Biografia comentada Denise Mota, 08/2008
Nascido no emblemático 1968, ano em que o mundo entrou em ebulição com a defesa de novos valores e costumes, Ayrson Heráclito colocaria para ferver, em novos caldeirões, conceitos, tradições e crenças da cultura brasileira. Mergulhado já na infância em uma realidade formada por referências intelectuais – a mãe declamava aos quatro ventos poemas de Castro Alves –, o artista incorporou a fusão, a multidisciplinaridade na maneira de entender o mundo e a predileção por observar os fatos a partir de óticas independentes desde cedo. A mistura era a norma, e não a exceção. Da seiva do Brasil africano que povoa suas obras, ele bebeu desde sempre – seu pai, negro, era sargento da Polícia Militar. A mãe, adepta dos abolicionistas, branca, era professora de história.
O gosto pela análise do passado começou em casa por influência materna, como descreve Heráclito ao falar dela: “Foi através da sua voz e das imagens fantásticas de seus livros que eu me compreendi artista. Isso me marcou profundamente, não só a mim como também a dois dos meus seis irmãos, que são historiadores”.
Nos anos 1970, a família se mudou para Vitória da Conquista, cidade onde o garoto –ávido consumidor de fascículos sobre a obra de grandes nomes da história da arte – se aprofundaria no universo do conhecimento. “No curso ginasial, fui aluno de uma professora de história muito especial, filha de Nelson Rodrigues, que me contaminou com as bases de um pensamento crítico e comprometido com o social, e de uma sedutora professora de artes que, além de incentivar as práticas de desenho e pintura, me informou, através da obra de Seurat, que existe também um limite tênue entre a arte e a reflexão”, conta.
Como um amálgama de todas essas influências, remeter-se às origens, buscar elos insuspeitos, levantar novas possibilidades de apreender os acontecimentos oficiais do país foram tarefas a que o baiano se dedicou no seu “batismo de fogo” acadêmico, o projeto que lhe garantiu o título de mestre em artes visuais pela Universidade Federal da Bahia em 1998. A partir da obra de Gregório de Mattos, Heráclito propôs decodificar em instalações Segredos no Boca do Inferno: arte, história e cultura baiana.
Uma década antes, o professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, licenciado em educação artística, se havia feito notar pela primeira vez no circuito expositivo com a conquista dos prêmios do júri especializado e do júri popular para os trabalhos que levou ao 1º Salão Metanor/Copenor de Artes Visuais da Bahia, em 1986. Tratava-se de traduções pictóricas de suas reflexões sobre a pobreza, o sentido social do cristianismo e o saber como poder.
A performance irrompeu na carreira de Heráclito com a entrada na faculdade, também nos anos 1980, e o artista, que já aos onze anos se apresentava como “militante comunista”, passou a dispor de novos suportes, linguagens e instrumentais filosóficos para fazer da arte “qualquer tipo de ser”, como afirma na entrevista publicada neste Dossier.
Entre suas performances, Transmutação da carne, apresentada em 2000 no ICBA de Salvador, apresenta relatos de torturas perpetradas pelos senhores-de-engenho a seus escravos, enquanto homens vestidos de carne marcam e são marcados a fogo. O “holocausto da escravidão”, como define, também dá a tônica a Barrueco, vídeo de 2004 selecionado para o 15º Videobrasil, em 2005. Na edição seguinte do Festival, realizada em 2007, o artista seria premiado com As mãos do epô.
No tabuleiro de Heráclito tem dendê, a vida no Brasil-colônia, charque, açúcar, peixe; esperma e sangue, corpo, dor, arrebatamentos, apartheids e sonhos de liberdade. Como professor, também abandona territórios seguros e amplamente trilhados para defender o ensino da arte como catalisador da violência juvenil. Suas aulas de “arte-atividade” substituíram, nas instituições por onde passou, a “educação artística” vigente na maioria dos programas escolares.
Atualmente o artista se divide em três criações que executará entre este ano e o próximo, todas conformadas por performance e vídeo: fará cair dendê sobre Salvador em A chuva de epô; vai recriar um dos rituais mais importantes do Candomblé, em Bori; e organizará uma missa que, planeja, terá a participação dos integrantes do afoxé Filhos de Gandhi.