Entrevista Denise Mota, 10/2007

Em The E! True Hollywood Story, você conta sua biografia em um formato que é usado para narrar a vida de ídolos pop internacionais. Isso pode ser visto como uma tradução bem-humorada do postulado desse dossiê: (A)Pareço, logo existo. No seu caso, reinventar-se como estrela e ser absorvido pela cultura de massas mundial. Tudo o que vemos através de uma tela é uma construção? 

Um filme, em geral – e mais ainda se é uma ficção –, são milhares, milhões de dólares e o esforço de centenas de pessoas para apenas uma coisa: mentir. É uma convenção, todos sabemos que o que vamos ver é mentira. Não se trata, portanto, de uma mentira má, é simplesmente uma mentira em que queremos acreditar e da qual inclusive precisamos. Um documentário é a mesma coisa, por trás dele há um realizador que não é imparcial. Desde criança, sempre que via um concurso de televisão, dizia à minha irmã: “Isso é uma armação”. E ela, até hoje, ri de mim por causa disso, o paranóico que eu sempre fui (risos). Mas acho que foi justamente essa paranóia precoce que me salvou de ser um telespectador bobo, passivo. Mais que paranóia, é uma sensação inerente a tudo o que vejo em uma tela, uma espécie de sexto sentido do truque, com o qual – para bem ou para mal — nasci. Sempre há um olho que olha mais para um lado do que para o outro, um olho que constrói. Meu The E! True Hollywood Story – a partir de um ponto de vista restrito – é absolutamente real. Todas as coisas que são contadas me aconteceram de verdade: tomei gasolina aos dois anos de idade, desenhei o Papa porque acreditava que João Paulo II fazia parte do grupo Kiss etc. E todos os personagens que aparecem são absolutamente reais, em situações reais. Trata-se quase de um documentário. O que há de construção é que contei minha própria história como se fosse contada pelo canal E! Entertainment Television. Assisti a cerca de trinta episódios e notei que biografias de pessoas diferentes iam ficando mais e mais parecidas, todos haviam tido um acontecimento na infância que os havia traumatizado, todos haviam tido um ponto de inflexão entre ser alguém desconhecido e se tornar uma estrela. A construção de uma estrela atualmente também está padronizada, e o The E! True Hollywood Story da minha vida obedece a esse processo. Em termos de leitura linear, é tudo real. Parecer e existir são coisas muito diferentes. Esse trabalho concretamente primeiro existiu – a minha história – e depois pareceu – um programa de televisão. O processo é exatamente o inverso da linha curatorial. 

Você recebeu algum comentário ou resposta de Matthew Barney a respeito da “participação especial” dele em Bolivia 3? Por que Barney foi o escolhido?

Matthew Barney é o videoartista mais bem-sucedido da geração imediatamente anterior à minha, aquela que despontou nos anos 1990. E, como bem apontou Tom Morton, um crítico de arte inglês, minha luta com ele é a batalha de Luke Skywalker com seu pai, Darth Vader, quando lhe diz: “Luke... I’m your father... Come to the dark side...” [Luke…, sou seu pai… Venha para o lado negro…]. Nunca havia pensado nessa referência quando fiz Bolivia 3: Confederation Next, mas ela me pareceu muito válida. É necessário lutar contra o que já está estabelecido, e concretamente Matthew Barney representa os grandes orçamentos da arte norte-americana, algo que faz com que minha luta com ele seja mais como a de Davi contra Golias, dois personagens que se assemelham às dimensões díspares que há entre Uruguai e Estados Unidos, uma superpotência cultural gigante como poucas na história e um país diminuto sem políticas culturais fortes ou claras. Levei muito tempo pensando na conclusão desse conflito, se Barney deveria morrer ou não no final. No entanto, ao invés de um final violento, optei por transformá-lo em Barney, o Dinossauro, um ser afetivo. Escolhi levá-lo a outro território onde, ao fim, poderíamos ser amigos. A cada vez que estreei alguma parte da trilogia me aconteceram coisas estranhas. Quando estreei Bolivia 3 representando o Uruguai na Bienal de São Paulo, para minha surpresa, Matthew Barney apareceu por lá e entrou para vê-la. Quando saiu, estava muito emocionado, me fez uma reverência e me abraçou entre risos. Efetivamente, o Barney real e o do vídeo haviam se transformado em seres emocionais, no final. Na minha frente, não tinha mais o Matthew Barney super estrela da Arte Atual, marido da Björk etc., mas um colega que ria comigo. E então fiquei feliz comigo mesmo pelo final que havia escolhido, era outra mostra de que quem domina a ficção domina a realidade. A arte transforma, isso é o que há de bom. 

Pode-se perceber o seu interesse em muitos setores do pop, desde ...E o vento levou até Britney Spears, Paris Hilton, Guerra nas estrelas, Matrix ou Entrevista com o vampiro. Qual é a importância do cinema na sua formação?

“Setores do pop” é um título muito bom para alguma coisa! Eu me criei em plena expansão das videolocadoras, aos onze anos já tinha visto todos os títulos que havia na locadora do meu bairro e fui mudando de locadora. Quando já tinha me associado em todas as locadoras das zonas mais próximas, comecei a ver várias vezes os mesmos filmes. O que me interessava era ver, e assim passei a minha infância, puberdade e metade da adolescência vendo filmes em casa. Na época da Guerra Fria, e como bem disse Margaret Thatcher quando Ronald Reagan morreu: “O presidente Reagan ganhou a Guerra Fria sem usar uma só bala, sem lançar um só míssil...” A isso eu adicionaria: “Ganhou a guerra com filmes”. Não foi por acaso que, sendo um produto de Hollywood, ele fomentou a propagação de um tipo de filme barato e efetivo, que, por meio do VHS, chegou a todo o mundo. Paralelamente, a primeira coisa que estudei na vida, além de ir ao colégio, foi cinema. Entrei em uma escola experimental para crianças aberta pela Cinemateca de Montevidéu depois do fim da ditadura militar, e foi uma experiência muito rica, que me marcou muitíssimo. Ia com minha irmã todos os sábados a um antigo edifício do centro da cidade e com o resto das crianças montávamos histórias que depois realizávamos, fazíamos animações. Acho que aí aprendi todas as bases do audiovisual. Minha história é exatamente igual à de Britney Spears ou à de Robbie Williams. Por trás de tudo, houve uma mãe visionária sonhando em ter um filho famoso (risos)... Dos filmes que você cita, gosto de todos. Talvez de Entrevista com o vampiro goste ainda mais, porque representa aquele lado romântico – quase gótico – da minha adolescência grunge em Montevidéu, durante os anos 1990. Especialmente ...E o vento levou sempre me interessou muito, e há referências a esse filme em muitas de minhas obras. Sempre me senti um pouco Scarlett O’Hara, lutando contra a adversidade em uma Montevidéu devastada e esvaziada – como o resto da América Latina – por governos militares e democráticos impostos por potências estrangeiras. Há um momento em que me identifico especialmente com Scarlett, que é quando ela arranca as cortinas da época em que a família tinha dinheiro, para buscar o dinheiro que salvará Tara, sua pátria familiar, o lugar que representa sua infância de conforto onde não havia guerras. Para Masturbated Virgin mandei fazer uma roupa com as cortinas de minha avó para ir a Nova York. O importante é entender que Scarlett poderia estar vestida com cortinas, mas você pode ter certeza de que essas não eram quaisquer cortinas, eram cortinas muito boas. 

Por que Hello Kitty é seu símbolo do “todo-poderoso poder do pop”?

Porque ela não tem boca. Hello Kitty é a Monalisa do futuro. 

Montevidéu ganha uma pronúncia interessante em seus vídeos – Monte-vídeo –, como se ela se tratasse de uma obra de ficção, mais do que de uma cidade. É isso? 

O nome Montevidéu é uma ficção, ou pelo menos uma abstração, que ninguém sabe exatamente de onde vem. Há muitas hipóteses, mas ninguém disse, até hoje, “fui eu quem lhe pus esse nome”. Por isso, tive a idéia de rebatizá-la Monte-vídeo. Sempre me pareceu estranha essa coincidência entre o nome da cidade em que nasci e o fato de que eu seja um videoartista. Os gregos colocavam seus deuses no Monte Olimpo e até Hollywood tem um monte que a caracteriza. Como eu não iria estabelecer a Meca Mundial da Videoarte em Monte-vídeo, se sou de lá? Por outro lado, sempre me senti muito próximo a Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, que – como eu – também foi um uruguaio que desenvolveu sua obra no exterior e fazia uma construção quase mitológica do lugar em que havia nascido. Isso também compartilhamos… um interesse mitológico por Monte-vídeo. 

Como é sua rotina na Espanha e onde você busca hoje elementos para suas criações? Vê muita televisão?

Sempre fui viciado em audiovisual. Se há uma imagem em movimento, aí estou, consumindo. Agora estou superconectado ao YouTube, em níveis preocupantes... quase de vício (risos). De verdade! Adoro o tipo de narrativa aleatória que se gera ao navegar pelo YouTube, o salto entre um tema e outro, a quantidade de informação acumulada, a possibilidade de que todo o mundo tenha seu próprio canal de televisão, mas, melhor, porque chega a milhões de usuários do mundo inteiro, sem distinção de nacionalidade. Agora quase já não vejo TV, a troquei pelo YouTube. Acho que já vi toda a TV que tinha que ver, porque na verdade nunca mais voltei a me envolver tanto com uma telenovela como me aconteceu com Vale tudo. Algo mudou. Há algumas séries de que gosto muito, como South Park, Family Guy, So Notorious ou The Simple Life de Paris Hilton. Há um canal de terror e ficção científica na Espanha que se chama Calle 13 [Rua 13] e, à noite, filmam cemitérios vazios, e eu também assisto, mas não me ligo de verdade em nada. Acho que o tipo de narrativa está ficando obsoleto. Tudo me parece lento e, depois de um tempo, me entedia. Nada me conquista mais como um Vale tudo, já não há mais personagens como Odete Roitman. Por outro lado, a TV me parece um meio estruturado demais – maquiagem, cabeleireiro, técnicos para tudo... por causa da publicidade, agora é um meio controlado, enquanto o YouTube é o oposto, é desestruturado, com frescor e com uma estética nerd que me interessa. É verdade que por enquanto está em uma etapa Atari, ou mais para TK90, mas dentro de alguns anos vamos estar todos tão – ou mais – conectados a ele quanto ao televisor. De todas as formas, acho que a televisão é um meio a investigar, em que ainda restam coisas a ser inventadas. Há quatro anos fiz um programa de entrevistas para televisão em Madri. Foi algo fresco e espontâneo que me convidaram para fazer durante uma temporada em uma rede espanhola. Aproveitei muito esse convite, sobretudo porque pude mostrar um leque de todos os clichês das apresentadoras de televisão argentinas, algo que tenho mais do que incorporado, coisas com as quais cresci. Ia ao ar com um colar de pérolas e ao começar o programa mostrava a roupa que vestia nesse dia, era muito divertido. Foi uma experiência reveladora do poder que gera o televisor. Até hoje as pessoas me param na rua por causa desse programa. É necessário saber usar esse poder. Agora quero repetir o experimento com uma nova proposta e estou preparando um novo programa de televisão. Adoro investigar. 

Seu personagem é um bem-sucedido artista latino-americano que triunfou na Europa devido ao fato de possuir os segredos do “todo-poderoso pop”. Como foi criado Martín Sastre, o personagem?

Acho que você está errada. Martín Sastre não é um personagem. Martín Sastre sou eu.