O foco da performance no Videobrasil
por Lucio Agra
sobre o Foco 4 dos Programas Públicos do 18º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil
Não se comenta muito isso, mas uma das origens negligenciadas da performance brasileira está justamente na descoberta de um novo universo musical. No início dos anos 60, na mesma época em que se desenvolve o happening na Europa e nos Estados Unidos, inicia-se a experiência do Curso de Música na Universidade de Brasília onde se reúne, em torno do maestro Claudio Santoro, o grupo que respondia pelo nome de Música Nova (1963). Faz experimentos que hoje seriam vistos como “performáticos”: rasgar jornais, atirar moedas em um penico, emular pianos preparados, barbear-se em público ou até mesmo dar um tiro para o alto, foram algumas das ações praticadas em meio às composições de Rogério Duprat, Régis Duprat, Gilberto Mendes, Damiano Cozzela e outros. Com a interrupção dos experimentos decretada pela ditadura militar, uma parte dos integrantes do grupo voltaria a São Paulo e se engajaria na produção do Tropicalismo.
Vejo nisso uma das possíveis vertentes, no Brasil, do que se conhece mundialmente como “performance sônica”. Um ramo da arte da performance no qual músicos e não músicos – com maior frequência destes – se reúnem para produzir arte sonora. A apreensão do musical, aqui, se dá por caminhos opostos à tradição melódico-harmônica, alicerçada no descritivismo de tanto êxito no século dezenove. O século 20 foi pródigo na articulação entre a música e as outras linguagens: os entoadores de ruído de Luigi Russolo – o pintor futurista autoconvertido em músico e as partituras musicais dos pintores russos, Mikhail Matiushin eVassíli Kandinski, formam a etapa inicial de um processo que bifurca-se em duas correntes. Por um lado, o serialismo, através da “melodiadetimbres” (klangfarbenmelodie) de Anton Webern, isto é, o deslocamento da ênfase no tom para aquilo que é propriedade de cada instrumento e, de outro lado, a música ao vivo, vista como ação propositiva no espaço-tempo. O assim chamado “aleatorismo” de John Cage, simultaneamente propaga o happening e um novo tipo de (de)composição musical de que é marco o “Evento sem título” (1952). A historiografia mais conhecida da performance (Jorge Glusberg, RoseLee Goldberg) mencionam as fontes internacionais. Mas, no Brasil, nem mesmo a cronologia da performance, preparada para o 15o Videobrasil, em 2005, e encartada no número 1 dos Cadernos, faz menção a este ponto de partida brasileiro.
Durante os anos 80, em um dos surtos de interesse pela performance por aqui, vários fatos apontam para a articulação entre ela e a música. A Banda Performática de José Roberto Aguilar; os eventos no SESC Pompéia, dos quais Renato Cohen, autor de Performance como Linguagem (1989) foi um dos programadores e que teve, entre outros destaques, o festival punk “O Começo do Fim do Mundo”; as inúmeras performances na casa noturna Madame Satã, por onde passaram praticamente todas as bandas dos anos 80 sem falar dos influxos da performance na própria atuação dos músicos da época.
Acredito que boa parte do que hoje se chamaria “artists bands” e que teve, nesta edição retrospectiva do Videobrasil dois ilustres representantes – Cão e Chelpa Ferro – poderia reinvindicar a nobre origem que ainda incluiria, talvez, as aventuras dos Mutantes, da Gang 90 e de outros artistas como os cariocas da The Zés Manés. Dentre todos esses, o Chelpa Ferro fez de sua atuação um programa que se desenvolve gradualmente ao longo dos anos.
Em 1998 o grupo não fez a mesma intervenção, pois tratava-se de outra busca. A instalação Moby dick – uma gigantesca bateria que evoca o famoso solo de John Bonham, no Led Zeppelin – ganhava sua eloquência pelo silêncio pesadíssimo que provocava ao ser vista e pelas varetas de incenso que lhe davam um ar de suspensão que recusava o ruído. Na performance daquele ano, a imensa bateria permanecia em primeiro plano sem jamais ser tocada.
Oscilando entre o ruído e o silêncio, situam-se os experimentos do Chelpa Ferro. Ou entre os extremos da investigação construtiva dos timbres e da anarquia do happening, extremos que orientam a arte brasileira de modo geral. E a performance brasileira inclusive.
A presença de dois jovens representantes da performance sônica de hoje – Pontogor e Abel Duarte – ambos já com passagem por festivais de performance, de noise music, de improviso livre e outros ramos e subgrupos desse universo anti-música, confere à ação do Chelpa um sentido suplementar, uma espécie de decisiva afirmação de que a fonte que se abriu no início dos 60 não cessou de render frutos.
Da outra vertente, gerada nos 80, também se forma o Cão, trazendo no baixo a atuação constante de Dora Longo Bahia em inúmeras outras bandas anteriores. Maurício Ianês também traz para o experimento a sua pesquisa com a voz que marca vários de seus trabalhos bem como a tinta sobre o corpo. Bruno Palazzo já desenvolve sua atividade nos campos simultâneos, artes visuais e música, bem como Ricardo Carioba, cujas performances são sempre engendradas com o som. No site do grupo ( http://cargocollective.com/cao/info ) ele mesmo é designado como sound artist, uma das novas denominações que surgem a partir dos híbridos produzidos pelas fricções entre linguagens que, desde os anos 70, junto à aparição e consolidação da própria Performance, são traço marcante da Arte Contemporânea, o que Dick Higgins, em 66, viria a designar como “poética intermeios”.
Em contraste com esses dois marcantes eventos, as demais performances desse ciclo comemorativo remetem para duas outras possibilidades: a cênica e a plástica.
Conforme pareceu mais claro no debate que se seguiu à performance de Alexandre da Cunha, no dia 23 de novembro, havia uma profusão de sentidos na recuperação de um trabalho outrora realizado por um performer que enveredara pela escultura, deixando o fazer ao vivo de lado. Como acontece algumas vezes com artistas dessa estirpe “visual”, Alexandre convocou outros corpos para realizar a sua ação, afastando-se dela voluntariamente.
Isto seria impossível de imaginar no caso de Luiz de Abreu com seu O samba do crioulo doido, aclamado internacionalmente e premiado neste Videobrasil. É impossível desconectar o ator e bailarino que aqui executa a outra vertente da performance que, no Brasil, é extremamente presente e objeto de muita controvérsia: a performance que chamaríamos, na falta de um termo melhor, de “cênica”.
Aqui de novo temos que retomar Renato Cohen, pioneiro da discussão do tema no Brasil e também propositor da noção de “cena contemporânea”. Esta ideia é, grosso modo, a incorporação definitiva da desestabilização que a performance produziu no Teatro a partir dos anos 70. A atitude artística que produziu essa nova linguagem era um “roubo” de alguns traços constitutivos do teatro e dança tradicionais que viriam a ser repisados e misturados com informações da pop art, do conceitualismo, e do próprio teatro novamente, nas vertentes em que este abandona as formas tradicionais de encenação (o palco, o edifício teatral).
No mesmo ensejo em que Joseph Beuys resolve produzir um trabalho que é uma canção em uma banda de rock (Sonne Statt Reagan, 1982), artistas da performance como Laurie Anderson e do teatro como Robert Wilson retomam a velha caixa de ilusões para produzir híbridos a meio caminho da música, da cena de cabaré, do quadro vivo e outras formas híbridas. O clip de O Superman de Laurie Anderson, imenso sucesso na MTV (que entretanto ainda não existia no Brasil) tinha mais de oito minutos de duração, totalmente experimental e serviria de prelúdio ao registro de apresentações de Anderson em teatros que resultam no filme de 1986. Durante os anos 00 artistas da performance tão diferentes quanto Marina Abramovic ou Jonathan Meese viriam a ser convidados para temporadas no Watermill de Bob Wilson.
Essas trocas se intensificaram nos últimos tempos. No Brasil, com frequência, encontram-se artistas do teatro interessados na performance. Grupos convidam performers para colaborar e se bem que a situação inversa não seja muito frequente, a antipatia que a postura clássica da época da Body art prescrevia já não parece fazer muito sentido.
O que move Luiz de Abreu a chamar seu trabalho de performance é, me parece, um pouco dessa vontade de articulação com esta linguagem, nem sempre tão nítida e ancorada a princípios construtivos da mesma.
Muitas coisas mudaram desde 2005. Artistas do teatro e da dança voltaram a afirmar uma proximidade com a performance como o fizeram Ivaldo Bertazzo ou Denise Stocklos nos inícios dos anos 80, neste mesmo SESC Pompéia, então recém-inaugurado, nas 14 noites de performance organizadas npor um Renato Cohen recém-chegado de uma viagem ao exterior, onde fora buscar a herança hippie e volta com o impacto forte – e performático – de bandas como DEVO ou Talking Heads (esses últimos, afinal, uma “art band” da turma de Nova York como Laurie Anderson).
Há, portanto, uma outra linhagem, derivada da dança, que poderia também servir a um esforço de genealogia da performance brasileira e que conduz diretamente ao experimento de Luís de Abreu. Com algumas das características tradicionais do “espetáculo” (ensaio, temporada, repetição por um lado; frontalidade, virtuosismo, efeito dramático por outro), a performance de Abreu ao mesmo tempo abandona essa tradição propositalmente, criando uma sequencia sem diegese, uma sucessão justaposta de “quadros” ou “cenas” em que um corpo dança todos os estereótipos que lhe são grudados à pele, ao rosto, aos órgãos, despindo-se, simultaneamente, dessas mesmas imagens à medida em que a onipresente bandeira brasileira vai sendo misturada, tripudiada, brincada, servindo ora de abrigo, ora de pretexto erótico ou irônico. Nessa forma de performance – uma forma que produz o que alhures chamei de “teatro do desmanche”, um desmantelo da cena tradicional – concatenam-se os dados pelos quais é possível hoje, no teatro e na dança, vislumbrar seus próprios limites diante do que essas linguagens configuram como performance.
Aquilo que a performance levou do teatro, da dança, da poesia, da música e das artes visuais, retorna a estas fazendo com que todas ambicionem esse lugar de liberdade que a performance inaugurou. E mais, que seja possível não pensar mais em uma lógica baseada na ontologia, naquilo que constituiria cada linguagem mas antes naquilo que faz com que cada linguagem “deixe de ser”.
Assistir a uma semana de performances como essa – tão pouco frequente mesmo em 2005 e hoje tão normal, precedida e sucedida por uma série de eventos (festivais, encontros) sobre o tema e a prática performáticas – ajuda a entender o desejo de aproximação de pintores, escultores, músicos, bailarinos que buscam avidamente esse des-território.
As conjunções vídeo/artes visuais/poesia/música/teatro/dança e performance são essenciais para entender esse trajeto no Brasil. Se em outros países que nos circundam, no restante da América hispânica, há uma persistente – e até certo ponto linear – permanência e desenvolvimento da arte da performance, no Brasil ela goza de antipatias e simpatias na mesma proporção, passa por surtos de interesse e declínio surpreendentes.Teria isso a ver com nossa propensão a desfazer os limites de todas as formas e produzir virtuais articulações que, de resto, se produzem também no México (ver a fascinação que as lutas livres têm para a performance mexicana) ou na Argentina, ou no Chile, na Colômbia ou na Venezuela?