desire to Meet the Masses Once Again. A instalação usa reproduções de fotos famosas de performances de artistas do corpo ocidentais. Essas reproduções de fotografias são colocadas ao fundo de imagens da manifestação de 1 milhão de libaneses, ocorrida em 14 de março de 2005, após o assassinato do ex-primeiro ministro Rafic Hariri. As obras reproduzidas são Self-Portrait as a Fountain (1966-67), de Bruce Nauman; Leap into the Void (1960), de Yves Klein; e Conversions (1971), de Vito Acconci. Em nossa sociedade o indivíduo não tem lugar; sempre fazemos parte de um grupo religioso, de uma tribo, de uma família. A instalação tenta pensar a relação que esses artistas do corpo tinham com seu corpo, bem como nossa relação com nosso corpo quando fizemos parte dessa manifestação gigantesca em Beirute. A manifestação nos expele e nos arremessa para fora, enquanto indivíduos. Temos um rosto quando somos parte de 1 milhão de outros rostos?
Quais são os seus projetos em andamento, além de Hadith?
Estou preparando um projeto em vídeo, uma continuação de minha pesquisa sobre corpos e cidades. Atualmente, estou redigindo uma série de pequenos textos em preparação para esse vídeo.