Biografia comentada Teté Martinho, 01/2006
O gesto ao mesmo tempo estético e político, que encontra suporte no espaço urbano, marca a obra de Daniel Lima (Natal-RN, 1973), das experiências esculturais com raio laser à produção dos coletivos de intervenção midiática que o conectam à onda internacional de ativismo dos anos 00. A busca de um espectro de ação mais amplo e randômico que o circuito da arte aproximou o artista da cidade, compreendida tanto como lugar físico quanto como teia de relações codificadas de poder e troca. Suspender a percepção normal dessas relações, substituindo-a por uma tensão que pode ou não ser povoada por mensagens específicas, é o intuito primordial de sua obra, que funde gêneros com liberdade e compreende, mais do que um resultado, o percurso do planejamento da ação até seu registro.
Lima já aproxima gesto artístico e espaço urbano em Daniel na Cova dos Leões (2001), seu trabalho de conclusão do curso de Artes Plásticas na Escola de Comunicações e Artes da USP. Nas intervenções reunidas pelo vídeo, ele ora desenha um traço efêmero com areia em uma avenida, a partir de um carro em movimento, ora registra, da janela de um trem, composições produzidas com os rastros das luzes da cidade. A seqüência inaugura uma vertente importante de pesquisa, que passa por desenhos luminosos criados com helicópteros e registrados em fotografia, e dá origem à série Coluna Laser (2001-2005), em que cria, a partir da plasticidade dos raios, intervenções urbanas carregadas de significado. Exibida no festival Sonarsound (2004), Coluna Laser II - Opostos conectava a favela de Paraisópolis ao Centro Empresarial de São Paulo. No ano seguinte, Coluna Laser III - Mar se projetava para o Atlântico desde o píer do MAM da Bahia, recompondo a ponte fugidia entre Salvador e África na primeira Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea.
A maturação da refinada obra plástica de Lima, que chega a uma expressão importante na série Coluna Laser, corre paralela ao cultivo de elementos da cultura hip-hop (em trabalhos seminais como Pichação Laser, de 2001), à emergência das temáticas sociais e aos experimentos com formas diversas de intervenção, que ele realiza sozinho ou em grupo, e registra em vídeo ou foto. Em Tudo que está no alto é como o que está embaixo (2003), preso a uma ponte levadiça, acompanha seu deslocamento para cima, como um passageiro clandestino. Em Blitz (2002), se faz fotografar com policiais militares, criando imagens emblemáticas do desconforto de parte a parte e tocando, com ironia, o tema do racismo policial. No mesmo ano, cria com o irmão, o DJ Eugênio Lima, o espetáculo A Revolução Não Será Televisionada, que soma imagens de intervenções, música ao vivo e narração - em um formato cujas variações ele exploraria com freqüência nos anos seguintes.
O verso da canção The Revolution Will Not Be Televised, de Gil Scott-Heron, batiza também o núcleo de mídia que Lima cria em seguida com Fernando Coster, André Montenegro e Daniela Labra, e que se dedica a produzir interferências midiáticas e a desafiar lendas da comunicação de massas. O grupo alimenta um programa na TV USP com edições radicalmente experimentais de obras em vídeo de artistas como Lia Chaia, Tiago Judas, Ricardo Ramalho, Túlio Tavares e Bijari, trechos de programas regulares e narração. O tom de ativismo atrai a atenção do crítico Ricardo Rosas, que inclui o grupo no festival Mídia Tática Brasil (2003), aproximando-o de coletivos locais e internacionais que trabalham em linhas correlatas. No Festival, o ARNSTV produz a ação registrada no vídeo Famosos em passeio, Famosos em chamas, em que passeia com displays em tamanho natural de celebridades da TV pela cidade, explorando até o máximo a ironia dos semblantes congelados e, finalmente, queimando-os em uma fogueira na avenida Paulista.
Realizado no mesmo ano, com o grupo de teatro Cia. Cachorra (Fabiana Prado, Melina Anthis e Paula Pretta), Liberte-se retoma a idéia da intervenção urbana que gera registro e espetáculo. Com ações em três cidades, a obra exemplifica tanto a riqueza das reflexões produzidas por anônimos a partir da exortação do título quanto a singularidade das estratégias de intervenção criadas pelo grupo - que, em uma das seqüências, convida crianças a vender em um sinal de trânsito, por R$ 1, um folheto contendo a frase do título e balas de revólver usadas. Subverter o uso de espaços alternativos de comunicação e troca é uma estratégia recorrente na obra de Lima - que, na mesma época, com Fernando Coster, registra a tentativa do artista Jailtão de vender tolerância e consciência aos passageiros de um ônibus urbano.
Truculência e racismo policial - mote da ação em que tranca com cadeados uma praça guardada por policiais na VIII Bienal de Havana (2003) - voltam a ter destaque entre os temas de Daniel Lima a partir de 2004, quando ele passa a integrar o coletivo Frente 3 de Fevereiro. Fundado por sua mãe, Maurinete Lima, o grupo é uma resposta ao assassinato do jovem advogado negro Flávio Sant'Ana pela Polícia Militar de São Paulo. Em sua ação inaugural, Monumento Horizontal (2004), marca o local do crime com uma placa de concreto, emprestando estratégia usada por ativistas argentinos nos anos de ditadura militar no país. Composta ainda por Achiles Luciano, André Montenegro, Cibele Lucena, Eugênio Lima, Felipe Teixeira, Felipe Brait, Fernando Coster, Fernando Sato, Julio Dojcsar, Maia Gongora, Maysa Lepique, Nô Cavalcanti, Pedro Guimarães e Sônia Montenegro, a Frente explora um episódio de racismo no esporte na performance Futebol, comissionada para Associação Cultural Videobrasil para abrir o 15º. Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil (2005).
Responsável, com Eugênio Lima, pela coordenação artística dos espetáculos do grupo e por suas estratégias de ação - como a bandeira gigantesca erguida em um estádio lotado, na hora do gol, com a pergunta “Onde Estão os Negros?”, em Futebol -, Daniel Lima segue produzindo em várias frentes, freqüentemente expandindo os limites de seu trabalho e da arte associada à intervenção urbana. Em 2004, dirigiu com Fernando Coster e Thiago Dotori os b-boys que dançam em Mutant Break, clipe do DJ Malocca, que reúne os produtores Will Robson e Noizyman e a cantora Clara Moreno. Em 2005, participou do projeto colaborativo Perambulação, que reuniu artistas brasileiros e holandeses na segunda Bienal Internacional de Arquitetura de Roterdã; coordenou a intervenção CUBO, do Centro Cultural Banco do Brasil, com os grupos A Revolução Não Será Televisionada, Bijari, Cia. Cachorra, C.O.B.A.I.A., Contra Filé e Perda Total, em São Paulo; e realizou, dentro do festival de novas mídias Prog: Me, a irônica Arrastão, intervenção com 30 modelos loiros nas praias de Ipanema e Leblon, no Rio de Janeiro.