Ensaio Juliana Monachesi, 06/2007

O ardil-22 de Luciano Mariussi

Entre gritando, obra de Luciano Mariussi apresentada no Panorama MAM de 2005, tem algo da histeria em torno da arte contemporânea. Histeria da incompreensão, bem entendido. A proposta do artista era a seguinte: quem gritasse “eu sei o que é arte contemporânea” ao pisar no Museu de Arte Moderna de São Paulo ganhava desconto de R$ 1 na entrada. A dificuldade de personificar o visitante idealizado por Mariussi era dupla: as pessoas em geral se constrangiam com a hipótese remota de entrarem gritando – fosse lá o que fosse – em um museu; e ainda tinham que se haver com a dúvida “por acaso eu sei o que é arte contemporânea?” Além de entrar gritando no museu, comportamento fora de qualquer padrão de conduta em espaços de arte, o desafio era bradar a plenos pulmões uma provável mentira. E se o desconto só fosse concedido mediante a enunciação de alguma definição de arte contemporânea?

Era muita coisa em jogo por R$ 1. Nas três ou quatro visitas que fiz ao Panorama, não presenciei nenhum corajoso gritador ganhando o desconto na bilheteria. Mas há relatos do museu, segundo me contou o artista, de algumas pessoas que se aventuraram, sobretudo crianças. A obra era, na realidade, uma cilada (conceitual, claro. Quem gritasse “eu sei o que é arte contemporânea” ganhava o desconto sem precisar dar satisfação a ninguém sobre seus conhecimentos a respeito de arte). Era um convite simpático a ganhar um desconto (quem não gosta de uma promoção?) que, contradição entre termos, coibia o visitante de pleitear o seu merecido desconto. O trabalho era paralisante, apesar de se anunciar como uma proposta de ação. Uma convocação a agir fadada ao fracasso. Essa estratégia algo perversa é característica da produção do artista paranaense. Tomem-se as obras Jogo para jogador inepto (1999) ou Unfriendly (2001) e a estratégia, com variações de aplicação, poderá ser novamente observada (e “fruída”).

Além do paradoxo, da crítica e do questionamento presentes em Entre gritando, o que mais me agrada na obra de Luciano Mariussi para o Panorama de 2005 é a própria presença física da obra: durante mais de três meses ficou estampado na fachada de um dos principais museus da cidade o imperativo afirmativo do verbo “entrar” seguido do gerúndio do verbo “gritar”. Neste anúncio em grandes dimensões (as outras informações, “...eu sei o que é arte contemporânea e ganhe 1 real de desconto na entrada do MAM”, apareciam em letras proporcionalmente “miúdas”), reside a maior subversão promovida pelo trabalho. Se fosse nos dias atuais, em tempos de operação-limpeza-visual do prefeito Kassab (1), o letreiro no MAM seria ainda mais subversivo. O fato é que a presença desse “entre gritando” gritado na fachada do museu dava vazão a muita livre associação de idéias. Além de cilada, a obra era uma charada: arte contemporânea é... embutir ruídos na vida cotidiana e colocar as pessoas para pensar ou devanear.

O binômio constranger/colocar para pensar ou paralisar/convocar a agir, que se está denominando aqui “estratégia perversa”, permeia toda a produção de Luciano Mariussi. Na série documental composta pelas obras Não entendo (1999), Estética (2002) e por três outros projetos, ainda em forma de work in progress, o artista se vale de uma aproximação “jornalística” – câmera simples e microfone na mão – para abordar pessoas na rua ou dentro de um espaço de arte e roubar-lhes um depoimento à queima-roupa.

Não entendo foi um trabalho realizado nas ruas do centro de Curitiba. Uma equipe de filmagem abordava os passantes desavisados e lhes dirigia uma pergunta sobre arte, formulada em idiomas diferentes do português. Sem entender o que lhes era perguntado, as pessoas reagiam com desconforto e, invariavelmente, diziam algo como “não entendo”. De acordo com o artista: “A palavra ‘arte’, sempre mencionada e com pronúncia similar em vários idiomas, foi o fio condutor das entrevistas, sendo uma das poucas palavras entendidas pelo público. As respostas obtidas eram trespassadas por estranhamento: ‘Arte? Eu não estou entendendo!’ Na edição do vídeo, foi subtraída a pergunta, d eixando apenas uma resposta carregada de constrangimento. Além das respostas, a edição enfatizou os silêncios, que também foram freqüentes, pois o assunto tratado não fluía como em uma entrevista corriqueira. Talvez a aproximação de caráter jornalístico, já conhecida pelos transeuntes, e aqui usada como armadilha, tenha contribuído para a sensação de desconforto que toma conta do vídeo”. (2)

O alvo do artista nesta videoperformance é claro: a incomunicabilidade entre público leigo e arte. A estratégia para alcançar o objetivo de retratar tão bem como e quanto esse abismo é patente foi questionada em diferentes ocasiões em que o vídeo foi exposto. Mas, diante da apresentação do trabalho, omitidas as perguntas, quem fica na posição de não entender do que se está tratando ali é o próprio público de arte. O leigo, a quem o artista teria constrangido – o que seria motivo de questionamentos éticos – e o expert, igualmente constrangido pela falta de compreensão da obra, ficam na mesma situação. O mesmo se dá com o vídeo Estética, cujas entrevistas foram captadas na abertura de uma exposição em 2000 no Museu de Arte Contemporânea do Paraná.

“Ao contrário de Não entendo, Estética centraliza sua atenção não na manipulação e distorção das entrevistas realizadas, mas sim na integridade do pensamento formulado pelos entrevistados. Este vídeo foi realizado durante uma exposição de arte contemporânea, com diversos nomes importantes da arte no Brasil, realizada no MAC do Paraná. Os visitantes do museu foram convidados a fazer uma leitura dos trabalhos expostos, manifestando suas dúvidas e (in)certezas sobre a arte contemporânea. Os comentários foram usados quase na íntegra. A edição do vídeo privilegia comentários que se concluem, pois, para este trabalho, era importante que a linha de raciocínio de cada entrevistado ficasse exposta”, (3) explica Luciano Mariussi.

Para o espectador do vídeo Estética, devido à angulação de câmera utilizada pelo artista – que em nenhum momento dá a ver a obra sobre a qual o visitante da exposição no MAC tece seus comentários –, a posição de dúvida e incerteza experimentada pelos entrevistados coincide com a posição em que o próprio vídeo coloca o “metavisitante”: aquele que observa a visita do outro. Apesar de Estética praticamente não manipular o conteúdo verbal das entrevistas, diferentemente do que norteou a edição de Não entendo, o vídeo manipula o contexto em que se deu o conjunto das entrevistas, tornando, deste modo, igualmente interdito ao fruidor da obra abarcar o sentido do “documentário” que tem diante de si. Os comentários que os entrevistados fazem, uns mais consistentes que outros, uns mais acanhados que outros, passam a valer para a arte em geral, inclusive para o vídeo Estética: são vagos, indecisos, tateantes. O vídeo é um retrato – ou espelho, como sugeriu a artista Ana González em análise sobre a obra de Luciano Mariussi (4) – da experiência que o público de arte contemporânea, leigo ou não, tem nas exposições que visita.

A questão que se anuncia, então, é: quanto de documental existe de fato nessas obras? Um comentário do artista a respeito do vídeo Não entendo permite explorar outras implicações de sua produção que flerta com o documentário: “Outro fato importante na realização do vídeo foi um tom de agressividade, assumido pela equipe de filmagem, na obtenção das entrevistas. Esse procedimento, impositivo e constrangedor, estava de acordo com as principais preocupações que tive nesse período: a passividade do espectador frente à arte contemporânea e o grande poder de manipulação exercido pelos meios de comunicação de massa, juntamente com a aceitação passiva e o desconhecimento desse poder. Esta última questão seria propulsora para uma indagação acerca do ponto de vista subjetivo dos documentários televisivos e cinematográficos, sempre vistos com uma certa ‘aura’ de apreensão objetiva e imparcial do mundo”. (5)

Não se trata de uma discussão nova, mas a recente enxurrada de trabalhos de arte que ficam na fronteira com o documental – para a qual se poderia traçar uma genealogia rápida e sintética que remontasse à Documenta 11 (2002), passando, no contexto brasileiro, pela curadoria de Catherine David, “A respeito de situações reais” (Paço das Artes, 2003), chegando até a 27ª Bienal de São Paulo (2006) – torna este um tema candente. Os anos 1980 costumam ser lidos pela crítica e pela história da arte como um refluxo das práticas conceituais das duas décadas anteriores. À desmaterialização da arte, veio como resposta um “retorno da pintura”. A década de 1990 foi marcada na arte sobretudo pela subjetividade, “alienação” a que os artistas dos anos 2000 teriam respondido com o engajamento político e as práticas ativistas.

Com o perdão pelo esquematismo redutor do parágrafo acima, o fato é que a arte da presente década, em óbvia sintonia com os movimentos antiglobalização e anticorporações globais (ou seja, contrários à nova configuração econômica denominada pós-industrial, com todos os seus desdobramentos nefastos ao ambiente, ao trabalho, às identidades etc.), parece ter se voltado para preceitos vigentes nos anos 1960 e 1970, mas com uma mudança de enfoque. E, no campo mais restrito de fluxos e refluxos de tradições artísticas, a prática dominante é a adoção de uma postura (a favor, contra, crítica ou não) ao advento da internet como meio de circulação e difusão comunicacional em massa. Novamente de forma esquemática e redutora, a produção que caracteriza os tempos atuais é aquela que tematiza (ou se engaja em) questões políticas, ambientais e/ou midiáticas.

Isso tudo posto, ainda que em termos muito gerais, é interessante notar o jogo entre arte e documentário que Luciano Mariussi nos propõe. Por meio de uma visão crítica dos formatos midiáticos que o sujeito contemporâneo vivencia em seu cotidiano, da televisão ao cinema, do documental (fotográfico, televisivo ou cinematográfico) visto como realidade ao game tomado como pura virtualidade, do computador ao celular etc., o artista cria suas obras ou suas ações (que têm por objetivo último tornarem-se obras também) com elementos disruptivos em relação aos parâmetros conhecidos e adotados em relação a cada um desses formatos. Sobre as rupturas empreendidas pelo artista no que se refere especificamente aos formatos de game e computador, se tratará mais adiante.

Ainda na série documental de Mariussi, que, como se afirmou no início deste ensaio, é composta por três outros projetos, que estão atualmente em forma de work in progress, a relação arte x espectador ganha desdobramentos na exploração também das relações entre artista e circuito, arte e discurso (na forma de depoimentos de críticos de arte e curadores) e arte e valor. Dois vídeos vão resultar, por exemplo, das experiências do artista como convidado do 61º Salão Paranaense (2005), no MAC de Curitiba, e como propositor de um curioso loteamento do espaço anexo da galeria Laura Marsiaj, no Rio de Janeiro, durante sua exposição individual na galeria, entre abril e maio de 2006, intitulada Aluga-se.

Na sala que lhe foi disponibilizada no MAC, em 2005, o artista organizou uma exposição coletiva com obras de artesãos que costumam vender seus trabalhos em uma feira nas adjacências do museu, em Curitiba. O trabalho, devidamente documentado desde a negociação com os pintores e pedido de empréstimo das telas até o dia do vernissage, com o título Exposição de arte contemporânea, teve como objetivo, segundo Mariussi, promover o deslocamento de objetos pertencentes a um circuito paralelo ao das artes para dentro do circuito estabelecido. Em Aluga-se, o procedimento foi parecido: em resposta a um anúncio feito pelo artista de que na sala de exposição do espaço anexo da galeria, para o qual havia sido convidado a realizar um projeto, estavam disponíveis lotes de diferentes tamanhos e preços para aluguel durante o período da exposição, artistas de todos os tipos (e pertencentes a “circuitos de arte” diversos) fecharam negócio e expuseram o que bem entenderam por um mês na Laura Marsiaj.

A forma que estas ações vão ganhar quando todo o material de documentação for editado vai determinar a leitura que se poderá fazer das obras, mas, em ambos os casos, nota-se um desdobramento na pesquisa do artista daquele binômio “paralisar/convocar a agir”, sempre por meio de um elemento disruptivo das regras tradicionais de conduta no meio de arte. Ao optar por fazer destes acontecimentos – a interpelação do público leigo nas ruas, o pedido de uma visita guiada aleatoriamente a visitantes de uma exposição, o curto-circuito da apresentação de obras de natureza diversa daquela que o espectador espera encontrar em espaços dedicados à arte contemporânea etc. – vídeos documentais, Luciano Mariussi amplia o espectro tanto de público quanto de camadas de leitura possíveis para sua obra. E faz também uma opção por “dirigir” a leitura segundo a sua “estratégia perversa” de se relacionar com o público.

Mas quem é que ainda nutre ilusões sobre algum tipo de relacionamento puro e simples – direto, sem intermediação alguma – entre arte e público? A “perversão”, no sentido de uma relação “corrompida” (que difícil escapar de termos com conotação pejorativa!) com a arte, é a regra e não a exceção. Luciano Mariussi faz arte com o espírito de seu tempo para as pessoas de seu tempo. A utopia da “fruição estética”, do tempo apropriado para sorver cada “experiência estética”, do alcance geral e irrestrito – iluminista, se quiserem – a uma “cultura estética” não está no horizonte do artista.

E os trabalhos não-documentais dele são os que melhor explicitam esse partido contemporâneo: Jogo para jogador inepto (1999), vídeo construído em 3D que simula um ambiente de game, com corredores que levam a outros corredores em uma espécie de labirinto sem fim, percorridos pela câmera, que faz o “papel” do jogador; Unfriendly (2001), interface de computador que tem ferramentas familiares – como “criar”, “exibir”, “inserir”, “ajuda” etc. –, mas completamente não-amigáveis quando se tenta interagir com o programa; e Entre (2003), instalação em uma sala fechada constituída de quatro videoprojeções que mostram personagens em escala natural dirigindo-se ao visitante da obra com linguagem agressiva, tentando expulsá-lo da sala. Entra quem quer, grita quem tem coragem. 

(1) Que resolveu mandar retirar todos os outdoors e anúncios em fachadas comerciais da cidade; a última do nosso prefeito foi proibir feirante de gritar: operação-limpeza-sonora; por que ele não se dedica a resolver os problemas de falta de emprego e moradia em São Paulo ao invés de incorporar o Jânio-vassourinha?

(2) MARIUSSI, Luciano. “Não entendo – Entre o documentário e a videoarte”, texto publicado no site da Universidade Federal do Paraná, dentro do projeto “MUVI – Museu Virtual de Artes Plásticas”; a íntegra está disponível AQUI.

(3) MARIUSSI, Luciano. “Estética – A inclusão do espectador dentro da obra”, texto publicado no site da Universidade Federal do Paraná, dentro do projeto “MUVI – Museu Virtual de Artes Plásticas”; a íntegra está disponível AQUI.

(4) GONZÁLEZ, Ana. “Espectador: apreciador ou consumidor?”, 2004. Especialização (História da Arte) – Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Curitiba. pp. 41-43, citado por Luciano Mariussi em “Estética – A inclusão do espectador dentro da obra”, conforme nota nº 3.

(5) Idem nota nº 2.

Entrevista Paula Alzugaray, 06/2007

Por que você escolheu o formato do documentário para pensar as relações entre arte e público que estão no centro de suas reflexões artísticas recentes?

O documentário é um formato que pode ser discutido dentro do campo das artes, já que diversos processos artísticos são efêmeros e, desse modo, fortes candidatos à documentação. Um problema que percebo é que nem todo mundo que necessita de algum registro documental tem consciência de estar também reconstruindo conceitualmente seu trabalho e não apenas mudando de suporte. A forma documental, para mim, é mais uma estratégia apreendida do que realmente um documento. Se olharmos a história do cinema documental vamos perceber que as estratégias mudam radicalmente. O que era dito como documentário, décadas atrás, hoje percebemos como uma linguagem carregada de exageros. Ainda podem-se encontrar ficções que são baseadas numa linguagem documental e se utilizam dela para uma maior eficácia em relação ao público. O filme A Bruxa de Blair foi eficaz graças a esse procedimento. As fronteiras são diluídas ou nunca existiram, de fato. O que sempre mudou foi nossa percepção em relação a esse formato.
 

Qual a sua relação com o documentário cinematográfico? Quais documentaristas chamaram tua atenção e contribuíram em teu processo?

Acho que a maior influência no campo do cinema (documentário ou não) foi o trabalho do cineasta iraniano Mohsen Makhmalbaf e do americano Michael Moore. No geral, o Michael Moore não é totalmente compreendido. Sempre ouço comentários em relação ao conteúdo político e o quanto ele manipula as informações. Mas é nesta manipulação que está a entrada para um território mais complexo conceitualmente, que é justamente o campo das artes. A discussão feita em torno do formato documentário não é nada recente, já nasce com o cinema. Os irmãos Lumière, por exemplo, pediam para os passantes não olharem para a câmera, ou seja, havia atuação. E toda a história do documentário é recheada com exemplos semelhantes: Flaherty, Grierson, Rouch... Já os filmes de Makhmalbaf são extremante documentais, apesar de não serem classificados como documentários. Filmes como Salve o cinema e Um instante de inocência atestam como é contundente esse pensamento em torno da experiência da realidade versus a representação da realidade. E assim, boa parte do cinema iraniano. Jafar Panahi foi outra forte influência, assim como os movimentos realistas da primeira metade do século 20.

Como você interpreta as recentes aproximações entre arte e documentário? Os trabalhos que se dedicam a produzir registros do mundo estabelecem um canal mais direto de comunicação com o público?

Não tenho certeza se é mais direto ou não, mas tenho percebido que esse procedimento funciona. O documentário já nasce com cinema e nas primeiras utilizações do vídeo no campo artístico também se encontra uma estratégia documental no registro das performances. Criar “documentos” sempre foi uma preocupação das artes. Se não documento do mundo real, documento de um modo de pensar.
 

Boa parte da produção artística hoje se dedica a procurar promover canais de diálogo com o público. Sua trajetória, no entanto, tem se dedicado a evidenciar o constrangimento do público dentro do museu. O que lhe parecem essas estratégias de aproximação da arte contemporânea?

Todas são estratégias de aproximação. Promover canais de diálogo e evidenciar os problemas de relação entre arte e público fazem parte do mesmo desejo de comunicação.

Você vê relações de proximidade entre as iniciativas de arte como intervenção social e as iniciativas de arte documental?

Penso ser uma mesma maneira de pensamento, apesar dessa ligação não ser óbvia. A arte parece querer incorporar a vida, apesar de fazer parte dela. A “realidade” tornou-se uma estratégia de aproximação, não basta mais representá-la. A “realidade” agora não é mais nem matéria-prima. É a própria obra.

O que você pretende com as provocações de seus documentários e ações: contribuir para acabar com a intimidação do público dentro desse mundo tão especial do “cubo branco” ou colocar o dedo na ferida e atiçar esses conflitos?

A passividade do público e sua não-reação no embate com obras de arte me frustram. Tento não deixar escolha para a passividade do espectador, se é que isso é possível. Nos meus trabalhos, de algum modo, tento um contato mais próximo com o público. Despertar um processo de reflexão é o mínimo que um artista pode querer.

As intervenções em vitrines e fachadas de museus fazem parte dessa sua série de trabalhos sobre a relação entre arte e público. Mas aqui você parece ter optado pelo não-registro videográfico. Por que não documentar as reações geradas pelo trabalho?

Os registros estavam previstos dentro dos trabalhos das vitrines, mas não foram realizados por questões técnicas. Todos os outros trabalhos, como as intervenções em museus e galerias, se desdobraram em outros trabalhos videográficos, mesmo que em projeto e não totalmente finalizados. O registro em vídeo acaba sendo um trabalho autônomo que não pode ser mais chamado de registro. Tem uma derivação da intervenção, mas discute e propõe questões outras, relativas ao seu universo lingüístico.
 

Desde que os artistas transformaram obras em ações, a documentação tornou-se parte fundamental do processo do trabalho artístico. Qual a importância dos procedimentos de documentação em suas ações?

Quando penso em um trabalho os seus desdobramentos e derivações já são partes dele. A documentação em texto, fotografia e vídeo se faz necessária, pois é dessa maneira que o trabalho sai de um circuito mais fechado e pode se expandir e reverberar em outros pontos. O que seria do Spiral Jetty do Smithson sem os registros em texto, foto e vídeo?

A performance também tem um papel importante em suas estratégias. Em Entre há a performance teatral. Em Não entendo, você parece se utilizar das linguagens da reportagem para um ato performático. Como se articulam esses elementos – teatralidade e performance – em seus trabalhos?

A teatralidade da instalação Entre não foi intencional. Pelo contrário: foi algo que tentei evitar, mas não consegui, na direção dos atores. Mais tarde acabei incorporando essa informação ao trabalho. Não totalmente satisfeito, busquei, no lugar dos atores, artistas que pudessem dar seu depoimento com um pouco mais de conhecimento de causa. Refiz a mesma instalação numa oportunidade que tive de expor nos EUA com artistas locais e a tonalidade do trabalho mudou sensivelmente. Nas duas versões existe a interpretação (de atores ou de artistas), mas pode-se levantar a mesma questão que surge na discussão entre documentário e ficção. É uma interface imprecisa e que depende da percepção de quem se relaciona com o trabalho.
 

Em alguns textos de sua dissertação de mestrado, você diz que, ao falar sobre arte e público, você fala sobre si mesmo. Por que essa questão se tornou tão importante em seu processo?

Auto-retrato. Acho essa palavra uma chave para se relacionar com meu trabalho. Todas as questões discutidas por mim não são simplesmente teorizadas. Primeiro partem da minha própria experiência como espectador e posteriormente são colocadas em confronto com o público. Num âmbito geral, boa parte dos artistas fazem trabalhos auto-referentes e os que faço são para mim objeto de estudo pessoal. O meu relacionamento com a arte contemporânea é colocado como experiência para outros espectadores.

Biografia comentada Paula Alzugaray, 06/2007

Luciano Mariussi inicia sua trajetória artística pela porta da gravura, realizando uma exposição individual no Solar do Barão, em Curitiba, em 1996, e participando de exposições coletivas, como Gravadores Contemporâneos do Paraná, no Paço Imperial, do Rio, em 1997, e a Mostra Rio Gravura, no Museu da República, em 1999. A situação confortável propiciada pelo meio, no entanto, é logo colocada em xeque, na medida em que o artista se define por uma pesquisa com arte e tecnologia. “No meu trabalho com gravura, sentia muita receptividade por parte do público. Mas as respostas que obtive foram raramente mais aprofundadas e sempre a visualidade era posta em evidência. Depois deste ‘acerto’ visual e fracasso conceitual foi que mudei toda minha pesquisa para a investigação desta relação”, diz o artista.

É um paradoxo que o interesse de Mariussi pelo estranhamento do público diante da arte e das novas tecnologias parta exatamente da relação de amor que este mesmo público tenha estabelecido diante de sua obra gráfica. Mas assim aconteceu e essa relação, antes calcada sobre o prazer da visualidade, é então convertida numa espécie de confronto. “Estranhamento” passa a ser a palavra-chave que orienta a pesquisa de Mariussi a partir da realização do vídeo Não entendo, em 1999. Nesse trabalho, o artista se apropria dos mecanismos de realização de uma reportagem televisiva, subvertendo-os ao abordar transeuntes na rua com perguntas sobre arte em idiomas estrangeiros. Ou seja, qualquer familiaridade que o entrevistado possa sentir em relação a uma hipotética abordagem jornalística é instantaneamente revertida em uma reação de estranhamento.

Configura-se aqui uma crítica metalingüística aos discursos artístico e midiático, que abre mão da visualidade e da narratividade e descobre uma raiz conceitual em trabalhos de artistas como Gary Hill, Pierrick Sorin, Tadeu Jungle, Rafael França, Paulo Bruscky e Bruce Nauman. Não entendo, aponta Luciano Mariussi, tem estratégias similares às do vídeo Heróis da decadên(s)ia (1987), de Tadeu Jungle e Walter Silveira, em que um pretenso jornalista inicia entrevistas de rua e surpreende ao não perguntar nada.

A pesquisa que se inicia com Não entendo é uma crítica a duas formas de mediação: aquela que a instituição faz entre a obra de arte e o público e aquela que os meios de comunicação fazem entre o acontecimento e a sociedade. Realizada em princípio no formato de videodocumentários – Não entendo e Estética (2002) –, essa crítica assume depois a forma de intervenções, nos projetos Vitrines, entre 2002 e 2005, e Aluga-se, na Galeria Laura Marsiaj, no Rio, em 2006. Nos documentários, o artista se empenha em evidenciar tanto as lacunas de comunicação entre arte e público quanto as lacunas entre a experiência da realidade e a sua representação. Se Não entendo discute a manipulação da realidade, Estética pensa o discurso sobre a arte e o embate entre espectador e obra.

O teor reflexivo dos trabalhos deu origem à pesquisa de mestrado de Mariussi, concluída em 2005 na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Intitulada Arte X Público: uma leitura poética mediada pela tecnologia, a dissertação reflete sobre como os trabalhos realizados se relacionam com o público, pensando de que maneiras o formato ou a mídia utilizada influenciam nessa mediação.

Em 2005, quando é convidado a dar aulas sobre história e linguagem cinematográfica na graduação de design do Centro Universitário SENAC, Mariussi troca Curitiba por São Paulo. Atualmente, dá aulas também no curso de pós-graduação em cinema, vídeo e fotografia do Centro Universitário Belas Artes.

No curso, o professor Luciano Mariussi pode refletir a respeito de e interagir com uma das questões intrínsecas ao trabalho do artista Luciano Mariussi: a interseção entre cinema e artes visuais. “Nas aulas coloco em prática um exercício mental e uma reflexão acerca dos procedimentos e estratégias da arte contemporânea. Por arte contemporânea entenda-se desde a performance até o cinema digital e as artes via internet”, diz.

Referências bibliográficas 06/2007

Itaú Cultural
No verbete da Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, há uma breve biografia, um CV, algumas referências bibliográficas de catálogos publicados e um trecho do texto de apresentação do crítico Tadeu Chiarelli para a exposição Imagem experimental: Paulo D’Alessandro e Luciano Mariussi, realizada no MAM Higienópolis, em 2000.