Biografia comentada Paula Alzugaray, 03/2007

Ao idealizar projetos para lugares distantes, muitas vezes de difícil acesso, Alice Miceli comporta-se como autêntica artista-viajante. Suas experiências estrangeiras aproximam-na, inclusive, dos marinheiros descritos por Walter Benjamin, em O narrador, como “os primeiros mestres da arte de narrar”. As viagens da carioca Alice Miceli começam aos dezenove anos, ao cursar a École Supérieure d’Études Cinématographiques, em Paris, com uma bolsa do governo francês. A partir da formação em cinematografia e técnicas audiovisuais, Alice retorna ao Rio de Janeiro em 2002 e durante esse ano dedica-se a assistência de direção e estágios na área do cinema, trabalhando com o documentarista Silvio Tendler e como estagiária de edição do filme Um passaporte húngaro, de Sandra Kogut.

O desvio de rota acontece quando o interesse crescente pelas artes plásticas leva-a a cursar uma pós-graduação lato sensu em história da arte e arquitetura do Brasil, na PUC-RJ, e a ingressar no Grupo de Estudos e Discussão de Projetos do professor Charles Watson, no Parque Lage. O primeiro trabalho que surge desse novo processo, Ínterim/auto-retrato (2003), utiliza-se de um gênero clássico da história da arte para produzir uma reflexão sobre o caráter mutável e indefinido da identidade contemporânea. O vídeo foi indicado ao 4º Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia, em 2003, e exibido em mostras e festivais, como o Videoformes Festival, em Clermont-Ferrand, na França, e a mostra laisle.com, no Rio.

Um ano depois, Alice Miceli volta para a estrada. Com o apoio da agência on-line de notícias News Market, vai para Phnom Penh, capital do Camboja, atrás dos arquivos de fotografias de identificação dos prisioneiros do presídio de extermínio do Khmer Vermelho. O interesse por lugares “fora de rota” levam-na a descartar o caminho mais fácil – a Yale University ou a Columbia University também têm cópias dos negativos – e a escolher como destino o Tuol Sleng Genocide Museum, antiga prisão S-21, onde 14 mil pessoas foram assassinadas pela ditadura, nos anos 1970. Durante quinze dias de pesquisas, a artista consegue identificar o tempo restante da vida de 88 prisioneiros, entre seu encarceramento e seu instante final. O resultado da viagem é o vídeo 88 de 14.000 (2004), em que as fotografias de identificação são projetadas em cortinas de areia. O trabalho ficou exposto em looping no 15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil e foi finalista do prêmio do transmediale.05 International Media Art Festival, em Berlim, na Alemanha, ambos em 2005.

Mesmo que a quantidade de areia despejada em cada caso reflita o tempo de vida passado na prisão, Alice Miceli sabe que, pelas leis da matemática, a distância entre um ponto e outro é infinita. Nesse sentido, 88 de 14.000 poderia ser visto como uma atualização d’O livro de areia, de Borges. A questão da infinitude do tempo será o centro da investigação da artista dois anos depois, na série Dízima periódica.

Naquela edição, o Transmediale International Media Art Festival enfocava o sudeste asiático e 88 de 14.000 chamou a atenção de uma fundação de intercâmbio entre artistas asiáticos e europeus, sediada em Cingapura. A partir do convite para um workshop, Alice embarca para Bandung, na Indonésia, para participar do projeto Third Asia-Europe Art Camp: Artists’ Initiatives Spaces and New Media Arts, no Bandung Center for New Media Arts.

A obra 88 de 14.000 foi um trabalho importante no desenvolvimento da artista, porque despertou nela o interesse pelos eventos apagados da memória recente e pelas situações “soterradas”, que influenciam de maneira sutil e decisiva a atualidade das relações sociais de um povo. Essas eram precisamente as questões da exposição On Disappearance. Loss of World; Escaping the World, da qual o trabalho participou, no PhoenixHalle, em Dortmund, na Alemanha.

Durante residência na Cable Factory – UNESCO-Aschberg Bursaries for Artists Programme, em Helsinque, na Finlândia, entre 2004 e 2005, Alice Miceli trabalhou com a representação do Holocausto, em Little White House (2005). O vídeo realiza o percurso de uma prisão de extermínio nazista até o vilarejo de Chelmno nad Nerem, no sentido inverso ao caminho realizado pelas vítimas do Holocausto. Dessa forma, propõe uma revisão da representação da história.

As questões levantadas pelo tratamento do espaço, em Little White House, e do tempo, em 88 de 14.000, suscitaram na artista perguntas do gênero: “Como realmente atravessar a distância entre dois pontos de um determinado espaço? Como dar conta, através da imagem em movimento, da transformação conceitual que pode ocorrer quando cruzamos uma fronteira? Quais as possíveis naturezas do limite?” O desconforto gerou a série de vídeos Dízima periódica, que se lança à investigação do mistério da infinitude entre dois pontos. Integram a série 99,9...metros rasos e 14 horas, 54 minutos, 59,9...segundos, ambos de 2006. Os vídeos foram exibidos na mostra Rumos Artes Visuais – Paradoxos Brasil, no Itaú Cultural, e na mostra Videometria – O vídeo como ferramenta de medição na arte contemporânea brasileira, no LOOP Festival, em Barcelona, na Espanha, ambos em 2006. Seu mais recente projeto, ainda em processo, volta a debruçar-se sobre a história, retornando à questão: como nos relacionamos hoje com nosso passado? Com uma bolsa fomento para produção, concedida pelo Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia, o Projeto Chernobyl prevê para o ano 2007 o registro radiográfico da radiação produzida na zona de exclusão da cidade de Pripyat, na Ucrânia, local do acidente radioativo na usina nuclear de Chernobyl. Ao inventar e desenvolver uma tecnologia inédita para a missão – o que está sendo feito com a colaboração de cientistas do Instituto de Radioproteção e Dosimetria, no Rio de Janeiro –, Alice Miceli insere-se na tradição do artista-cientista, lançando mão dos recursos da ciência e da tecnologia a serviço de sua busca pela especificidade da imagem.