Entrevista Denise Mota, 10/2008

Você estudou psicologia e cinema. Seus vídeos tratam a sociedade como um organismo vivo; é como se o espectador pudesse “dissecar” as disfunções do cotidiano através de suas imagens. Em sua opinião, a videoarte tem a capacidade de ilustrar o “inclassificável”, de fazer aflorar sensações e identificações possíveis somente por meio de imagens que o espectador não pode tipificar?

Ela é um “hibridinclassificável”, eu diria, cuja história é contada a partir dos Estados Unidos, esquecendo-se qualquer outra coisa entre o céu e a terra. A videoarte é como um laboratório de híbridos, em que Paik e Larcher continuam a me comover. Um Paik dentro de um táxi com a Sony em Nova York, e Larcher fazendo renderings com Zanoli. O vivo e o processo. O vivo para alimentar o processo, e o processo para levar ao vivo. Assim trabalhei Das Kapital e agreguei cadáveres processados “invisíveis aos olhos”; portanto, nada para sentir, nada para entender. Talvez descobrir ou tentar voltar a ver o que se crê que está sendo visto. Os olhos se tornam cínicos, crêem que viram tudo. A surpresa é tudo. É necessário recorrer ao trabalho, ao engano, à correria como método para fazer com que o espectador olhe cadáveres e fetos por vinte minutos sem se queixar! E anos de bolsas e renderings! 

Tecnologia, ciência, o corpo humano, os avanços na manipulação genética e o capitalismo sem fronteiras parecem ser elementos-chave de sua obra. É assim?

Creio nos micróbios; nos transdutores* e nos “ajustadores”. Chamo de “ajustadores” aqueles teóricos que não criaram grandes teses; são apenas destruidores ou ressistematizadores (Gödel, Marx, Calvino). A mim me entusiasma o processo de transferência de informação teórico-orgânica através de múltiplos empréstimos e de extrações de DNA em organismos vivos. Isso inclui a possibilidade de biocurar a arte. De construir sobre metainformação, como a informação genética, e de voltar a ver a partir de outros pontos de vista. “Gosto de ver”, como dizia Chauncey Gardner. Agora, o que vejo e quanto posso ver? Abstração. Estou interessado nessa massa de informação que se transmite/renova e que não nos faz nem superiores nem inferiores, nem primeiros, nem últimos, apenas vivos e à espera de mudanças. [* Wikipedia dixit: Um transdutor é um dispositivo que transforma um tipo de energia noutro tipo de energia...” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Transdutor).] 

Seus trabalhos se compõem muitas vezes de uma sucessão vertiginosa de imagens, que resultam de uma intervenção de caráter científico e artístico. Como foi o processo de obras como The Chemical and Physical Perception in the Eye of the Cat, in the Moment of the Cut e Das Kapital

Em 1998, conheci no Videobrasil David Larcher, que me convidou para trabalhar na Academia de Mídias de Colônia. Foi lá que meu sistema de produção mudou. Na Argentina, trabalhava em casa, em um computador, e alugava um estúdio para a pós-produção. Na Alemanha, a tecnologia que usei me permitiu fazer o que eu queria e muito mais. A academia ficava aberta 24 horas por dia e trabalhar lá era pura felicidade; mas também foi uma angústia enorme aprender a manipular todas aquelas máquinas com manuais em alemão. O mais complicado foi ter uma idéia-eixo, uma idéia central que unisse os pedaços das outras idéias. Em outras palavras, construir um sistema, o meu sistema. Sempre acreditei no que Blake dizia: “Tenho que construir meu próprio sistema ou serei escravizado pelo sistema dos outros”. E as máquinas estão sempre fazendo promessas de sereia, com seus menus, submenus, plug-ins e settings. 
O método que usei foi anotar e desenhar constantemente, sem respeitar nenhuma linha em particular. Dos escritos/desenhos, passava para o computador e daí à midiateca da academia, para ver trabalhos que nunca havia visto. Felizmente, eu já trabalhava com animação e não tinha medo das máquinas, mas me deu trabalho controlá-las, fazer com que elas respondessem à proposta que eu formulava, e não o contrário. Acho que não fui suficientemente explicativo sobre o processo de trabalho. Acrescento então, aqui, uma foto de um vídeo que pertence à série de Das Kapital, com o título: “De como manipulei as paisagens fetais”, de 1999. É a explicação gráfica do “3D” em The Chemical and Physical Perception in the Eye of the Cat, in the Moment of the Cut e de Das Kapital.
O processo aconteceu por acidente. Estava trabalhando com o programa Flint, da Discreet Logic. Às vezes, ele apresentava comportamentos instáveis: o sistema caía e, quando eu recuperava os frames, alguns se misturavam. Foi assim que os frames de cabeças de fetos acabaram ficando entre as animações abstratas que eu estava fazendo. Ao processá-los, vi que os fetos desapareciam e se transformavam em paisagens. Ao multiplicar os processamentos, se apagaram completamente. Em seguida, colori e trabalhei 25 telas ao mesmo tempo. Animei as passagens. As imagens finais mostram fragmentos processados sobre fragmentos de processos intermediários. Procedo do mesmo modo com imagens de cadáveres. Foi então que percebi as vantagens da “invisibilidade”. 

Seu interesse e conhecimento sobre conceitos matemáticos e médicos – e a relação que estabelece com a história, a política, a economia, a cultura e a sociedade de nossos tempos – estão evidenciados ao longo dos trabalhos. O que interessa a você buscar e causar no momento em que concebe uma nova proposta artística? 

Uma coisa que aprendi é que, se estou interessado em buscar algo, a coisa não irá muito longe; e também que as misérias são as mesmas e mudam pouco. Prefiro fazer uma aposta na inconsistência, com links, com idéias ligeiramente fora de curso: 

How does the Inconsistence work, practically?, 2007
http://www.khm.de/~marcello/html/Net-Art/m3.htm

36.the field of battle becomes two-fold:
http://www.khm.de/~marcello/html/Net-Art/m/m40.htm

Seus primeiros trabalhos foram realizados na Argentina dos anos 1980. Vídeos como The Torment Zone tratam de aspectos do país como a corrupção, a burocracia, a religiosidade e um sistema de saúde cheio de deficiências. Como vê a Argentina hoje? 

Não conheço mais a Argentina. É estranha. As pessoas falam de modo diferente. Ocorreram fatos importantes quando eu já não vivia mais lá, e essas referências nos hábitos e na linguagem me deixam perdido. Por outro lado, também me instalei em meu próprio mundo, que não está nem lá nem aqui. Hoje há um desencontro. Desde que vivo na Alemanha, regressei à Argentina poucas vezes; se somarmos todas as voltas, não fiquei nem um mês por lá. Sempre é uma espécie de choque regressar. Tenho a impressão de que morri e que voltei, e posso ver como as pessoas continuaram sem mim, sem problemas. É um belo exercício para qualquer argentino com um ego. Imagine o que não é para os que têm dois. Os temas que você menciona ocupavam, de fato, um lugar importante no meu trabalho. Com o passar dos anos – e vivendo fora do país –, senti que porcentagens da minha atenção se desocupavam e comecei a me concentrar em meu projeto artístico em si. E me sinto bem assim. Recuperei meu tempo, meus olhos, minha tranqüilidade, minhas porcentagens. Restam em meu corpo muito poucas células de dez anos e meio atrás. Mas guardo os cassetes. 

Em quais projetos você está trabalhando agora?

Estou trabalhando em quatro direções: 
A.    Preqüência: estou reeditando meus primeiros trabalhos, que vão de 1989 a aproximadamente 1995. Serão 25 vídeos da época argentina, ou seja, cadáveres e sexo.
B.    Terminei há uma semana sete partes novas de Das Kapital, ou oitenta minutos novos. Neles, continuo a reinterpretar Marx a partir de posições digitais e biológicas.
C.    Estou editando os trabalhos atuais, aos quais devo agregar obras de performance e bioarte em desenvolvimento, desenhos, instalações, intervenções em lugares públicos e pintura experimental.
D.    Estou montando instalações para o ano que vem que combinam tudo o que comentei anteriormente. Vou trabalhar em um projeto novo de bioarte-performance que estará pronto em meados de 2009. Será feito em um laboratório de alta tecnologia.

Um de seus enunciados é: “Caminho rumo a um ecossistema governado por micróbios”. Esse é o futuro?

A virulência dos micróbios combinada com a virulência de nossa ignorância é uma forma possível de futuro. Somos milhares de anos, e os micróbios são uma forma de eternidade. Ou seja, no fundo, sou otimista.