Ensaio Ángel Kalenberg, 10/2007
Juan-Pedro Fabra Guemberena: vestígios da outra cena
Dados para uma biografia mínima: Juan-Pedro Fabra Guemberena nasceu em Montevidéu, Uruguai, em tempos violentos (1971). Quando tinha dois anos, por razões políticas, sua mãe foi presa por seis meses, “e isso me afetou profundamente”, declarou o artista em uma entrevista. De 1979 a 1984, esteve com sua família exilado na Suécia, pelas mesmas razões políticas. De 1984 a 1989, radicou-se no Uruguai, período que coincidiu com o retorno à democracia no país, onde começou seus estudos de pintura. Em 1989, voltou à Suécia, e desde então vive lá. De 1997 a 2002, estudou na Academia de Arte Real em Estocolmo, da qual saiu como pintor. Depois se dedicaria à fotografia e, mais tarde, ao vídeo.
De sua variada obra selecionaremos, para considerar aqui, dois trabalhos recentes: um vídeo, cujo título é Untitled 2004, e uma série de fotografias, Gilberto’s Place, de 2007. Untitled 2004 se desenrola em um bosque indefinido (mesmo quando o artista revela que se trata da zona leste de uma ilha da Suécia), lugar arraigado no romantismo das paisagens nórdicas (e também nos contos de fadas). O sol está se pondo, até (quase) desaparecer: é a hora do crepúsculo, carregado de sua simbologia mortuária. Por momentos, a imagem se congela. Cai a noite, ou assim parece. Aí Fabra propõe uma narrativa tão mínima que induz a pensar que o artista luta contra a narratividade: seis soldados camuflados e um sétimo morto (morto?), todos suecos, manifestou o autor. O soldado morto se funde com o solo. Está, integralmente, à vista. O resto é matéria de interpretação. Nesse cenário, os personagens (quase) não se movem. O soldado morto emergirá mais para a frente, e seus camaradas finalmente o levam. Ao final, as árvores se fundem.
O artista opera no limite do visível, e a cena está iluminada com luz artificial, teatral, mas mínima. Como Boltanski, Fabra nos dirige a um lugar invisível e mais silencioso. Esse vídeo, como o resto de sua obra, oferece mais perguntas do que respostas. O clima é gerado pelo suspense dos tempos mortos: algo, talvez ominoso, está a ponto de acontecer. E o espectador se sente desafiado a aguardar o acontecimento. Diferentemente, frente a uma pintura – em que é possível abarcar tudo com um só golpe de vista –, não é preciso esperar. No entanto, Fabra quer fazer pintura sempre; suas fotografias e seus vídeos terão sentido se capturarem um olhar como o que reclama a pintura. Sua linguagem não é cinematográfica. Tampouco a do vídeo convencional. Está em uma fronteira frágil entre a pintura e o vídeo.
Bill Viola usualmente faz referências à pintura, mas é mais cinematográfico do que Fabra. Nos vídeos de Viola, unem-se cinema, pintura e som. Esse vídeo de Fabra deliberadamente prescinde (quase) do áudio. A luz pareceria vir dos carros que passam pela estrada contígua ao bosque e lançam sombras. Um recurso da mesma índole é empregado por Viola em The Passing, que mostra em imagens – também noturnas e cenas submarinas – os limites da vida, e o faz optando pela luz que chega de cima. Fabra diz que a iluminação das paisagens noturnas de Untitled 2004 provém de um tipo de bengala utilizada pelo exército sueco para batalhas noturnas: “Composta de magnésio, desce em um pequeno pára-quedas e possibilita tirar fotos em uma paisagem muito ampla, que fica exatamente como uma cenografia”. Mas as bengalas também remetem aos fogos de artifício, à fugacidade das coisas, ao mundo mágico da infância (perdida).
Fabra filma com câmara fixa e costuma recorrer ao primeiro plano. “Assim como a ampliação não tem por única finalidade tornar mais claro o que ‘sem ela’ seria confuso (graças a ela, pelo contrário, vemos aparecerem novas estruturas da matéria)” – diria Walter Benjamin, em seu mítico ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” –, “tampouco a câmera lenta coloca simplesmente em relevo formas de movimento que já conhecíamos, mas descobre outras formas, perfeitamente desconhecidas.”1 Com esse vídeo, Fabra queria poder determinar o tempo das coisas. E gerar um mundo visual que fosse contra tudo o que se estava vendo nos meios de comunicação, para subverter os orçamentos e os produtos da televisão, em um tempo que se inundou de imagens de material censurado. McLuhan via isso claramente quando advertiu que toda vez que aparece um novo meio todos os já existentes são afetados, porque devem se adaptar às novas circunstâncias.
As cenas que Fabra filma são retratos de figuras (quase) imóveis, como se fossem imagens de pinturas emolduradas e penduradas nas paredes, próprias de um olhar pictórico. As figuras de Viola, ao contrário, se movem, como em The Passions, por exemplo, em que o autor parece um especialista em pintura em um museu. Mas a sucessão de cenas de Fabra converte seu vídeo em uma espécie de pintura em movimento, de pintura-vídeo. Como os pintores, Fabra trabalha na tradição da imagem ótica e até poderia dizer: “Pinto sem pintar”. A cena está emoldurada por um entardecer romântico (Robert Rosenblum indicou a influência pictórica da tradição do norte da Europa, em especial a do paisagismo do primeiro romantismo, sobre a abstração moderna européia).
Interessa a Fabra – segundo já disse – o desenvolvimento do uniforme em particular, o da indumentária militar, a que cria identidades ao mesmo tempo em que as questiona. Ao neoclássico Jacques Louis David, também: quando começou a era napoleônica e houve a necessidade de organizar o Estado, ele contribuiu realizando desenhos e pinturas de uniformes militares.
“A fotografia não substituiu a pintura, nem o vídeo, a fotografia. Foi sendo gerada uma gramática cada vez mais complexa, um idioma mais rico”, afirma Fabra. Assim, quando dissolve as imagens dos soldados, instalando-as em um escuro crepúsculo, pode induzir a pensar na inadequação da fotografia para documentar um fato. Mas, acentuando essa mesma direção, Fabra monta as cenas que vai fotografar em um estúdio (inscrevendo-se em uma tradição inaugurada por Poussin, que montava previamente os cenários que ia pintar). Suas composições lembram mise-en-scènes teatrais, próprias de uma visão frontal no interior de um cubo.
Tampouco em seus vídeos posteriores incluirá dados da realidade. Desse modo, a reprodução deixa de ser somente documental, testemunhal. Muito pelo contrário, suas fotografias e vídeos têm, sob uma aparência fria, mecânica, neutra, uma contida mas forte carga expressiva. Sua fotografia traduz uma zona de sua memória. De fato, “o eclipse parcial que prevalece […] é o resultado direto da anulação do lugar-comum, da especificidade histórica, por mais ligadas a uma história específica que estejam as imagens. (Essa ligação se faz crescentemente elusiva até que […] se converte em uma alusão geral à infância perdida, à perda em geral)”. É que, se a fotografia costuma ser considerada um meio para a memória, e o vídeo, um meio para o presente, é certo que também se pode introduzir a memória em imagens em movimento.
Além disso, interessa a Fabra o tema da camuflagem militar, ou seja, a mimetização de soldados e armamentos com o seu entorno, de forma a resultarem invisíveis para a vigilância aérea do inimigo. Uma temática com história na história da arte. Dalí assegurava que a camuflagem da Primeira Guerra foi fundamentalmente cubista e picassiana, enquanto a da Segunda seria surrealista e daliniana. É camuflagem, mas, ao mesmo tempo, símbolo do homem primitivo.
As fotografias da série Gilberto’s Place fariam pensar em auto-retratos, mas, ao não sê-lo, permitem ao artista tomar distância da cena. São, digamos já, inquietantes, trágicas cenas de violência e de morte. Gilberto’s Place 1 foi feita, com certeza, dentro de uma garagem. E isso não é mera coincidência. Esse é o lugar onde nascem e morrem os objetos e as armas em poder de particulares. E, de acordo com a hipótese compartilhada por Arthur C. Danto, do arsenal da garagem saiu toda a iconografia da pop art norte-americana. Essa garagem convida o espectador a extrapolar sua imagem das guerras do Vietnã, do Afeganistão, do Iraque. O personagem fotografado apresenta como camuflagem um amontoado vegetal sobre o corpo. No entanto, essa garagem nórdica está perfeitamente arrumada, e os rolos de arame são rolos de arame industrial, e não de arame farpado. Dessa maneira, Fabra acentua a tensão. Gilberto’s Place 2 é uma cenografia que faz alusão a enterros clandestinos em tempos de ditadura, a escavações em busca de desaparecidos, com ciprestes em um dos lados da fotografia – feita, provavelmente nos canteiros do Parque Rodó, no centro de Montevidéu. Isso me traz à memória uma montanha com forma de águia, uma pintura de Magritte, O domínio de Arnheim, baseada em um conto de Edgar Allan Poe.
Em Gilberto’s Place 3, Fabra assimila relatos de tortura na fotografia de um corpo esfolado, que evoca o teatro anatômico de Vesálio (século 16), em que um grupo de alunos estuda a anatomia do cadáver de um homem destripado. A arte de Juan-Pedro Fabra Guemberena é a de um latino implantado em um país nórdico, o país de Ingmar Bergman, convivendo com os demônios, com os fantasmas nórdicos, com o antimediterrâneo.
As imagens que cria expressam os mesmos terrores que se anunciam nas esculturas das catedrais góticas alemãs. Talvez sejam a projeção do mundo infantil angustiado que lhe coube viver (exílio, desterro, separação da mãe). Todos os seus projetos, confessa o artista, “giram em torno de algo muito pessoal”: de uma infância marcada e povoada por contos de terror, por uma espécie de teatro da crueldade, e não precisamente por contos de fadas.
Ángel Kalenberg (Montevidéu, 1936) é pesquisador, curador e crítico de arte. Dirigiu o Museo Nacional de Artes Visuales por 37 anos. Curador de seleções de artistas uruguaios enviadas para as bienais de São Paulo, Veneza e Paris, foi responsável pela seleção latino-americana da 10ª Bienal de Paris e integrou o Comitê Internacional da 17ª Bienal de São Paulo. Foi vice-presidente do Conselho Internacional de Museus de Arte Moderna e integrou a Aica - Associação Internacional de Críticos de Arte. Entre outros livros, em 1991 lançou Arte uruguayo y otros, reunião de ensaios publicados ao longo de vinte anos de trabalho como crítico de arte, e foi colaborador de The Dictionary of Art, publicado em Londres em 1996. Em 2000, foi nomeado sócio-correspondente da Associação Brasileira de Críticos de Arte.
(1) BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. In: LIMA, Luís Costa. Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
Entrevista Denise Mota, 10/2007
A maioria dos seus trabalhos traz imagens do exército sueco e registros bélicos, sempre ficcionalizados: vêem-se soldados, mas não há inimigos. É esse o tema central de sua obra – apontar para a mitificação do poderio militar, algo que existe para se retroalimentar, mais do que por necessidade real?
Nos últimos anos, o que tem me interessado cada vez mais é a imagem midiatizada dos fatos bélicos e da violência organizada e institucionalizada: como é representada hoje, pelos meios de comunicação e em particular a TV, a ação das Forças Armadas. Isso é o que mais me interessa estudar. Desde que comecei a estudar as imagens apresentadas pela mídia, rapidamente na minha cabeça se estabeleceu uma relação com o romantismo sueco que, na maioria dos casos, está muito relacionado a imagens de guerra. Na Suécia, em particular, a academia de arte na qual estudei foi em suas origens uma academia militar que ensinava os soldados a desenhar, porque esta era a única maneira de documentar graficamente as batalhas. É por isso que em muito do que faço atualmente me apóio na tradição nacional romântica sueca. A natureza neste país desempenha o papel de um cenário em que o imaginário nacional deposita muitas de suas fantasias, medos, desejos etc.
Esta curadoria apresenta criadores uruguaios que tratam de uma sociedade saturada de imagens e discursos prontos. Seus vídeos muitas vezes apontam para o que Jean Baudrillard definiu como “a era da simulação e do simulacro”.
Tenho muito presente, antes de tudo, o texto de Baudrillard sobre a Guerra do Kuwait, em que afirma que essa guerra nunca foi como se mostrou, nunca existiu, mas foi, sim, uma série de imagens que os Estados Unidos geraram e projetaram para o mundo. A partir dessa experiência e da crítica que o exército norte-americano recebeu, desenhou-se uma nova estratégia para o Afeganistão, em que se lançou o conceito do embedded journalist (jornalista embutido). Assim como a máquina de informação trabalha no hiper-realismo, sinto necessidade de caminhar na mesma trilha para enfrentar isso. Mais do que nunca, a simulação é uma arma importante, que pode ser muito potente nas mãos de um artista. Acho que esse é um conceito vital que os artistas têm de entender hoje. De certa forma, em alguns momentos minha estratégia é a mesma: gerar uma imagem que parece real, mas não é. Uma mise-en-scène que não se choca frontalmente com a imagem oficial, mas é um leve desvio rumo a um mundo paralelo. Minha maior ambição é promover a dúvida e, conseqüentemente, a reflexão. Poderia dizer que o que faço é videoativismo de baixa intensidade.
Transitar da pintura para o vídeo também foi uma forma de se comunicar mais amplamente com o público de hoje?
Sem dúvida hoje é a TV que ensina as pessoas a olhar. Também por isso o vídeo é a ferramenta mais eficaz que nós, artistas, temos para nos comunicar mais além dos espaços que tradicionalmente usamos, como galerias e museus. A TV é o lugar que nos falta penetrar.
Em Gilberto’s Place, o soldado – alguém que, nas suas criações, geralmente vemos em grupo – aparece sozinho. Outra diferença é que ele se mostra em sua individualidade, revela o rosto. Tanto sua camuflagem como o entorno que o abriga fazem com que o espectador tenha a impressão de se tratar de um ser fantástico ou de um misantropo misterioso. Por que essas mudanças e o que você pretendeu investigar nessa obra?
Gilberto’s Place parte de um fato pontual no Uruguai: a fuga e a captura do coronel, depois deposto, Gilberto Vázquez, um dos chefes da inteligência durante a ditadura militar. Há componentes de espetáculo no episódio protagonizado por Vázquez. Quando estava detido, à espera da deportação para a Argentina, fugiu para o Hospital Militar e foi capturado. Algo que realmente me chamou a atenção foi que, no momento em que o prenderam, ele havia se disfarçado, “camuflado”, de indigente. O acontecimento, amplamente coberto pela mídia uruguaia, foi o disparador desse trabalho, em que investigo minhas próprias fantasias em relação ao evento. Ele mostra um momento quase ritual, um estado de reflexão desse ser oculto em sua solidão, escondido, abandonado por seus pares. É o retorno a um estado selvagem, e o que observamos é o resultado desse processo.
A constância da camuflagem em suas obras pode ser vista como símbolo da necessidade do homem atual de “fazer-se passar por” para se integrar aos ditames de nossa época? De precisar de uma “segunda pele” para sobreviver em seu meio?
A camuflagem é para mim um símbolo muito importante, com uma carga pessoal muito grande. Muito íntima, poderia dizer, na medida em que em minha vida, por diferentes circunstâncias, desenvolvi uma capacidade quase camaleônica de me adaptar a meios diferentes. Mas ela é apenas uma capa. É uma metáfora de auto-reflexão: diferentes circunstâncias difíceis de minha vida me ajudaram a desenvolver a capacidade de me camuflar “no outro”. Essas circunstâncias estão particularmente relacionadas ao exílio e à exigência de ter que viver em culturas muito diferentes da minha. Morando agora na Suécia, o “sumo” da camuflagem é quando um nativo pensa que sou sueco, o que na verdade é um efeito involuntário, e não algo que procurei.
Você viveu desde pequeno os frutos amargos da ditadura e o exílio. Enquanto realizava trabalhos em torno da camuflagem, teve consciência dessas dinâmicas ou essas interpretações afloraram a partir da crítica?
No princípio, havia uma atração por algo que viria a ser a estética da ilusão. Para mim era fascinante, no sentido de visualizar um perigo iminente, ainda que oculto. Ou seja, no começo havia uma carga estética muito forte, mas com minha própria evolução e um pouco da influência de certas críticas comecei a refletir sobre outros componentes que fazem parte disso e a relacioná-los a coisas mais pessoais, com minha própria vida e minha relação pessoal com o mundo organizado e institucionalizado da violência.
Em que projeto trabalha agora?
Estou desenvolvendo um projeto que se chama Juba. Vai ser uma instalação de vídeo baseada em imagens que encontrei na internet. Há em Bagdá um franco-atirador que age sob o nome de Juba e que filma o momento em que dispara contra soldados norte-americanos, muitas vezes matando-os. O material em si, da maneira como está apresentado na internet, cumpre a função de fazer propaganda política a favor da insurgência iraquiana. É evidente que esse franco-atirador, na verdade, são muitos franco-atiradores, mas o que esse vídeo pretende criar é a ilusão de que há um superpatriota que, sozinho, se encarrega de fazer justiça contra o inimigo invasor. Nesse caso, Juba é uma metáfora que nos faz pensar no Rambo, a fantasia do supersoldado iraquiano. O que me interessa nesse material não é o que Juba faz, mas o que vê e o que nós vemos também: um soldado americano em uma rua de Bagdá, parado, em guarda, não fazendo nada. E, nesse momento de aparente calma, soa um disparo, e o soldado cai. Estou reproduzindo esses vídeos com a ajuda de marionetes, de uma maneira bastante exata. Mas, como sempre acontece quando se trabalha com esse tipo de material, há uma distorção que tem a ver com as dúvidas e fantasias que ele me provoca. Não é suficiente para mim ver o que Juba vê. Quero ver mais, e a única forma de conseguir isso é ocupando seu lugar.
Você tem um trabalho sobre o suicídio. Do que se trata?
É um projeto que não se refere precisamente ao suicídio, mas a atentados suicidas. Por enquanto, está em compasso de espera. Baseia-se em relatos vindos de diferentes zonas de conflito, em particular a experiência de jovens chechenos que cometeram atentados em Moscou. A idéia é discutir com adolescentes suecos sobre quais ideais ou fatos poderiam levá-los a cometer um atentado suicida em seu país e, a partir dessa discussão, produzir uma série de vídeos que encenam esses “atentados”. Do ponto de vista psicológico, o trabalho apresenta uma problemática muito sensível para os jovens que vão participar, o que faz com que o processo de preparação seja mais longo do que eu imaginava. No momento todo o material está em mãos de psicólogos, que vão me ajudar a definir a forma de desenvolver o projeto sem que ele represente uma experiência traumática para os participantes.
Quais fontes de informação mais o inspiram: o noticiário, a internet, a ficção, a história?
No momento, mais do que tudo, estou interessado em duas narrativas que têm me ajudado a me aproximar de imagens muito difíceis de suportar, e que me auxiliam em meu desenvolvimento como artista ao me oferecer uma estratégia de trabalho. Trata-se de Time’s Arrow (A seta do tempo), de Martin Amis, e Adolf, de Osamu Tezuka. O livro de Amis narra a vida de um médico alemão nos anos 1980 em Nova York. Ele tem uma forma irracional de agir, mas depois de um pedaço do livro entende-se que os fatos ocorrem em sentido inverso ao tempo, do presente para o passado. Assim, ele se separa de uma mulher, depois a seduz e acaba por encontrá-la. Tudo ganha sentido quando o relato alcança a Segunda Guerra, e o personagem viaja à Alemanha para trabalhar como médico em Auschwitz. Como a progressão retrocede no tempo, ele não ajudará a matar, mas tirará as pessoas das fossas para levá-las aos fornos que lhes devolverão a vida; o Banco da Alemanha fará uma doação em ouro, os médicos voltarão a colocá-lo nas bocas das pessoas, e assim até que todas as famílias estejam reunidas e de volta às suas cidades de origem. Essa narrativa fez com que, pela primeira vez na vida, eu pensasse nos funcionários de um campo de concentração nazista como pessoas. Amis não é um revisionista, mas nos obriga a pensar em outra história possível – em vez daquela que nos acostumamos a escutar e sofrer – com uma única e elegante manobra, que é passar a narrativa como se fosse um filme que se projeta para trás. Adolf, de Osamu Tezuka, é um romance gráfico que conta as histórias de Adolf Kamil, um garoto judeu que cresceu no Japão, Adolf Kaufman, um menino de sangue japonês e alemão que vive na Alemanha, e Adolf Hitler. Além de conter elementos fantásticos, a história é uma visão japonesa da Segunda Guerra e do nazismo.
Em uma entrevista ao diário uruguaio La República, você disse estar construindo uma “caligrafia da violência”. Como ela está sendo composta?
A “caligrafia da violência” tem dois níveis. Na época da entrevista ao jornalista Nelson Di Maggio, me referia a um trabalho que agora pertence à Biblioteca de Alexandria, no Egito. É uma obra em progresso, composta por livros. No momento, há dois volumes: Kalashnikov e M16. O termo caligrafia se refere ao simples fato de que esses dois livros estão “escritos” por essas armas. Um encadernador preparou dois volumes, de acordo com o meu desenho. Cada bloco de folhas foi submetido ao tiro de uma dessas armas que, ao atravessá-lo, gerou uma particular “caligrafia”. Estou preparando o terceiro volume, que vai ser “escrito” pelo rifle de precisão de um franco-atirador. Agora, falando de minha obra em termos mais gerais, a “caligrafia da violência” se refere a imitar cada vez mais o olhar de quem se expressa pelos meios mais violentos que conhecemos hoje – e que, em geral, são os exércitos nacionais ou transnacionais, em defesa de interesses nacionais ou transnacionais.
Biografia comentada Denise Mota, 10/2007
As origens do trabalho de Juan-Pedro Fabra Guemberena vêm de cedo: exatamente há três décadas e meia, quando o artista tinha dois anos e foi privado da convivência com sua mãe, presa por motivos políticos, por quase seis meses. Tempos depois, aos oito anos, a família inteira partiu para a Suécia, em uma fuga dos horrores da ditadura uruguaia.
Os cinco anos de exílio em uma cultura completamente distinta forjaram a essência das inquietações que o autor transforma hoje em arte. A dissolução das diferenças, a criação de falsas realidades e a noção de pátria e identidade coletiva são pontos centrais de sua obra.
Com o retorno da democracia ao Uruguai, os Fabra Guemberena voltam ao país natal, mas Juan-Pedro já trazia da experiência no exterior dois motivos para regressar às paragens nórdicas: o interesse pela arte e a necessidade de viver na Suécia sob circunstâncias diferentes. Para um ajuste de contas pessoal: a substituição da “prisão mental”, na qual mergulhou compulsoriamente na infância, pela liberdade de iniciar, justamente aí, uma outra vida, de forma completamente decidida.
A porta de entrada para a nova fase sueca foi a concorrida Academia de Arte Real em Estocolmo, onde fez, entre 1997 e 2002, sua formação como pintor. Envolto pela avalanche de relatos bélicos que então começavam a rodar o mundo por conta da invasão norte-americana ao Afeganistão, decidiu tomar esses registros como ponto de partida para o trabalho que posteriormente o catapultaria à cena internacional.
Da pintura para a fotografia e o vídeo, o olhar de Fabra cristalizou em True Colours uma estética que se transformou em marca registrada. Apresentada na 50ª Bienal de Veneza, em 2003, sob o conceito Dreams and Conflicts – The Dictatorship of the Viewer (Sonhos e conflitos – a ditadura do observador), a obra reproduzia, em detalhes mínimos e por meio de ações repetitivas, integrantes do exército sueco em manobras militares, sem que em nenhum momento se possa enxergar indícios que justifiquem o afinco de suas atividades.
“Estávamos diante de um momento histórico a partir do qual seríamos inundados de notícias televisadas de guerra. Isso me levou a pensar que, como artista, não precisava ser subjugado por essas imagens, porque, da mesma maneira, também podia produzi-las”, afirma, na Entrevista deste FF>>Dossier. “Quando comecei a trabalhar em True Colours, o que mais me inspirava era o que via nos noticiários de TV. Essa foi a razão pela qual senti a necessidade de utilizar o vídeo para falar desse mundo.”
A opção pelo meio eletrônico não significou o abandono das raízes pictóricas. Em todos os trabalhos de Fabra, as seqüências estão cuidadosamente compostas, as cores são detalhadamente estudadas e os efeitos buscam levar o olhar do observador a um grau de absorção total do “vídeo-tela” que lhe é apresentado, sem que isso signifique, no entanto, garantias de que o que se vê é, de fato, o que está à mostra.
Dentro desses propósitos, a camuflagem é para o artista não somente uma ferramenta de defesa e ataque utilizada pelos personagens de suas obras, mas um elemento canalizador do ideal estético que lhe interessa. “Desde seu surgimento, de alguma maneira, a camuflagem caminha lado a lado com a história da pintura de cada país. Estudar a camuflagem em cada exército é estudar uma corrente pictórica desses lugares. A partir desse ponto de vista, e com meu olhar de pintor, me sinto atraído para inverter o processo estético que desperta a camuflagem. Começo olhando o soldado camuflado e, a partir daí, tento imaginar a paisagem, que elementos tenho de criar e agregar para finalmente ter o quadro.”
Nesse exercício, o disciplinamento do ser humano curiosamente se dá em meio à rebeldia da natureza, e será à beira de abismos, sobre altas montanhas e dentro de densas florestas que os soldados do uruguaio terminarão por se mesclar à paisagem, transformando-se em minerais, vegetais ou animais em estado puro e perfeitamente acoplados ao entorno.
Não só os exércitos fazem parte do cardápio de investigações de Fabra; também os escoteiros aparecem na obra do criador. Em Scout Project, através das costumeiras fotos noturnas, misteriosas e fantasticamente iluminadas, vêem-se crianças organizadas para um período de sobrevivência na mata. Realizado após True Colours, o projeto pretendia avançar na abordagem das estratégias de disciplina e domínio da natureza desde a mais tenra idade. “Na minha cabeça, entre manejar um machado de forma hábil e utilizar uma arma maior pode existir apenas um pequeno passo”, afirma o artista.
Casado com uma arquiteta e dedicado nos últimos três anos à tarefa de criar dois filhos pequenos, o autor diz que usa uma pausa de “produção artística mínima” para refletir sobre sua vida e obra. Vivendo em Estocolmo, onde trabalha em um curso sobre camuflagem, desenvolve três projetos no Uruguai, que visitou em abril. O primeiro é Graf Spee, obra que realiza em conjunto com os artistas Jan Håfström e Carl Mikael von Hausswolff e que está sendo filmada no país.
Em 2008, Fabra apresenta uma instalação no Museo Nacional de Artes Visuales de Montevidéu, além de sua primeira grande mostra na terra natal, onde serão incluídas obras recentes e antigas. Também trabalha em um amplo projeto fotográfico que usa como base uma publicação turística do Uruguai produzida pelo regime militar na década de 1980.
“No momento mais duro do país, o que se queria apresentar ao mundo era uma imagem atualizada do velho sonho da ‘Suíça da América Latina’. Da mesma maneira que esse livro cria outra realidade, na minha versão estou inventando um país que não necessariamente mostra ou representa o que é o Uruguai hoje.”
Referências bibliográficas
Museo Nacional de Artes Visuales
O espaço expositivo uruguaio detalha sua nova linha curatorial.
Academia de Arte Real da Suécia
A escola de artes em que Fabra se formou como pintor foi fundada em 1773 pelo rei Gustavo III (1746-1792), um dos mais célebres “déspotas esclarecidos” da história, que também criou o hoje Museu Nacional de Belas Artes da Suécia.
Caligrafia da violência
Em entrevista ao diário uruguaio La República em 27 de fevereiro de 2005, o artista fala do início da carreira, quando foi selecionado para participar da Bienal de Veneza, e dos propósitos de seu trabalho.