Ensaio Vera Pallamin , 06/2008

Uma política do desentendimento

Não queremos ampliar a arte na realidade, talvez a realidade na arte e, se possível, a própria realidade na realidade.

BijaRi

 

NAS PRIMEIRAS CENAS VÊ-SE, EM SOBREVÔO, UMA EXTENSA AGLOMERAÇÃO URBANA, DENSAMENTE VERTICALIZADA, SEM QUE SEUS LIMITES APAREÇAM NO HORIZONTE. UM NARRADOR ENTUSIASMADO, EM ‘OFF’, TRANSFIGURA AS IMAGENS DA METRÓPOLE EM CENÁRIO DE UMA DISPUTA ESPORTIVA. NO MEIO DE SUAS RUAS, JOGADORES DE FUTEBOL CORREM VELOZMENTE EM DIREÇÃO A UM CAMPO: ‘VÁRZEA’. NUMA NOTÁVEL COREOGRAFIA, ESTES CORPOS SE MISTURAM À LAMA, EMPENHANDO-SE, ABSOLUTAMENTE, NO NADA. ACABAM PROSTRADOS, COMBALIDOS, COMPLETAMENTE EXAURIDOS, SEM EXCEÇÃO. UM SOM TACITURNO NOS RETIRA DE CENA E OS ESPAÇOS DO CAMPO DERIVAM-SE NAQUELES DA PRECARIEDADE URBANA...


A metrópole e a vida urbana, suas sociabilidades conflituosas e os modos com que (in)disponibilizam espaços de convivência são focos de interrogação constante do coletivo BijaRi. A paisagem urbana com que trabalha na arte não é esta prontamente acessível à percepção imediata. Interessa-lhe a (in)visibilidade das tensões culturais impregnadas em espaços públicos, a emersão de contrastes que dividem pessoas e recursos materiais, as lutas entre grupos sociais envolvendo o direito à cidade.

Formado há doze anos e integrado por artistas e arquitetos, o BijaRi nos reporta a intervenções estéticas em que a arte trata de pensar-se, pensando a cidade, sobretudo esta (não) cidade paulistana. Na compreensão urbanística que permeia incisivamente seus trabalhos, a cidade não é um fundo, um suporte, um aparato; é, ela mesma, protagonista, o cerne do que está em jogo. Processos urbanos são tomados como um campo sensível a ser reelaborado artisticamente, numa reflexão estética que inclui a tomada de posição crítica quanto aos seus valores sociopolíticos. Estes processos, sob o diapasão característico do grupo, são tratados não sob referências abstratas, mas nas suas relações diretas com a concretude urbana. Sua dimensão física é apreendida à luz das relações sociais que ali se inscrevem, repletas de aspectos polêmicos, via de regra fetichizados.
 

Estão vendendo nosso espaço aéreo (2004), trabalho que mobilizou várias linguagens como cartazes, atos celebrativos, apresentações multimídia, cartões-postais e balões, centrou-se no largo da Batata, região paulistana tradicionalmente popular, configurada como um importante entroncamento de linhas de ônibus. Remodelada sob novas demandas, inclusive pela inserção de uma estação de metrô, a área passou a ser incluída na venda de títulos de potencial construtivo (Cepacs), os quais figuram entre os procedimentos financeiros mais recentes de valorização imobiliária, implementados nos negócios urbanos entre estado e investidores. A estética da ‘modernização’ da paisagem envolvida nesta operação traz na sua esteira a gradual expulsão dos usuários habituais desses espaços, desestruturando convivências que ali têm se consolidado há décadas.
Esse fenômeno do ‘enobrecimento’ de certos perímetros urbanos, com a respectiva troca de seus usuários ou habitantes, em detrimento dos mais pobres, foi também o núcleo do trabalho intitulado Gentrificação (2005). Qualificado pelo grupo como uma “intervenção viral”, consistiu na colagem de 2 mil cartazes em distintos lugares da metrópole paulistana que são alvo, atualmente, desse tipo de transformação. Essa intervenção desdobrou-se em novas situações e conflitos, gerando 468 ocupação subjetiva (2006), ação crítica ao movimento de despejo de 468 famílias do edifício Prestes Maia, a maior ocupação vertical motivada por reivindicação de moradia, neste país. O campo aqui era vetorizado pela polêmica envolvida na manutenção de inúmeros edifícios fechados e abandonados na região central, associada à ausência de políticas habitacionais para a população de baixa renda (ambas mantidas até o presente).

A contraposição do BijaRi às iniciativas de “higiene social” efetivadas pela prefeitura de São Paulo é patente em Lave suas mãos (2005), João bobo (2005) e Combate (2005). Esta série de trabalhos, desenrolada nas principais praças do centro histórico, enfatizou o embate entre os modos de apropriação de espaços públicos que ali ocorrem, as contradições sociais que os fundamentam e a remoção forçada dos sem-teto daquela região, de modo a torná-la, aparentemente, isenta da pobreza que lhe é comum.
 

Várzea (2006), um vídeo premiado do grupo, realizado em conjunto com Ricardo Iazzetta, amplifica essa linha de ação. Nele, se por um lado nos deparamos com nossa cidade e referências culturais que lhe são típicas, por outro, desfere-se a própria condição urbana contemporânea: nos termos atuais, o modo de produção induz, para uma esmagadora maioria, a um jogo perdido de antemão – como ratificado no recente livro Planeta favela, de Mike Davis. A propriedade e concisão das suas cenas, sua articulação metafórica e o modo como a sua sonoridade conduz de um estado de profusão ao tom agônico perfazem a atmosfera deste assolamento.
Em suas formalizações estéticas ligadas a videoarte, performances, instalações e design, o BijaRi opera com meios analógicos e digitais. Na esfera multimídia da produção de imagens, uma das questões inescapáveis à arte diz respeito aos estiramentos pervasivos da cultura da imagem advindos de seu emprego como instrumento mercadológico privilegiado. Hoje, quando temos a impressão de que ‘tudo’ está exposto ou, vulgarmente, prestes a vir a sê-lo, os trabalhos de arte com a imagem digital constroem-se como que ‘num fio de navalha’.
As intervenções do grupo demonstram um estado de alerta ao desenrolar de situações e conflitos na cidade, e a escolha do momento propício à ação artística. Várias de suas formulações assentam-se numa urgência associada a certos acontecimentos, a exemplo da expulsão dos sem-teto do centro, da citada intervenção 468 ou de Porque Luchamos? (2007), sincronizado à vinda da presidência norte-americana à cidade.
Sua linhagem de trabalhos, que inclui uma série de ações críticas – das quais mencionamos apenas algumas –, põe em evidência a relação entre o estético e o político, tão discutida no estado atual da arte. Como sabemos, este campo polêmico diz respeito às mudanças ocorridas no plano da experiência, em que a perda da radicalidade crítica foi coetânea daquela da radicalidade política. Nos termos do filósofo Jean Baudrillard, em nossa situação contemporânea, vemo-nos imersos como que numa “realidade integral” que teria absorvido toda sua transcendência, desgastando as idéias de oposição e enfrentamento.

Certamente a idéia de resistência mudou e com ela os modos com que a cultura vai se repensando e se transmutando. O par resistência/engajamento não encontra agora ressonância alguma em nossas práticas culturais. Mas talvez possamos pensar em resistência como desacordo, discórdia. E pensar sua política não como aquela da grande recusa, e sim, de acordo com o filósofo Jacques Rancière, como uma política do desentendimento. Nesses termos, intervenções no sensível podem ser, simultaneamente, golpes de força, e atos poéticos podem ser, ao mesmo tempo, argumentativos, adversos, dissensuais. Abre-se, desta forma, um significativo campo compreensivo a movimentos da arte contemporânea, como estes voltados à relação arte/cidade. Contudo, é preciso atentar ao fato de que a ação dissensual não se efetiva num terreno de garantias, correndo sempre o risco de anular-se no âmbito dos consensos estabelecidos.

No campo da arte, esta articulação interna entre o estético e o político não deve ser tomada como equivalente à idéia de, no limite, eliminar-se a relação assíntota entre arte e vida, promulgando a dissolução por completo da arte no mundo, e assim, anulando-a. Trata-se, pelo contrário, do empenho em reafirmá-la. É neste sentido que podemos compreender os esforços envolvidos na assertiva do grupo em querer ampliar “...a realidade na arte ou, se possível, a própria realidade na realidade”.

Graduada em arquitetura e filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), Vera M. Pallamin é professora doutora na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Desenvolveu pesquisa de pós-doutorado sobre a relação entre arte e esfera pública na University of California, em Berkeley (EUA), e na Università degli Studi di Firenze (Itália), e é autora dos livros Arte urbana – São Paulo, região central (1945-1998), ed. Annablume, 2000, e Cidade e cultura, ed. Estação Liberdade, 2002, entre outros.