Ensaio Giselle Beiguelman, 03/2007
Irretratáveis anos-luz
O fim no começo
A palavra cortada
na primeira sílaba.
A consoante esvanecida
sem que a língua atingisse o alvéolo.
O que jamais se esqueceria
pois nem principiou a ser lembrado.
O campo – havia, havia um campo?
irremediavelmente murcho em sombra
antes de imaginar-se a figura
de um campo.
A vida não chega a ser breve.
Carlos Drummond de Andrade
O que me fascina no trabalho de Alice é a sua coragem de enfrentar o efêmero, recusando a lógica do instantâneo. Investindo sempre na imagem do que não é retratável, parece posicionar suas câmeras como uma astrônoma e não como documentarista, testemunha, ou narradora. Os astrônomos são cientistas que desafiam nossas medidas banais, baseadas em referências mais e menos antropocêntricas, como pés e polegadas, que têm obviamente o corpo humano como parâmetro, ou o metro, baseado nas dimensões da Terra.
Sua unidade de distância é o ano-luz, a distância que a luz percorre em um ano no espaço vazio, na velocidade de 300 mil quilômetros por segundo. Quanto mais distante um objeto, mais anos-luz percorridos, pois maior a distância que sua luz viaja. Isso faz com que se produza um fenômeno desconcertante descrito com rara simplicidade e poesia pelo físico Marcelo Gleiser: “Olhar para o cosmo é viajar para o passado”. Afinal, a luz que vemos corresponde ao objeto como era no passado e não no presente. Só para se ter uma noção das escalas de deslocamento que estão envolvidas nessa relação, basta lembrar que a luz da galáxia Andrômeda, vizinha da Terra, saiu de lá há 2 milhões de anos, ou mais ou menos na época da formação da espécie humana.
Em tamanhas escalas espaciais de deslocamento, o instante parece não fazer sentido algum. Não importa aqui o suposto “tempo real”, que tanto intoxica o discurso midiático, a virtualidade do cruzamento do aqui e agora com o lá e então. Importa ter ciência de que o presente, em muitas dimensões, é apenas passado, e o que se vê como real não passa de poeira cósmica. E é aí que Alice nos obriga a repensar as estratégias correntes de lidar com a história e com a memória, nos assaltando, sem terror, com vestígios por vezes mórbidos, por vezes imponderáveis, muitas vezes trágicos, da ação humana, na política e na ciência.
Sem alarde, por exemplo, nos convida a contemplar o peso da dor das vítimas das prisões políticas do Camboja com seu 88 de 14.000, de 2004. Neste projeto, um dos destaques do transmediale.05, apresentava retratos de 88 dos 14 mil mortos em uma prisão de extermínio no período do Khmer Vermelho, nos anos 1970.
As horas ou dias decorridos da entrada na prisão, quando era tirada a foto, até a execução são representados pelo período equivalente no qual cada imagem é projetada em uma parede de areia. Nesse tempo em suspensão, somos convertidos de espectadores em cúmplices de um silêncio lancinante que parece ficar entranhado nas paredes etéreas da projeção. Trata-se de um silêncio quase sufocante porque é incapaz de reter as imagens fantasmagóricas que se projetam no intervalo entre a última foto da vida/primeiro instante da morte de cada um desses 88 rostos de uma multidão de 14 mil.
É essa elasticidade do tempo, esse enigma do intervalo, da incapacidade das medidas humanas darem conta da duração da vida, incluindo-se aí a que separa a vida da morte, o elemento que me parece alinhavar os projetos todos de Alice sob uma mesma densa linha de pesquisa.
Em 14 horas, 54 minutos, 59,9...segundos (2006), propõe um curtíssimo longo vídeo de quarenta segundos em que estende o último momento do fotógrafo Robert Capa, fundador da agência Magnum, manipulando única e exclusivamente a foto derradeira de um dos maiores artistas-documentaristas de todos os tempos.
Alice nos lembra que no Vietnã, às 14 horas e 55 minutos do dia 25 de maio de 1954, o fotógrafo Robert Capa pisou em uma mina e morreu, durante a cobertura que realizava da Guerra da Indochina. A última foto que realizou, momentos antes de sua morte, contudo, permaneceu em sua câmera. Ela mostra seus companheiros de viagem, os soldados, atravessando o campo que se estende até um horizonte que Capa contemplou e capturou em sua fotografia, mas que nunca foi atravessado por ele.
Nos poucos segundos do vídeo, Alice distende esse último segundo e faz com que interroguemos: qual é a duração do intervalo do tempo que se interpõe entre o clique da última foto de Capa e a morte? É possível medir o tempo da dor, do implacável e do imponderável da história? Seria possível imaginar o irretratável da memória? São indagações que as “imagens-limite” da artista sugerem num estilo que por vezes insinua um certo ceticismo drummondiano.
Assistindo aos vídeos de Alice, é difícil não escutar os versos do poeta que nos ensinou que a memória é a resistência ao tangível e aos sentidos do fim. Algo que se coloca com delicadeza e força no vídeo Little White House (2005), que mostra o trajeto do campo de concentração de Chelmno-nad-Nerem, na Polônia, ao vilarejo mais próximo, acompanhado por dois sobreviventes da violência nazista. O percurso é curto, mas não a dor e o imponderável do tempo que se aloja nesse espaço.
E Little White House trabalha esse paradoxo distendendo o percurso num tempo ficcional de quarenta minutos, como que buscando não a medida da dor, mas, novamente, uma imagem-limite que se deixe atravessar pelo irretratável da memória e da história. Irretratável que desafia não só a lógica do instantâneo, mas a da suposta capacidade técnica de que dispomos hoje para dar forma visível ao nosso próprio código genético. Numa situação extrema, a de gêmeos univitelinos, que dispõem do mesmo DNA, o que o mapeamento de seu código genético retrata? Fazendo de si mesma alvo de suas câmeras, Alice parte dessa pergunta para novamente nos obrigar a pensar o intervalo e o irretratável.
Em Ínterim/auto-retrato, expõe durante vinte minutos seu rosto transformando-se no de sua irmã gêmea idêntica. A transformação é tão lenta que a imagem parece estática. É Alice quem comenta: “Eu e ela somos tão parecidas, que se tem a impressão de que a mudança é pouca ou nenhuma. No entanto, entre os pontos inicial e final, as imagens percorrem todos os mínimos graus de diferença entre nós duas. Essas imagens não são nem eu, nem ela, mas entre uma e outra, o que não fomos. A partir das duas únicas atualizações reais de uma mesma carga genética – eu, a primeira a nascer, e minha irmã, que nasceu vinte minutos depois – uma série de fenótipos potenciais foi criada. Essa série preenche o intervalo entre nós duas. Nesse ínterim, dá-se então uma seqüência virtual de possibilidades não realizadas. São tudo que não fui até ela, e tudo que ela não foi até mim.”
Esses não-acontecimentos projetados, seguidamente, no interior de intervalos sem parâmetros de escala nas medidas humanas, anunciam o que está por vir no seu premiado projeto de imagens invisíveis sobre Chernobyl.
Nessa nova empreitada, procura produzir uma série de imagens radiográficas da zona de exclusão através da própria radiação que assola o lugar, utilizando, para tanto, uma câmera pin-hole de chumbo especialmente desenvolvida para seu projeto.
Trabalhando apenas com a radiação presente na zona de exclusão, Alice propõe dar corpo agora ao imensurável da destruição. Do vazio que se imprimirá aí, é possível que possamos vislumbrar os invisíveis anos-luz de cada efêmero momento “irretratado” por suas lentes astronômicas.
Giselle Beiguelman é webartista, professora da pós-graduação em comunicação e semiótica da PUC-SP e co-editora da revista eletrônica Trópico. Seus projetos foram apresentados em exposições como a 25ª Bienal de São Paulo, Arte/Cidade, Net_Condition e Algorithmic Revolution (ZKM, Alemanha). É autora do livro Link-se(arte/mídia/política/cibercultura), entre outros.
Entrevista Paula Alzugaray, 03/2007
Ao criar uma tecnologia inédita para captar imagens geradas pela radioatividade da zona de exclusão na Ucrânia, em seu Projeto Chernobyl, que está em andamento, você me remete aos inventores das bases tecnológicas que, no final do século 19, levaram ao início do cinema. Naquele momento, a invenção de aparelhos para captar imagens em movimento correspondeu a motivações técnico-científicas. Que tipo de motivação – artística, política ou científica – te leva a inventar um objeto sensível à radioatividade?
Meu interesse por Chernobyl começou porque eu achava impressionante imaginar esse lugar assolado por um mal que está em todo lugar, mas é invisível. Achei que seria interessante ir até lá e produzir imagens, mas comecei a me perguntar: que tipo de imagem específica eu poderia produzir daquilo? Eu não queria partir para uma forma de documentação tradicional, com imagens ilustrando um texto, mas queria mexer com a própria fabricação da imagem. Pensei o que aconteceria se a história e o contexto daquele lugar estivessem representados no processo de formação da imagem. Eu nunca tinha feito um paralelo direto com o início do cinema, mas é interessante pensar assim porque, em um dos desdobramentos do projeto, penso em justamente construir uma lanterna mágica. O cinema narrativo que conhecemos hoje é apenas uma forma de criar sentidos em imagem. Se olhamos para o início da história das imagens em movimento, há 8 mil formas de operar essas máquinas de visão e 8 mil formas de incutir sentidos em imagens. Então, adoro inventar coisas e brincar de cientista maluca, mas é claro que a motivação não é só técnica.
Essa sua verve de inventora já tinha aparecido antes?
Eu nunca tinha inventado um dispositivo de criar imagens, mas sim uma forma de dar a ver imagens de uma forma específica. No projeto do Camboja (88 de 14.000), eu construí uma máquina que fazia cair areia e projetei as imagens sobre uma cortina de areia. Mas a máquina só funcionou dois dias, durante o tempo da filmagem, depois quebrou. Era tudo muito precário. Mas as posturas conceituais dos dois projetos (Camboja e Chernobyl) são muito parecidas em minha busca por criar uma imagem específica de um lugar, procurando dar a ver sua particularidade. O trabalho do Camboja levanta uma questão totalmente documental, porque as imagens são documentais: são os prisioneiros do Khmer Vermelho. Minha questão era: como dar a ver aquelas imagens de uma forma específica, denotando o contexto em que aquilo foi produzido? Em Chernobyl, me interessava o fato do lugar ser vazio, mas pleno de algo invisível. Então, me ocorreu que a questão central era justamente de visibilidade. De início pensei em visibilidade física, por causa dessa energia que está em todo lugar mas não é vista, mas isso acaba tocando outras camadas de visibilidade social e política.
Uma fotografia do invisível pode ser considerada uma fotografia documental?
Acho que de alguma forma ela documenta, sim. Sou a primeira e provavelmente a única artista no IRD (Instituto de Radioproteção e Dosimetria), entre físicos, engenheiros. No início, eles acharam meus experimentos engraçados. Mas já há vários deles interessados em refazer o meu experimento, com bases científicas, hiperorganizadas. Porque o que eu faço, faço para ter um resultado visual, o que é interpretado por eles como um documento.
Esse me parece um projeto de documentação bastante complexo, porque tem como foco duas categorias de registro: o registro da radioatividade emitida pela matéria e o “registro político da cidade fantasma”, como você colocou em uma entrevista. O registro da cidade fantasma acontece em vídeo e em anotações publicadas em forma de diário, no blog. Você produz um relato na primeira pessoa que me parece realizar uma vertente contemporânea da antiga categoria dos filmes de viagem.
Eu não tinha imaginado fazer um blog, foi um convite do Jornal do Brasil. Eu nem gosto de blog, tinha um pouco de preconceito com essa mídia. Mas, como esse projeto tem uma pesquisa imensa e todo um processo que decorre de uma decisão conceitual, achei que tinha a ver documentar. Então, digamos que essas imagens “mais tradicionais” documentam o processo. E o blog é o lugar para as minhas questões: como é que você penetra num lugar chamado “zona de exclusão”, que, por definição, é um lugar que te exclui? Não sei, só tateando, não tenho respostas. O projeto todo vai se construindo na medida em que vai se desenvolvendo. É um experimento empírico. Por isso achei que tinha tudo a ver fazer um diário. Os exploradores já tinham essa tradição de documentar o processo, eles faziam em formato de livro. Li o diário do Darwin: ele ficou cinco anos morando num navio, explorando o mundo e, só daí, concluiu a Teoria da Evolução. Tudo aconteceu em percurso. O processo é um pulo no desconhecido.
A democratização das tecnologias da imagem tirou do fotógrafo-viajante do século 19, ou mesmo do fotojornalista do século 20, a exclusividade da cobertura dos fatos distantes do mundo.
E como tudo é uma questão de testemunho, pouco importa se está bem enquadrado ou fora de foco.
Hoje todo mundo viaja e todo mundo fotografa tudo. Sobraram poucos lugares a que poucos têm acesso. Teu projeto tem essa particularidade: você encontrou uma forma de entrar em um território em que ninguém entra e trazer um relato de lá. E depois de superar toda dificuldade de penetração, você ainda inventa um novo modelo de documentação. Você está dando um novo sentido a atividades que tinham ficado obsoletas?
Eu realmente tenho interesse por esses lugares não-vistos, ou inacessíveis. As fronteiras, as terras-de-ninguém. Por causa desse interesse, comecei a pensar em campos minados, que são espaços inacessíveis fisicamente, em que realmente ninguém entra. Daí usei a imagem do Robert Capa, no projeto Dízima periódica. A última imagem que ele produziu em vida foi a de um campo minado, na Ásia, momentos antes de pisar em uma mina. Nos meus trabalhos, há várias imagens que remetem ao impenetrável.
Em 88 de 14.000, ao projetar as imagens dos prisioneiros cambojanos sobre uma tela de areia, você se refere ao tempo contido nas imagens?
Sim, essas são as últimas imagens que foram feitas dessas pessoas em vida. A S-21 era uma prisão de extermínio do Khmer Vermelho. Eles tentavam ser altamente organizados e fotografavam todos que entravam lá. As fotos têm o nome da pessoa e a data de entrada na prisão. Essas estão entre aquelas imagens de horror de que falávamos. São imagens horríveis. Só não são explícitas, como mães com crianças mortas. Então, minha questão aqui era como dar a ver essas imagens, de uma forma significante, que trouxesse a força, o sentido da história. Mas sem fazer isso de uma forma ilustrativa, como num documentário ruim.
A idéia de “dar a ver” está incutida entre funções do documentário clássico, já que “docere” (dar a ver, mostrar, revelar), em latim, é a origem da palavra documento.
Contar uma história de forma narrativa, como no cinema, é só uma das formas possíveis de dar a ver. Seis mil pessoas foram fotografadas e tiveram as datas de entrada registradas. Pensei em descobrir as datas de execução dessas pessoas. Então, esse trabalho lidava também com o que separa um ponto e outro e se aproxima dos trabalhos da Dízima.
Os tempos de projeção de cada imagem variam de acordo com o tempo de vida?
Sim, de acordo com um parâmetro inicial, eu queria que todas as imagens fossem visíveis. Então, peguei todos os negativos originais (que hoje estão no Museu do Genocídio, no local da antiga prisão, e ficam ao deus-dará, mofando, porque o Camboja é uma bagunça), fiz ampliações novas e fiz uma pesquisa sobre as datas da execução no Centro de Pesquisa do Genocídio (que é mantido na capital do Camboja, pela Universidade de Yale). Das 6 mil imagens, achei 88 datas de entrada e saída. A areia, então, é uma forma de marcar o tempo. A duração é questão central do vídeo: um dia equivale a um quilo de areia. Então, há um tanto de areia específico para cada pessoa. A idéia era realmente criar uma implicação para imagens que vemos de forma obscena, entre o comercial de pasta de dente e a novela das oito. Eu espero que elas possam ser realmente experimentadas.
Observo em vários de seus projetos uma vontade de se debruçar sobre momentos da história. A história é outra motivação?
Principalmente a memória. Meu trabalho também é permeado por questões políticas extremas, que acabam em tragédias. Uma vez me perguntaram porque eu não trabalhava com o 11 de Setembro. Eu acho complicado: primeiro, porque o evento está aqui na nossa cara. Depois, a gente vê isso em todas as mídias, por todos os lados. Há tanta imagem, que causa indigestão. É como as imagens de horror do fotojornalismo: a mãe segurando a filha morta, na capa da Veja. Há uma certa obscenidade, essas imagens só têm valor no momento. Logo passa o comercial de pasta de dente, a gente vai jantar e nem parece que acabou de ver uma coisa tremendamente horrível. Você é atirado a uma posição passiva. Mas qual a real implicação daquilo a que você acaba de assistir?
É papel do artista pensar a real implicação dessas imagens?
Nós, artistas, não estamos produzindo imagens e olhando para o mundo? Aqui há uma questão de presença: como você olha. Comecei a me interessar pelos eventos que são esquecidos. As implicações do Khmer Vermelho ainda são muito presentes no Camboja e conformam grande parte da realidade social de um lugar que é totalmente fodido, mas não estão em capa de jornal e ninguém fala sobre isso. Chernobyl é mais ou menos a mesma coisa. Com a diferença que, no Camboja, eu abordo um evento que já aconteceu e que deixou suas marcas. Já a contaminação em Chernobyl é presente. Então, respondendo à pergunta (sobre a motivação na história): é mais uma questão de pensar como nos relacionamos hoje com o nosso passado. É uma questão de responsabilidade. Eu não agüento olhar para essas imagens e, por não ter escolha, concordar com a forma de condução que está sendo feita. Não, eu não quero assim.
Mas então por que não enfrentar um fato vivido recentemente?
Não sei responder a isso ainda. Mas acho que temos que tomar muito cuidado. Morei um tempo na Finlândia, fazendo uma residência num centro de arte contemporânea, e lá alguns colegas eram artistas europeus. Todos, absolutamente todos, faziam um trabalho de arte contemporânea de cunho social, quase no limite da assistência social. Eu ficava um pouco preocupada com isso, porque parecia uma postura de alívio de culpa: vários deles vinham de países riquíssimos, que engendram essa situação geopolítica na qual estamos hoje, e faziam trabalhos com comunidades pobres, sem querer impor a elas uma “forma branca de supremacia ocidental”, acreditando que a arte contemporânea seria uma parada elitista. Cuidado: elitista é quem acha isso. É quem acha que, só porque o outro sujeito saiu da favela e não tem o mesmo acesso à cultura que a gente tem, não pode entrar em conexão com um fenômeno que está acontecendo na frente dele. Eu espero poder tocar em questões políticas de uma forma responsável.
Na escolha dos temas, você não se reporta só a acontecimentos passados, mas também distantes. Por que não se remeter ao que acontece ao lado? Não teve interesse em pensar o acidente radioativo de Goiânia, por exemplo?
Sim! Goiânia é sempre muito presente nas discussões sobre o Projeto Chernobyl no IRD. Até porque a contaminação em Goiânia foi causada pelo mesmo elemento que hoje é o mais presente em Chernobyl, o Césio 137. Se esforços não forem feitos na tentativa de “limpar” o lugar, serão anos e anos, no mínimo 300, até que possa ser habitável de novo. Chernobyl foi realmente um desastre, e a contaminação que se dá quando um acidente desse porte acontece é muito extensiva. Já o caso de Goiânia foi diferente, não tem nem comparação, ainda bem. Explicando com os meus parcos conhecimentos, foi mais ou menos isso: as pessoas arrombaram um cofre de chumbo de uma fonte de Cs 137 que estava dentro de um aparelho de radiografia abandonado (sempre fico pasma, como assim “abandonado”??!!). O Cs 137 dentro desta fonte estava na forma de um pó azul brilhante (brilha no escuro). As pessoas não tinham idéia do que era e esfregaram na pele, comeram (!!!) e saíram carregando por aí. Causando contaminação externa e interna. Essas pessoas tiveram índice de contaminação altíssimo e ficaram muito mal, ou morreram. Mas apenas essas. De resto, na época do acidente, a área onde essas pessoas moravam e as vizinhanças foram isoladas e todos os objetos, roupas, etc. foi tudo apreendido e analisado para checar se estavam contaminados. O solo do lugar também foi analisado, mas não teve mudança significativa. Meu orientador e vários outros lá do IRD trabalharam na limpeza de Goiânia. E ainda choveu nos dias seguintes à contaminação, espalhando e diluindo tudo. Como a quantidade de Cs 137 era pouca (nem se compara com a do reator), além de ter sido limpo em alguma medida já na época, o resto foi meio que diluído na natureza. Por isso, lá não tem uma “zona de exclusão” como em Chernobyl. Eu poderia tentar, em Goiânia, conseguir imagens com meu pin-hole de chumbo de partes onde se tivesse uma idéia que ainda há contaminação. Também poderia tentar conseguir uma imagem do Pão de Açúcar, que é uma rocha naturalmente radioativa. Mas como é muito pouco radioativa, iria demorar anos para fazer uma imagem, sem garantia nenhuma de que saísse alguma coisa mesmo depois de muito tempo de exposição.
Ao preservar o interesse em como abordar o “outro”, o documentário se reporta a estratégias da antropologia. No Projeto Chernobyl você se confronta com a ausência desse “outro”. Com que alteridade está trabalhando?
Nem eu sei. Essa alteridade deverá se constituir na medida em que eu olhar para ela. Em física, diz-se que um fenômeno só acontece se há um observador olhando para ele. É por aí.
O vídeo Ínterim/auto-retrato, em que você traça o percurso de seu rosto até o rosto de sua irmã gêmea, está longe de ser documental. Mas ele compartilha com o documentário uma indagação sobre os limites entre eu e o outro.
Vejo também uma conexão dessa questão com o projeto Dízima periódica. Esse é o campo, na matemática, que investiga justamente a extensão do limite entre um ponto e outro. Isso é um buraco negro, um problema que na matemática não conseguem explicar: como é que o 0,9999 infinitamente vira o 1. Em Ínterim, estava tentando olhar para a questão da identidade e do auto-retrato: é claro que há infinitas formas de definir a identidade de uma pessoa. Mas aqui eu fui tentar examinar todas as possibilidades que eu poderia ter sido até chegar a ser a minha irmã gêmea. Cheguei a tantas quantas o meu programa de computador conseguiu criar.
Biografia comentada Paula Alzugaray, 03/2007
Ao idealizar projetos para lugares distantes, muitas vezes de difícil acesso, Alice Miceli comporta-se como autêntica artista-viajante. Suas experiências estrangeiras aproximam-na, inclusive, dos marinheiros descritos por Walter Benjamin, em O narrador, como “os primeiros mestres da arte de narrar”. As viagens da carioca Alice Miceli começam aos dezenove anos, ao cursar a École Supérieure d’Études Cinématographiques, em Paris, com uma bolsa do governo francês. A partir da formação em cinematografia e técnicas audiovisuais, Alice retorna ao Rio de Janeiro em 2002 e durante esse ano dedica-se a assistência de direção e estágios na área do cinema, trabalhando com o documentarista Silvio Tendler e como estagiária de edição do filme Um passaporte húngaro, de Sandra Kogut.
O desvio de rota acontece quando o interesse crescente pelas artes plásticas leva-a a cursar uma pós-graduação lato sensu em história da arte e arquitetura do Brasil, na PUC-RJ, e a ingressar no Grupo de Estudos e Discussão de Projetos do professor Charles Watson, no Parque Lage. O primeiro trabalho que surge desse novo processo, Ínterim/auto-retrato (2003), utiliza-se de um gênero clássico da história da arte para produzir uma reflexão sobre o caráter mutável e indefinido da identidade contemporânea. O vídeo foi indicado ao 4º Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia, em 2003, e exibido em mostras e festivais, como o Videoformes Festival, em Clermont-Ferrand, na França, e a mostra laisle.com, no Rio.
Um ano depois, Alice Miceli volta para a estrada. Com o apoio da agência on-line de notícias News Market, vai para Phnom Penh, capital do Camboja, atrás dos arquivos de fotografias de identificação dos prisioneiros do presídio de extermínio do Khmer Vermelho. O interesse por lugares “fora de rota” levam-na a descartar o caminho mais fácil – a Yale University ou a Columbia University também têm cópias dos negativos – e a escolher como destino o Tuol Sleng Genocide Museum, antiga prisão S-21, onde 14 mil pessoas foram assassinadas pela ditadura, nos anos 1970. Durante quinze dias de pesquisas, a artista consegue identificar o tempo restante da vida de 88 prisioneiros, entre seu encarceramento e seu instante final. O resultado da viagem é o vídeo 88 de 14.000 (2004), em que as fotografias de identificação são projetadas em cortinas de areia. O trabalho ficou exposto em looping no 15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil e foi finalista do prêmio do transmediale.05 International Media Art Festival, em Berlim, na Alemanha, ambos em 2005.
Mesmo que a quantidade de areia despejada em cada caso reflita o tempo de vida passado na prisão, Alice Miceli sabe que, pelas leis da matemática, a distância entre um ponto e outro é infinita. Nesse sentido, 88 de 14.000 poderia ser visto como uma atualização d’O livro de areia, de Borges. A questão da infinitude do tempo será o centro da investigação da artista dois anos depois, na série Dízima periódica.
Naquela edição, o Transmediale International Media Art Festival enfocava o sudeste asiático e 88 de 14.000 chamou a atenção de uma fundação de intercâmbio entre artistas asiáticos e europeus, sediada em Cingapura. A partir do convite para um workshop, Alice embarca para Bandung, na Indonésia, para participar do projeto Third Asia-Europe Art Camp: Artists’ Initiatives Spaces and New Media Arts, no Bandung Center for New Media Arts.
A obra 88 de 14.000 foi um trabalho importante no desenvolvimento da artista, porque despertou nela o interesse pelos eventos apagados da memória recente e pelas situações “soterradas”, que influenciam de maneira sutil e decisiva a atualidade das relações sociais de um povo. Essas eram precisamente as questões da exposição On Disappearance. Loss of World; Escaping the World, da qual o trabalho participou, no PhoenixHalle, em Dortmund, na Alemanha.
Durante residência na Cable Factory – UNESCO-Aschberg Bursaries for Artists Programme, em Helsinque, na Finlândia, entre 2004 e 2005, Alice Miceli trabalhou com a representação do Holocausto, em Little White House (2005). O vídeo realiza o percurso de uma prisão de extermínio nazista até o vilarejo de Chelmno nad Nerem, no sentido inverso ao caminho realizado pelas vítimas do Holocausto. Dessa forma, propõe uma revisão da representação da história.
As questões levantadas pelo tratamento do espaço, em Little White House, e do tempo, em 88 de 14.000, suscitaram na artista perguntas do gênero: “Como realmente atravessar a distância entre dois pontos de um determinado espaço? Como dar conta, através da imagem em movimento, da transformação conceitual que pode ocorrer quando cruzamos uma fronteira? Quais as possíveis naturezas do limite?” O desconforto gerou a série de vídeos Dízima periódica, que se lança à investigação do mistério da infinitude entre dois pontos. Integram a série 99,9...metros rasos e 14 horas, 54 minutos, 59,9...segundos, ambos de 2006. Os vídeos foram exibidos na mostra Rumos Artes Visuais – Paradoxos Brasil, no Itaú Cultural, e na mostra Videometria – O vídeo como ferramenta de medição na arte contemporânea brasileira, no LOOP Festival, em Barcelona, na Espanha, ambos em 2006. Seu mais recente projeto, ainda em processo, volta a debruçar-se sobre a história, retornando à questão: como nos relacionamos hoje com nosso passado? Com uma bolsa fomento para produção, concedida pelo Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia, o Projeto Chernobyl prevê para o ano 2007 o registro radiográfico da radiação produzida na zona de exclusão da cidade de Pripyat, na Ucrânia, local do acidente radioativo na usina nuclear de Chernobyl. Ao inventar e desenvolver uma tecnologia inédita para a missão – o que está sendo feito com a colaboração de cientistas do Instituto de Radioproteção e Dosimetria, no Rio de Janeiro –, Alice Miceli insere-se na tradição do artista-cientista, lançando mão dos recursos da ciência e da tecnologia a serviço de sua busca pela especificidade da imagem.
Referências bibliográficas Paula Alzugaray, 03/2007
O site da HMKV mostra imagens e textos sobre a exposição On Disappearance. Loss of World; Escaping the World, no PhoenixHalle, em Dortmund, na Alemanha. Alice Miceli participou com 88 de 14.000.
Canal Contemporâneo
Em dois ensaios publicados no Canal Contemporâneo, a crítica de arte Juliana Monachesi reflete sobre o caráter mutável da identidade contemporânea a partir da obra Ínterim/auto-retrato, de Alice Miceli.
A identidade dissolvida
Males de Arquivo I
Videobrasil On-line
Pequena biografia da artista e registro de sua participação no 15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil (2005)