Ensaio Alejandra Hernández Munoz, 08/2008

A camada invisível: um olhar transversal dos vídeos de Ayrson Heráclito

A obra artística de Ayrson Heráclito perscruta a complexidade dos valores da herança africana no Brasil ao mesmo tempo em que evidencia a dimensão colossal da lacuna histórica e conceitual que existe sobre o assunto. Seus trabalhos promovem uma reflexão necessária sobre a contribuição do negro à constituição da identidade brasileira – enfatizo o uso do termo “negro” em sua dimensão étnica, cultural e geográfica, em lugar do eufemístico “afro-descendente”. 

Em tempos de “imagem em alta definição”, quais são as imagens indefinidas da nossa cultura? O que há de pouco claro na nossa história? Mais que uma questão física relativa à qualidade da imagem, existe um processo de “invisibilização” histórica de determinados aspectos da cultura brasileira, que aos poucos revela um componente ético do visível no nosso cotidiano. 

Entendendo que o relevante em arte não é o suporte, mas sim as estratégias que materializam as energias criativas da cultura, nas últimas duas décadas este artista desenvolveu uma série de trabalhos com materiais orgânicos presentes na cultura baiana, tais como o açúcar, a carne de charque e o azeite-de-dendê. A partir de dados diversos (históricos, sociológicos, econômicos, etc.), suas obras propõem uma reflexão sobre várias questões culturais afro-baianas. 

Ayrson Heráclito é um dos principais nomes da nova geração de artistas da Bahia. É graduado em educação artística pela Universidade Católica de Salvador, mestre em artes visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e, atualmente, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Desde 1989, realizou quatro mostras individuais, participou de mais de vinte exposições no Brasil e no exterior, e recebeu o Prêmio Braskem de Cultura e Arte e o Prêmio Aquisição no 9º Salão de Arte da Bahia, ambos em 2002. Sua atividade artística se desenvolveu a partir da pintura até inícios dos anos 1990, quando passou a explorar outras linguagens, tais como instalações, performances, fotografia e vídeo. Grande parte de sua produção está registrada em um catálogo abrangente lançado em 2003. 

De modo geral, pode ser constatada uma relação inversa entre a densidade dos conteúdos que as obras abordam e a simplicidade dos recursos expressivos utilizados. Se em termos técnicos e plásticos a construção do artista pode ser resumida em relativamente poucos elementos, em um percurso por sua produção de fins dos 1990 até as mais recentes, verifica-se um gradativo despojamento do factual para o conceitual, passando de obras e ações mais emocionais e literais, que nos atingem de modo mais direto, para imagens mais sofisticadas cuja sutileza e tempo perceptivo demandam introspecção e apreensão demoradas. 

Os vídeos Barrueco (2004), Transmutação da carne (2005), Sangue, sêmen e saliva (2006) e As mãos do epô (2007) podem ser entendidos como uma “tetralogia da escravidão”. Os quatro trabalhos estão relacionados pela mesma temática, também desenvolvida pelo artista em outros suportes, mas as obras diferem entre si em alguns aspectos de linguagem e elementos poético-narrativos. 

A história do negro, assim como a do índio, é um aspecto da brasilidade cujas referências historiográficas, comparadas à história do branco, mal superam o caráter anedótico. A ambigüidade discursiva da igualdade cultural, mais do que conhecer e valorizar as diferenças, tem levado a um fenômeno de “alisamento” das diversidades. Pasteurização de características, folclorização de qualidades e comércio de modismos se sucedem num frenético consumo de falsas novidades, imediatas e efêmeras. Apesar de alguns avanços significativos nas políticas culturais da última década, o pragmatismo mercadológico tem buscado nivelar os diversos componentes culturais, ao utilizar os mesmos parâmetros de tratamento para coisas que são essencialmente diferentes. Nesse contexto, são excepcionais os casos nos quais as referências da cultura negra aparecem além do exótico e do factual. 

É precisamente contra isso que Ayrson Heráclito constitui a sua proposta radical, no sentido original de ir até as raízes do assunto. Nossas reduzidas referências sobre a escravidão são deslocadas da superficialidade cotidiana para uma consciência reflexiva aguda. A maioria de suas obras perpassa, de alguma maneira, o grande problema da constituição do conhecimento sobre o negro: a carência de um instrumental conceitual e teórico específico. As noções de tempo e espaço, matéria e espírito, real e imaginário, bem como as formas de percepção e de conhecimento do mundo na cultura negra são diferentes do (às vezes opostas ao) nosso espectro conceitual ocidental e cristão. Praticamente desconhecemos a lógica das línguas negras, das quais deriva parte de nosso vocabulário cotidiano, sobretudo na Bahia, e, com isso, privamo-nos de uma parte importante da lógica de nossa cultura contemporânea. É necessário reconhecer que buscamos entender a nossa realidade de modo parcial, limitado e unilateral, naquilo que diz respeito às nossas raízes culturais. Além disso, o discurso politicamente correto, a situação de estar “em cima do muro” e a submissão incondicional às leis do mercado conformam o tripé característico do território da mesmice contemporânea. 

É desse “não-lugar” que a arte de Ayrson Heráclito nos resgata, mediante uma poética visual que faz da fronteira entre ética e estética sua matéria de pesquisa e debate. Nesse sentido, a obra Transmutação da carne é, talvez, a mais explícita. O trabalho apresenta uma performance, realizada no ICBA em 2000 e reapresentada sob forma de videoinstalação em 2005 em Koblenz, na Alemanha. Na ação, exibida em três écrans, quatro performers baianos, cada um vestindo roupas de carne-de-sol e charque, são marcados a fogo, tal como eram identificados os negros escravizados até o século 19 no Brasil. O vídeo apresenta uma linguagem que oscila entre o documentário e o registro performático, mostrando toda a ação dos performers com uma voz em off lendo um relato do comissário do Santo Ofício ao senhor reverendo Antônio Gonzalez Fraga sobre “as heresias feitas pelo mestre de campo García de Ávila Pereira de Aragão”. As ditas heresias detalham alguns dos horrores praticados contra os negros pelo mestre, ao tempo em que os performers caminham sobre brasas ardentes, recriam a prática de marcação da pele com ferro quente ou assam um corpo envolvido em carne-seca. A ação silenciosa reproduz um pequeno, mas eloqüente “gado humano” que, além de exacerbar a memória histórica dos cruéis procedimentos, remete para formas atuais de escravidão nas quais outros corpos, materializados pelas roupas de carne, são também negociados e/ou ultrajados, desde a prostituição até a venda de órgãos. 

Em Barrueco, obra realizada em co-autoria com Danillo Barata a partir do poema Divisor de Mira Albuquerque, desdobram-se imagens que narram a história da escravidão desde a ótica do navio negreiro. A matéria de investigação artística se desloca da superfície da pele para o espaço do porão; a recriação da dor dos corpos é acrescida da tortura psicológica da incerteza do destino. Com uma linguagem poética de recursos simples (superposição de imagens, câmara lenta, foco estático), a partir de um repertório limitado de elementos, o tempo narrativo é marcado pela palavra mais do que pela ação, com imagens sóbrias que decorrem do poema que vamos lendo e a canção Black Is the Color, na voz de Nina Simone. Uma gigantesca arraia (o condor do Atlântico, que em outro trabalho terminara em moqueca numa performance do artista) simboliza a “oceânica solidão negra”. Um barco de papel, metáfora da fragilidade da travessia, cruza o mar de dendê empurrado por uma mão divina. O reflexo do performer José Domingos Coni é uma antítese do mito de Narciso sobre o mar de dendê de onde emergem pérolas amarelas. Do percurso do sofrimento, a única coisa que se pode resgatar é a preciosidade da sobrevivência. 

Em Sangue, sêmen e saliva, o artista aprofunda o tema visual do dendê fervendo, como metáfora dos líquidos vitais negros em ebulição após anos de submissão ao branco. O dendê que antes era mar, o território atlântico do sofrimento, agora representa a vida pulsante. O mesmo fogo que antes esquentava o ferro para marcar a pele agora faz ferver o azeite que devém ora símbolo de resistência ora a ejaculação que garante a perpetuação da espécie. O que em princípio poderia aludir a um erotismo contido, pelo contrário, parece simbolizar um esforço da sobrevivência da nação negra. Com estrutura similar à videoinstalação Transmutação da carne, a obra foi concebida para ser exibida em três écrans e também foi apresentada na Alemanha. Como em Barrueco, a poética provoca uma permanente colisão entre o prazer sensorial das imagens e a dor provocada pela consciência do passado escravagista. É um processo duplo de formação da nossa sensibilidade artística e de informação do nosso juízo histórico-crítico; especificamente, uma relação indissociável entre a valorização da multiplicidade cultural da Bahia e a construção da consciência das suas origens. 

Na obra mais recente, As mãos do epô, o artista remete à religiosidade dos escravos africanos. A partir de elementos já introduzidos em trabalhos anteriores, o vídeo apresenta os orixás através do gestual com as mãos sobre o epô (dendê), suporte mole que abriga as diferentes ações dos deuses, ao som dos atabaques. A mitologia dos orixás, um verdadeiro exército de proteção contra as adversidades da diáspora africana, é uma explicação metafísica para a resistência e sobrevivência dos negros. A brandura do epô confronta a dureza do percurso atlântico e da sobrevivência nos canaviais; a maciez dos gestos divinos neutraliza as feridas dos grilhões e dos açoites dos senhores; da cor intensa do dendê emerge a luz que ilumina os porões dos navios negreiros e das senzalas. 

Diferentemente da incorporação do santo no terreiro, as imagens materializam, através dos gestos das mãos, as características de dez divindades e do Tempo (que “balança o pêndulo da vida e escreve os destinos”). Embora os recursos técnicos e poéticos sejam basicamente os mesmos já utilizados em outras obras, a estruturação do tempo narrativo e o discurso da imagem dão um salto qualitativo importante. Para quem não tem uma aproximação com o repertório ritual e conceitual afro-baiano, As mãos do epô pode soar repetitivo, sem que se perceba a delicada coreografia das mãos no amorfo cenário do dendê. Recomendo, então, que se assista mais de uma vez ao vídeo e que se observe o diálogo entre a sutileza das imagens, a lenta ação das mãos (sempre diferente de um orixá para outro) e a alternância da palavra e da representação. 

É possível que, para muitos, aquilo que é percebido como “hermetismo” nas obras de Ayrson Heráclito seja reflexo de nossa impossibilidade de apreensão ou de compreensão do universo ao qual ele se refere, justamente pela falta de um corpus filosófico, ético e metafísico diferente daquele ao qual estamos acostumados. É, talvez, esse exercício de construção estética e questionamento ético que nos empurra para a dolorosa e paradoxal revelação entre o que sabemos desconhecer e o que desejamos não ter sabido nunca. 


Arquiteta, a uruguaia Alejandra Hernández Muñoz reside em Salvador desde 1992. Mestre em desenho urbano e doutoranda em urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), leciona história da arte na Escola de Belas Artes (EBA) da universidade desde 2002. Possui diversos trabalhos de história e crítica de arte e arquitetura. Como curadora, foi responsável pelas mostras Pasqualino Romano Magnavita - 1946-2006: 60 anos de desenho de cidades (galeria Cañizares, EBA/UFBA, abril de 2006); Visões do labirinto (Casarão da EBA/UFBA, novembro de 2007); e, recentemente, pela exposição EBA 130 anos - núcleo EBA em processos (galeria ICBA, março de 2008), todas realizadas na capital baiana.

Entrevista Denise Mota, 08/2008

Sua criação dialoga com a história da arte e aborda contingências históricas brasileiras. Qual das duas histórias o inspira mais?

Sempre encarei o estudo da arte como um fenômeno transdisciplinar, onde são considerados todos os saberes que se debruçam sobre a experiência humana, como antropologia, psicologia, filosofia, sociologia, história, etc. Relaciono-me com temas e objetos de pesquisa através de uma imersão abrangente; me movo pela curiosidade, pelo prazer da investigação e da invenção. Compreendo que a arte funciona como tradutora de estruturas mentais e, portanto, permite ao artista percorrer determinadas permanências do imaginário ocidental, cuja utilização da fonte histórica é vista em uma perspectiva de extrair coincidências e representações arquetípicas. Quando comento a decadência econômica da Bahia colonial, não estou interessado em reconstruir um momento histórico, mas em encontrar, no passado, possíveis leituras para a contemporaneidade. Como, por exemplo, no plano social, a abordagem que faço das questões de ordem civil só tem sentido dentro de um diálogo com as “origens” dessas questões: racismo, miséria, falência econômica, etc. Busco sentidos, significados, exercitando o “pensamento livre” e criativo. Isto é, a possibilidade de ressignificar referências a partir de leituras diversas. Boa parte da minha produção artística lança um olhar sobre a história da minha “aldeia”, lembrando Homo Bhabha sem a “nostalgia do viver”, pois tenho necessidade de me relacionar com o mundo em que eu vivo e que me dá sentido. Esse mundo não é pequeno como um quintal, ele é grande, vasto, complexo e muitas vezes obscuro. A história não só me inspira, mas também acompanha minha vida e minha produção, e informa meu olhar e meus comentários artísticos.

A cultura baiana é atravessada por um sem-fim de influências, também relacionadas à idéia de brasilidade. No memorial de sua pesquisa de mestrado, você diz que busca fugir de uma leitura “folclorizada” da realidade local. Como se dá essa fuga no seu processo criativo?

Como artista e pesquisador, ousei construir uma síntese pessoal sobre as diversas conjunturas e estilos presentes na atividade artística na Bahia até a contemporaneidade. Nessa experiência, consegui localizar o momento da minha inserção no movimento artístico regional, ao tempo em que se tornaram claros quais eram os meus compromissos estéticos com a cultura afro-baiana. Deriva daí a retomada de uma leitura menos folclorizada da realidade local, presente em obras de artistas de diversas gerações, que romperam com a emblemática oficial da baianidade. Essa postura artística, à margem do que ideologicamente se constituiu enquanto tradição reconhecida pelas instituições culturais locais como “a arte baiana”, descortinava novas leituras do universo popular que se mostraram importantes para a criação da minha estética.

Você vem trabalhando bastante com elementos como carne, açúcar e dendê. Por quê?

Porque são materiais vivos, orgânicos, estão em constante transformação e podem apresentar, de forma mais direta, a minha “imaginação raciocinada”. Somado a isso, todo o seu significado simbólico na religião, na história e no cotidiano baiano. O açúcar foi a matéria que utilizei para falar da crise do antigo sistema colonial português, momento em que, para mim, os “segredos internos” da identidade cultural brasileira passam a se revelar. A carne de charque tem significados polivalentes: é o ingrediente primordial que garante a força mística à feijoada de Ogum, um deus negro, assim como um alimento resistente, como a carne do corpo de nossos escravos que foram marcados a ferro. O charque fala da dor da miséria nordestina e da fome. O dendê é o sangue, o esperma dourado de Exu, é o Atlântico, o útero negro gestor da categoria racial. É o mar onde voam meus condores da liberdade atlântica.

O dendê é o material mais recorrente em sua obra, como tinta, símbolo, envoltório corporal. Intimamente vinculado com a história dos negros no Brasil, o dendê representa, simbolicamente, o eixo de suas preocupações e interesses éticos e estéticos?

Por se tratar de um material tão rico e complexo, em todas as suas dimensões físicas e simbólicas, ele vem demandando uma atenção especial. É um material quente, de forte aroma e incontrolável, que impregna as ruas, os lares e os templos baianos. O dendê é o “sangue vegetal” oferecido às divindades em grande parte de seus rituais. Tenho tentado, com o dendê, denunciar questões culturais baianas mais complexas. Também sou fascinado por sua cor, penso em Oiticica, Klein e Rothko, na revelação do sentido espiritual da cor. O dendê é um eixo de minhas preocupações éticas e estéticas, sim. Ele é o líquido vital, o sêmen, o sangue e a saliva do corpo cultural baiano.

Você também é professor de várias disciplinas, entre elas desenho. Como a experiência afeta sua produção artística?

A universidade é um território muito propício para minha produção, pois ela reúne, agrega muitos saberes. Além disso, sou um beuysiano, acredito no poder pedagógico da arte como elemento transformador, e em todos os momentos do meu itinerário artístico a docência caminhou lado a lado. A sala de aula é um espaço muito potente para o diálogo, o ensino; a pesquisa e a extensão são fundamentais para o aprofundamento das minhas investigações estéticas sobre a pluralidade das matrizes culturais baianas.

Aos onze anos, você se proclamava militante comunista. Sua arte é um meio de militância?

Primeiro Marx depois Beuys, aí você não pode esperar outra coisa. Há arte sem política? Há criação sem aldeia, sem quintal? Isso me faz lembrar da “conferência sobre o compromisso” de Cage, quando ele nos pergunta: “É verdade que, quando um assassinato é cometido, cada um de nós é o assassino? Então, não devíamos ser mais generosos uns com os outros?” Sou da turma utópica, que compreende a arte de forma ampliada – definir a arte como qualquer tipo de ser e fazer; designar todo o tecido social, inclusive a política, como uma escultura social. A ação artística estabelece relações estreitas com a política. Mesmo que ela não gere grandes mudanças, pode ser uma estratégia contra as lástimas deste mundo.

Qual a sua avaliação do panorama das artes visuais na Bahia hoje e da inserção de suas obras nesse cenário?

Não me sinto à vontade para fazer avaliação, mas, como membro ativo da comunidade artística da Bahia desde a década de 1980, posso tecer alguns comentários sobre a política cultural patrocinada pelo estado da Bahia na década de 1990, no tocante à arte contemporânea, onde me situo. Em primeiro lugar, observou-se nos gestores da política um não-reconhecimento desse tipo de manifestação. As intervenções que trilham caminhos criativos distintos dos suportes tradicionais da obra de arte foram sistematicamente negligenciadas pelas instituições oficiais de cultura. Com essa postura, foram condenados ao ostracismo e à invisibilidade diversos talentos desse campo das artes, tendo sido responsável, indiretamente, pelo desencanto profissional de vários artistas. Vivemos hoje um bom momento político-cultural em todo o estado. Um afinamento entre o estado e o governo federal. Novas idéias, novos gestores, e isso está fazendo aflorar grandes talentos da arte que estiveram por um bom tempo em estado de latência. A nossa auto-estima está se elevando, e novos nomes se destacam no cenário nacional e internacional. Temos muito o que fazer, principalmente tentar garantir sustentabilidade sem cair no mercadão das artes. Penso eu: por não termos, nas artes visuais, um mercado forte, como a música, temos maior espaço para a diversidade criativa. A minha produção sempre teve um espaço, tenho um seleto grupo de fruidores que acompanham minha criação. Isso é muito gratificante, pois acho que posso abrir muitas veredas por essas bandas com a arte contemporânea. Estou entrando aos poucos no mercado e já consigo vender o meu dendê e a minha carne-seca. Salvador, também, é uma boa vitrine para o mundo. Tenho negociado com colecionadores e museus internacionais, assim como recebido convites para participação em mostras importantes fora do estado.

Em que obra você está trabalhando agora e quando e onde ela poderá ser vista?

Atualmente estou trabalhando em três projetos, todos envolvendo performance e vídeo. O primeiro faz parte da série Regresso à pintura baiana, é intitulado A chuva de epô, uma videoinstalação com três canais que apresenta uma chuva de dendê sobre a paisagem da cidade de Salvador, uma homenagem a Yves Klein, Oiticica e Iansã. O segundo projeto chama-se Bori, trata-se de uma performance onde iremos ofertar comida para a cabeça de vários deuses negros. Um trabalho entre o sagrado e o estético. Requer uma grande elaboração na preparação de diversas oferendas. O terceiro trabalho é uma missa de morte que quero fazer para Márcia X, com a utilização de membros do afoxé Filhos de Gandhi. Deverei apresentar esses trabalhos aqui em Salvador entre 2008 e 2009 em uma galeria e em museus. Estou na fase de pré-produção e de captação de recursos para os trabalhos mais complexos.

Biografia comentada Denise Mota, 08/2008

Nascido no emblemático 1968, ano em que o mundo entrou em ebulição com a defesa de novos valores e costumes, Ayrson Heráclito colocaria para ferver, em novos caldeirões, conceitos, tradições e crenças da cultura brasileira. Mergulhado já na infância em uma realidade formada por referências intelectuais – a mãe declamava aos quatro ventos poemas de Castro Alves –, o artista incorporou a fusão, a multidisciplinaridade na maneira de entender o mundo e a predileção por observar os fatos a partir de óticas independentes desde cedo. A mistura era a norma, e não a exceção. Da seiva do Brasil africano que povoa suas obras, ele bebeu desde sempre – seu pai, negro, era sargento da Polícia Militar. A mãe, adepta dos abolicionistas, branca, era professora de história.

O gosto pela análise do passado começou em casa por influência materna, como descreve Heráclito ao falar dela: “Foi através da sua voz e das imagens fantásticas de seus livros que eu me compreendi artista. Isso me marcou profundamente, não só a mim como também a dois dos meus seis irmãos, que são historiadores”.

Nos anos 1970, a família se mudou para Vitória da Conquista, cidade onde o garoto –ávido consumidor de fascículos sobre a obra de grandes nomes da história da arte – se aprofundaria no universo do conhecimento. “No curso ginasial, fui aluno de uma professora de história muito especial, filha de Nelson Rodrigues, que me contaminou com as bases de um pensamento crítico e comprometido com o social, e de uma sedutora professora de artes que, além de incentivar as práticas de desenho e pintura, me informou, através da obra de Seurat, que existe também um limite tênue entre a arte e a reflexão”, conta.

Como um amálgama de todas essas influências, remeter-se às origens, buscar elos insuspeitos, levantar novas possibilidades de apreender os acontecimentos oficiais do país foram tarefas a que o baiano se dedicou no seu “batismo de fogo” acadêmico, o projeto que lhe garantiu o título de mestre em artes visuais pela Universidade Federal da Bahia em 1998. A partir da obra de Gregório de Mattos, Heráclito propôs decodificar em instalações Segredos no Boca do Inferno: arte, história e cultura baiana.

Uma década antes, o professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, licenciado em educação artística, se havia feito notar pela primeira vez no circuito expositivo com a conquista dos prêmios do júri especializado e do júri popular para os trabalhos que levou ao 1º Salão Metanor/Copenor de Artes Visuais da Bahia, em 1986. Tratava-se de traduções pictóricas de suas reflexões sobre a pobreza, o sentido social do cristianismo e o saber como poder.

A performance irrompeu na carreira de Heráclito com a entrada na faculdade, também nos anos 1980, e o artista, que já aos onze anos se apresentava como “militante comunista”, passou a dispor de novos suportes, linguagens e instrumentais filosóficos para fazer da arte “qualquer tipo de ser”, como afirma na entrevista publicada neste Dossier.

Entre suas performances, Transmutação da carne, apresentada em 2000 no ICBA de Salvador, apresenta relatos de torturas perpetradas pelos senhores-de-engenho a seus escravos, enquanto homens vestidos de carne marcam e são marcados a fogo. O “holocausto da escravidão”, como define, também dá a tônica a Barrueco, vídeo de 2004 selecionado para o 15º Videobrasil, em 2005. Na edição seguinte do Festival, realizada em 2007, o artista seria premiado com As mãos do epô.

No tabuleiro de Heráclito tem dendê, a vida no Brasil-colônia, charque, açúcar, peixe; esperma e sangue, corpo, dor, arrebatamentos, apartheids e sonhos de liberdade. Como professor, também abandona territórios seguros e amplamente trilhados para defender o ensino da arte como catalisador da violência juvenil. Suas aulas de “arte-atividade” substituíram, nas instituições por onde passou, a “educação artística” vigente na maioria dos programas escolares.

Atualmente o artista se divide em três criações que executará entre este ano e o próximo, todas conformadas por performance e vídeo: fará cair dendê sobre Salvador em A chuva de epô; vai recriar um dos rituais mais importantes do Candomblé, em Bori; e organizará uma missa que, planeja, terá a participação dos integrantes do afoxé Filhos de Gandhi.

Referências bibliográficas 08/2008

Blog
Uma espécie de portfólio eletrônico com alguns dos trabalhos de Ayrson Heráclito, apresentados com fotos e textos breves, e currículo resumido. 

Universidade do Recôncavo

Professor no Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Heráclito amplia e complementa suas investigações artísticas como professor da instituição, criada em 2005.