Texto de curadoria geral Solange Farkas, 2007

Encontros e Aproximações

Criar situações propícias ao encontro e à troca entre artistas, articuladores e observadores da produção do sul geopolítico do mundo – provocando uma exploração de diferenças e identidades fundamental para compreender essa cena viva e heterogênea – sempre foi uma estratégia central para a Associação Cultural Videobrasil. No Festival, que chega agora à 16ª edição, ela se materializa com intensidade máxima.

O desejo de investigar as aproximações entre cinema, vídeo e arte, que ganham um impulso irreversível e produzem novos sentidos para a narrativa, move esta edição. O eixo curatorial se traduz em um potente conjunto de obras, próximas na natureza que ultrapassa limites e derruba cercas entre territórios artísticos, mas muito diversas nas poéticas e no que dizem dos caminhos percorridos pelos artistas.

Em torno delas, o Festival mobiliza uma centena de atores, entre artistas, curadores, críticos e lançadores de iniciativas, que estão reinventando as formas de produzir e circular arte em todas as regiões. Para além dos painéis formais de debate, transita-se por um lugar de imagens compartilhadas e de intercâmbio intenso, que a arquitetura física e de programas favorece e estimula.

A partir do 16º Videobrasil, e em resposta a uma demanda antiga, as oportunidades de intercâmbio próprias do Festival deixam de ser exclusivas dele. À medida que a parceria fundamental com o SESC São Paulo se aprofunda e reconfigura, é possível criar novos formatos para levar ao público o resultado das pesquisas da Associação no circuito da arte contemporânea, dar continuidade às ações de “contaminação” entre artistas, pensadores e público, e antecipar as discussões do Festival.

O melhor exemplo são os Encontros SESC Video­brasil. Desde 2006, o programa leva ao SESC Avenida Paulista os artistas que estão renovando a cena contemporânea com proposições ligadas à imagem eletrônica. Um passo além, nesse rumo, é a criação, no mesmo SESC Avenida Paulista, da Videoteca, espaço fixo para fruição e consulta a obras digitalizadas do extenso Acervo Videobrasil de arte eletrônica.

Expandir as superfícies de contato entre quem faz, pensa e precisa de arte – e cuidar para que esse contato produza resultados que durem – é também o sentido das parcerias que aproximam as ações do Video­brasil e a academia. No 16º Festival, elas estão no Programa de Monitoria Especializada do Senac São Paulo, nos Seminários coordenados pela ECA/USP e no Prêmio FAAP de Artes Digitais – que, em 2007, se integra ao Programa Videobrasil de Residências, mais um mecanismo permanente para promover encontros e trocas.

A busca de ações cada vez mais abrangentes produz outro resultado de peso em 2007. Pela primeira vez, o 16º Videobrasil se realiza também no Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador. O movimento de expansão não obedece somente ao desejo de ampliar o público que tem acesso ao Festival. Seu intuito é estimular a produção artística do Nordeste, contaminando-a com conteúdos e proposições que questionam e atualizam nossa visão da arte contemporânea.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. "16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil": de 30 de setembro a 25 de outubro de 2007, p.22 - 23, Edições SESC SP, São Paulo-SP, 2007.

Texto de apresentação Solange Farkas, 2007

CINEMA+VÍDEO+ARTE: UMA CONVERSA INFINITA*

Art is an excuse to have a dialogue. [A arte é uma desculpa para se travar um diálogo] Douglas Gordon, artista britânico, em entrevista ao curador suíço Hans Ulrich Obrist

Se, na edição passada, o Festival identificou na produ­ção contemporânea as conexões entre a performance e a arte eletrônica, o 16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil dá continuidade a mais uma investigação, observando agora as aproximações entre o vídeo, o cinema e as artes visuais.

O longa-metragem Limite, de Mario Peixoto, nos serviu de farol, iluminando essas relações que se desdobram em imagens expandidas e narrativas múltiplas. Tomamos o filme, aqui, como uma obra-acontecimento, responsável por introduzir no cinema e no audiovisual brasileiros toda ordem de hibridações e estratégias de experimentação da imagem.

Partindo dos enquadramentos incomuns, dos cortes obtusos, dos planos-seqüência simulando o tempo real, das fusões surrealistas, chegamos a uma linguagem videográfica contemporânea que nos parece, em grande medida, nutrida e estimulada pela cinematografia fundante de Mario Peixoto. Vem dessa impressão a escolha do tema do Festival, Limite: Movimentação de imagem e muita estranheza.

É instigante pensar nas relações entre a estética de Limite e sua forma de produção, marcada pela liberdade artística de uma equipe pequena, mínima, envolta na tarefa de produzir poesia com imagens em movimento. Um corpo lírico servindo-se de uma câmera que, independentemente de ser cinematográfica ou videográfica, assume, no seu movimento, a intencionalidade da escrita, e a sua visibilidade também como a de um personagem. Câmeras livres que exploram outras perspectivas e tensionam a beleza produzida pelo fotográfico, aproximando-o muitas vezes da gestualidade plástica.

A estranheza de Limite deixou perturbada a platéia do Cine Capitólio, no Rio de Janeiro, em 17 de março de 1931, determinando, em sua complexidade, a impossibilidade do lançamento do filme no circuito comercial cinematográfico. Este deslocamento poético do filme de Peixoto, incoerente com os padrões do circuito de exibição cinematográfica comercial, fez o diretor questionar se voltaria a filmar um dia: “Eu fiz Limite como queria. Não estava certo que poderia repetir aquele clima”.

As incertezas de Limite ecoam no circuito das imagens eletrônicas. Como um filme praticamente inédito, sem público, sem bilheteria, sem “mercado”, pôde atravessar a barreira mais decisiva, a do tempo, e chegar até nós, como uma exteriorização do pensamento, do mundo mental e da experimentação? Revendo Limite, encontramos fragmentos de instalações, seqüên­cias inteiras autônomas, um mapa visual e sonoro com figuras de linguagem que se multiplicam, atuais e extemporâneas: fusões surpreendentes que passam do infinitamente grande ao infinitamente pequeno, metáforas visuais, ritmos e velocidades extremas, cinetismo, pulsações, flou, a câmera lentíssima ou acelerada. Turbulência, refluxo, choque, calmaria. A água como tela líquida que tudo reflete, fusiona, deforma, transforma. Figuras de linguagem que ultrapassam a enciclopédia modernista e o esteticismo e irrompem como processos plenos de virtualidades.

IMAGENS-LIMITE

Como, afinal, o cinema faz sua reaparição em um novo cenário? Não como linguagem codificada, certamente, mas como um espaço de estar na contemporaneidade, o “kinema” como processo e potência, como banco de dados e procedimentos para a arte em vídeo, a mídia arte, as novas mídias. Se pensarmos esse cinema desterritorializado, fora das salas tradicionais, tornado instalação, projeção nômade, copiado, citado, reciclado, remixado, reencontramos a “cinematicidade”, o cinema para além dos limites.

Pensar as “figuras de linguagem” que atravessam o cinema, a imagem eletrônica, a mídia tática, significa também uma liberação das historiografias prontas, das diásporas e dos guetos, um outro olhar para o passado, não como o que já passou, mas no seu devir. Confrontar limites.

Por que o cinema num Festival de imagem eletrônica? Porque são inúmeros os territórios compartilhados. Além do fato de hoje o cinema e o vídeo compartilharem um mesmo ambiente digital, o cinema tomou o partido do vídeo também na experimentação dos suportes (sejam eles corpos, espaços arquitetônicos, museográficos ou urbanos), assumindo o estado permanente de trânsito e nomadismo da imagem.

Mario Peixoto não faz um filme de enredo, ou de histó­ria, mas um filme em que situações perseguem um ritmo. Já Peter Greenaway, convidado especial desta edição do Festival, ao lado de Marcel Odenbach e Kenneth Anger, afirma: “Acredito que no cinema é possível expressar idéias em seqüência, sem ser escravo da narrativa”.

As figuras de linguagem também fazem parte do eixo Cinema+Vídeo+Arte, na obra de Arthur Omar (flicagem, superexposição, cinetismo, a narrativa sem história, a disjunção entre som e imagem, etnografia poética), assim como nos procedimentos de reciclagem e apropriação de “imagens alheias”, caros a Omar e Carlos Adriano. Ironia e provocação que encontramos ainda na modernidade baiana de Edgard Navarro.

O que essas obras apresentadas têm em comum? Poderíamos dizer que são uma experiência dos limites (não só entre cinema, fotografia, artes plásticas, arte em vídeo, instalações). Estão no limite de um pensamento pelas imagens e entre-imagens. São imagens-fluxo, imagens-processo.

Diante dessas propostas, o “ex-espectador” duvida. Ele se coloca a questão da percepção, da memória, do corpo, da sensorialidade: são imagens fixas ou em movimento? Que estados intermediários existem entre movimento e imobilidade, analógico e digital, o olho e a mão? O movimento e o tempo deixam rastros, se tornam visíveis? Diante de milhares de imagens já produzidas, o que é “novo”?

PLATAFORMA PARA O DIÁLOGO

No contexto deste Videobrasil, foram dadas condições para que os criadores pudessem se posicionar não somente por meio de sua produção (as obras propriamente ditas), mas também e especialmente pelo uso de uma eficaz ferramenta do discurso: o diálogo. Adotando a entrevista como suporte, esta publicação promoveu encontros inéditos para discutir e jogar luz sobre o trinômio Cinema+Vídeo+Arte. Provocados, artistas e curadores responderam à altura.

Peter Greenaway, em entrevista a Carlos Adriano, afirma: “O cinema pode ser tão facilmente desconstruído em seus componentes que nunca alcança autonomia, e agora imagino que seja muito tarde – os animais pequenos, rasteiros, superaram o dinossauro, cujas extravagâncias arrogantes o deixaram moribundo”. Jean-Paul Fargier, convocado a se posicionar sobre o tema, compara: “Considerem-se dois rios, chamados Arte e Cinema. Para que Oceano eles confluem hoje? Isso está muito claro, mas não costuma ser dito: o oceano onde arte e cinema misturam suas águas é a Televisão”.

Entre um discurso e outro, ressonâncias surpreendentes, mas não improváveis. Kenneth Anger, em conversa com o curador Rodrigo Novaes, diz: “Lúcifer é meu padroeiro. O rebelde original. Todo artista deve encontrar seu próprio Lúcifer”. Edgard Navarro para o escritor Antonio Risério: “Toda lógica tem que ser pulverizada. O cinema foi também uma vítima de minha inserção no mundo psicodélico, porque eu precisava desmontar, desarrumar e mostrar o quanto minha cabeça estava desarrumada. As palavras que se fodam. Lógica, foda-se”.

Em alguns momentos, o retorno proposto pelos artistas surge na forma de pura imagem e ação visual. Tanto Peter Greenaway quanto Detanico e Lain criaram intervenções gráficas inéditas, exclusivas para este catálogo, que discutem a expansão do fazer cinema para outros sistemas e modos de expressão (no caso do cineasta britânico) e a idéia de “limite” no meio impresso, sobre o suporte livro (no caso da dupla brasileira).

Esta publicação pretende permanecer não apenas como uma documentação, mas como um objeto que reflita os embates, os encontros e as decisões que marcaram o processo de construção deste Videobrasil. Nesta sua 16ª edição, o diálogo funciona como verdadeira plataforma. Meio estável, porém permeável, no qual se dão as trocas e a construção de um novo discurso para as infinitas confluências entre o cinema, o vídeo, a arte e a vida.

*O título deste texto se inspirou no livro de Maurice Blanchot A conversa infinita.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. "16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil": de 30 de setembro a 25 de outubro de 2007, p.28-31, Edições SESC SP, São Paulo-SP, 2007.

Texto de apresentação 2007

ZONA DE REFLEXÃO

Fluxo Perene

Zona de Reflexão é a instância em que os conteúdos e os temas integrantes dos outros dois eixos centrais do 16o Videobrasil (Panoramas do Sul e Cinema+Vídeo+Arte) são colocados em perspectiva, no sentido tanto de amadurecer idéias e posições que naturalmente já perpassam as escolhas do Festival, quanto de criar condições para a eclosão de abordagens inéditas e produtivas.

Este processo de adensamento acontece dentro de um modelo de fórum, em que vozes de características diversas, em confrontos muitas vezes inesperados, são convocadas a se manifestar e refletir não apenas sobre a produção contemporânea, mas especialmente sobre as bases em que ela se dá hoje e que fatores são determinantes para suas desejadas ressonâncias no sistema da arte em nível internacional.

As ações Encontros do Sul e Seminários Videobrasil, promovidas no contexto da Zona de Reflexão, ratificam o projeto de maior permanência do Videobrasil – apesar de apoiado na mostra bianual, não pretende se tornar restrito a ela, mas potencializar seus produtos e conquistas artísticas, teóricas e críticas. A consolidação deste eixo reafirma, ainda, a posição de referência que o Festival conquistou não apenas entre artistas, críticos, curadores e profissionais do meio de arte, mas também no meio acadêmico.

Esse movimento de aproximação em direção à academia se manifesta, neste Videobrasil, por meio da parceria firmada com a Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) para a realização dos Seminários Videobrasil. Em quatro mesas, serão discutidos conceitos centrais para o entendimento da arte eletrônica hoje, em diálogo com o tema curatorial desta 16a edição (os limites fluídos entre o cinema, o vídeo e a arte). São eles: hibridizações, mídias e experimentações, ações e contemplações, narrativas múltiplas.

ENCONTROS DO SUL

A série Encontros do Sul adota o formato de mesas interdisciplinares para discutir as articulações do trinômio: residências artísticas x nomadismo x coletivos e espaços autogeridos. Arte e espaço nômade reúne representantes do Videokaravann (programa de artistas árabes), Circuitos em Vídeo (grupo que divulga registros de ações artísticas independentes) e Capacete Entretenimentos (responsável por um programa de residências móveis). A mesa residências artísticas – Espaços de criar discute os programas de residência da Associação Cultural Videobrasil, Instituto Sacatar, Capacete, FAAP, Secretaria de Cultura da Bahia, Conselho Britânico, Consulado da França, WBK Vrije Academie (Holanda) e Gasworks (Reino Unido). Espaços de memórias, referências e articulações investiga os espaços culturais dirigidos por artistas, como a Cinemateca do Tânger (Marrocos), o TEIA, coletivo mineiro de pesquisa e criação audiovisual, e o CEIA (Centro de Experimentação e Informação de Arte) de Belo Horizonte. Veículos e espaços virtuais debate ciberespaço e difusão de arte com convidados da distribuidora alternativa Docfera (Argentina), do coletivo antipublicidade Kontra (Turquia) e da fundação para o desenvolvimento da arte eletrônica la diferencia.co (Colômbia).

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. "16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil": de 30 de setembro a 25 de outubro de 2007, p.16-17, Edições SESC SP, São Paulo-SP, 2007, p. 222 - 223.

Ensaio Ximena Cuevas, 2007

ZONA DE REFLEXAO | Homenagem a Príamo Lozada

Em uma certa manhã de domingo, liguei para o Príamo: “Meu querido, o que você está fazendo?” “O canal Cartoon foi invadido pelo silicone, estou aqui vendo umas garotas horrorosas com os lábios injetados de silicone, horríveis, parecem prostitutas.” Fui à casa dele naquela noite. Tomamos vinho tinto. Ele ainda ria das garotas do canal Cartoon; conversamos sobre banalidades, fofocamos sobre amigos comuns e, depois, sobre o mundo das artes, fizemos piadas sobre a política no México; em seguida ele me mostrou, em seu laptop, os sketchbooks do jovem artista Gilberto Esparza, então contei a ele que meu sobrinho de dezesseis anos estava trabalhando com vídeo. “Ótimo, sangue novo, quero ver”, e passamos a falar nas pinturas em formato grande do Louvre, e ele falava de Delacroix de maneira apaixonada. Príamo se interessava por muitas coisas, tinha profunda curiosidade sobre tudo, era um eterno apaixonado e encarava a vida como diversão. Tinha voz melódica; movimentos suaves, felinos. Sua figura, longilínea. Era um homem atraente que exalava paixão. Estar com ele era celebrar a vida. O ambiente que o cercava era sempre uma festa. Em seus lábios, sempre um sorriso doce.

Príamo era energia pura – até mesmo sua morte trágica foi altamente romântica. Seu lindíssimo corpo caiu de uma sacada em Veneza, a cidade mais romântica do mundo: não uma cidade qualquer, ou um corpo qualquer, ou uma sacada qualquer – mas a imagem perfeita ao final. Voou como um anjo desenhado por William Blake. Príamo só se aborrecia com a mediocridade – e nem mesmo sua morte foi medíocre. Foi para Veneza para grandes projetos, para fazer o primeiro Pavilhão Mexicano, com o artista Rafael Lozano Hemmer. E tinha tudo para ser grandioso. E, segundo a crítica, é realmente grandioso. Príamo tinha uma parceria com Barbara Perea chamada Hélix Curatorial Projects. Com ela fez todos os seus últimos trabalhos. Era generoso, sempre aberto ao diálogo. O trabalho em parceria significava, para ele, enriquecer o seu conhecimento. Tinha muita vida para dar. Eu tinha ido à casa dele três semanas antes para me despedir e desejar-lhe toda a sorte do mundo em Veneza. Ele estava fazendo um experimento para uma open house – queria demonstrar que a arte coexiste com o cotidiano. Na decoração de sua casa, obras digitais de jovens artistas, como Tania Candiani. Queria associar a arte à intimidade da vida. Fundamentada na verdade. Príamo era um visionário com olhos de artista; nunca foi um curador de espírito frio que se baseava em teorias. Lia muito, mas era, acima de tudo, um curador emocional, fazendo do seu trabalho uma obra de arte de excelente qualidade. Tinha a paixão do artista. Era rebelde, jamais satisfeito com o establishment, e lutava pelos seus pontos de vista – mesmo que tal luta o deixasse à margem dos grupos de poder.

Príamo estimulou a geração atual de artistas eletrônicos no México, nos emprestou confiança, solidariedade, proteção. Trouxe visibilidade para a arte em vídeo, para a arte do som, para a web arte, para as esculturas e instalações eletrônicas, para a arte gráfica digital... Abriu o caminho para todos nós. Agora, me assusta saber que as gerações futuras não terão seus olhos e sua paixão. É clichê dizer que, quando uma pessoa morre, ela deixa um vazio atrás de si – mas a verdade é que a ausência de Príamo Lozada deixa um enorme vácuo na arte eletrônica do México, muito difícil de ser preenchido.

No ano passado, ele me convidou para trabalhar com ele em um projeto. Eu recusei, dizendo que estava passando por uma fase de crise criativa. Não aceitou minha recusa. “Vamos nos divertir, por favor, aceite.” E realmente nos divertimos – trabalhar com ele era sempre ter feedback, e sempre crescer. Em novembro de 2006, a exibição foi inaugurada. Seria o último grande trabalho de arte eletrônica que Príamo faria no México, sob o título Plataforma, na cidade de Puebla. A mostra foi montada em uma fábrica do século XIX que havia sido abandonada. Foi surpreendente o que ele conseguiu fazer (em parceria com Barbara Perea) – uma das mostras de arte mais maravilhosas que já vi, por si só uma obra de arte, como sempre. Agora, à distância, é estranho ver como o discurso de Príamo estava adiante de sua própria morte – todos os trabalhos eram a respeito da presença na ausência ou da ausência na presença.

Príamo tinha sempre seus lindos olhos abertos para as surpresas da vida. Tinha um excelente senso de humor, e se divertia com a arrogância do mundo da arte. “Que divertido!” – uma expressão que usava com freqüência. Era sempre generoso. Seu cumprimento nunca se resumia a um simples “Oi” ou “Olá”. Ele se aproximava das pessoas com movimentos suaves e dizia “Como vai?” – esse era o seu cumprimento, sempre. Meu queridíssimo Príamo – guardo com muito carinho cada momento que passei com você. “Como vai?” Sinto tanto a sua falta, Príamo.

A presença na ausência. Hoje, todos aqueles que tiveram a sorte de estar próximos de Príamo guardam como relíquia sua presença. Temos lembranças do amor e, como seu legado, devemos nos lembrar, também, que a vida é para ser celebrada. Peço a Príamo que irradie sobre mim sua paixão pela vida e sua curiosidade aguçada até para as coisas mais insignificantes. Obrigada, Príamo, por sua alegria e por sua visão.

PRÍAMO LOZADA (1967-2007), curador radicado no México, dirigiu o Laboratorio Arte Alameda e foi co-curador do Pavilhão Mexicano da 52a Bienal de Veneza.
 

XIMENA CUEVAS (1963) é artista mexicana de novas mídias.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. "16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil": de 30 de setembro a 25 de outubro de 2007, p.16-17, Edições SESC SP, São Paulo-SP, 2007, p. 236 - 237.

Ensaio Andre Mesquita, 2007

ZONA DE REFLEXAO | Homenagem a Ricardo Rosas

Como falar de Ricardo Rosas (1969-2007) sem comentar a imensa falta de sua presença entre nós? Tarefa difícil. Antes de dar início a este texto, me deparei com a obrigação de escrever sobre o legado de Ricardo aos coletivos brasileiros, atuantes nas tramas da arte e do ativismo. O vigor e a genialidade de sua trajetória como um dos primeiros teóricos a abordar este assunto com dedicação nos deixam um desafio ainda a ser enfrentado: a constituição de um programa que combine reflexão crítica, produção artística autogerida, engajamento político e a construção de um diálogo constante com os movimentos sociais.

Nascido em Fortaleza, Ricardo chegou em São Paulo nos anos 1990 com a finalidade de ser um grande escritor. Optou por não cursar faculdade e seguiu carreira como funcionário público. Dividindo o tempo entre trabalho e escrita, produziu uma vasta pesquisa independente que multiplicou seus interesses pela arte política, literatura, sexualidade, cinema e quadrinhos. Foi buscar em um dos conceitos-chave de Deleuze e Guattari, criado e recriado na obra Mil Platôs [Mille Plateaux], a inspiração para a o nome da revista eletrônica que lançaria em 2000: rizoma.

As seções editoriais de rizoma formam linhas de fuga que se entrecruzam diante de nossos olhos, lançam planos de ação textual em permanente transformação. Não é à toa que os escritos e as traduções de Ricardo publicados no site rizoma apresentam um pensamento transversal, que rompe com a linearidade e compõe uma diversidade de temas e pontos de discussão. São textos que passam pelos coletivos de arte, mas que estabelecem contatos com anarquismo, teorias conspiratórias, esoterismo, literatura marginal, anarquitetura, net ativismo, afrofuturismo e, mais recentemente, suas pesquisas sobre os usos e suportes da gambiarra e da tecnologia recombinante na arte e na vida.

Aliás, sobre tecnologia, cabe lembrar que Ricardo foi um dos organizadores do festival Mídia Tática Brasil, desdobramento do festival holandês Next Five Minutes. Durante quatro dias, o festival brasileiro reuniu teóricos e produtores que discutiram o uso político de ferramentas midiáticas mais acessíveis, inclusão digital, reflexões sobre os meios de produção e organização em rede fora dos grandes mercados. Nesse contexto, Mídia Tática Brasil foi também um espaço de encontro real entre os coletivos de artistas e ativistas. Estranho para alguns, provocador para muitos, as relações entre esses dois campos autônomos de produção coletiva, e suas ações nos interstícios do cotidiano, criaram um importante cerne teórico desenvolvido por Ricardo nos anos seguintes. Ricardo via o fenômeno recente dos coletivos artísticos como uma mistura de originalidade e espontaneidade, na qual as transformações decorrentes das políticas neoliberais e do capitalismo contemporâneo produziram focos de consciência coletiva no Brasil, com grupos que passaram a criar, fora das instituições, “performances, intervenções urbanas, festas, tortadas, filmagens in loco de protestos e manifestações, ocupações, trabalhos com movimentos sociais, culture jamming e ativismo de mídia”. “Aqui, o ‘espontâneo’ não exclui um pensamento estratégico e um planejamento de ação, mas cria um elemento que faltava na dita ‘arte pública’, acrescida de um diálogo com o real, da quebra do protocolo ‘sério’ da arte convencional, da participação do público, da temporalidade volátil, da ênfase nas sensações e interpretação.” A troca generosa de Ricardo com os artistas pela rede, e também pela articulação de anos com teóricos e ativistas espalhados pelo mundo, incentivava uma reflexão produtiva sobre as ações e os formatos nos quais os coletivos atuam. Seus ensaios insistiam menos em definir o que é a arte do nosso tempo, mas da renúncia ao próprio “status” de arte, “um desapego e uma entrega incondicional à vida”, colocando o “artista” (referindo-se muito mais às práticas artísticas do que à idéia de gênio individual) como “pensador, criador de estratégias de ação, o arquiteto de atos que vão reverberar”, tomando o aprofundamento conceitual como um exercício para aqueles coletivos que trabalham com comunidades em situações de conflito, criando ações simbólicas ou estabelecendo trocas de experiências que compartilhem o comum.

Gostaria de retomar o desafio proposto inicialmente no texto. Como levar adiante um programa teórico-prático engendrado pelos coletivos brasileiros? Sempre digo que os artistas-ativistas devem preocupar-se com a construção de uma história dissidente de sua existência, uma história potencialmente transformadora e que não corrobora com o discurso oficial e tendencioso do sistema das artes e da mídia. Ou ainda pior: de ficarmos atentos ao perigo de sermos cooptados e transformados em mão-de-obra barata pelas instituições, ou instrumentalizados pela colaboração “forçada e vigiada” do capitalismo flexível. Ricardo mostrou que a construção da história dos coletivos de arte é plural e autônoma, e deve ser produzida entre aqueles que enxergam na cooperação e na auto-organização os verdadeiros elementos de resistência. A contribuição de Ricardo Rosas ainda floresce, seu exemplo deve ser seguido.

RICARDO ROSAS (1969-2007) foi editor do Rizoma.net e organizador do festival Mídia Tática Brasil (2003). Atuou como ativista, escritor, tradutor e crítico.
ANDRÉ MESQUITA é editor do site Rizoma, participante da Rede Coro e de diversas iniciativas ativistas.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. "16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil": de 30 de setembro a 25 de outubro de 2007, p.16-17, Edições SESC SP, São Paulo-SP, 2007, p. 240 - 241.

Texto institucional Danilo Santos de Miranda, 2007

O Paradoxo da Cultura e a Animação Cultural

O Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil realiza sua 16ª edição num novo endereço. Depois de ser acolhido no SESC Ipiranga, no Vila Mariana e no Pompéia, agora o Festival acontece na unidade provisória do SESC Avenida Paulista, lugar que se prepara para ser um centro cultural dedicado às linguagens do corpo, da arte e da tecnologia.

Já imbuída desse espírito, esta unidade do SESC tem realizado uma programação diversificada em formatos não convencionais, ora servindo como espaço de experimentação, ora como tempo de montagem de novos trabalhos. No coração de São Paulo, o interior deste prédio do SESC vive uma arquitetura de transição, móvel, inconclusa, impermanente, fazendo-se existir de uma nova maneira a cada apropriação cultural. Como obra aberta, espelhando a própria contemporaneidade, realizamos o Videobrasil no SESC Avenida Paulista.

Neste ano, completamos quinze anos de parceria entre a nossa instituição e a Associação Cultural Videobrasil. Durante esses anos, ampliamos o diálogo do Festival com a sociedade, enfatizando a circulação das obras; legitimamos seu viés político pelo mapeamento de novas zonas de contato geográfico e cultural; fixamos a memória das produções antológicas e tensionamos as fronteiras estéticas da imagem eletrônica, provocando interfaces com as outras linguagens artísticas. Desse modo, podemos dizer que hoje o Festival não é apenas o próprio evento, mas um conjunto de ações deflagrado pelo evento, ou seja, sua relevância sociocultural está sobretudo no que poderíamos chamar de entre-eventos, um espaço de tempo de dois anos dedicado à produção, pesquisa, documentação e difusão de projetos artísticos surgidos do contato com as novas tecnologias de comunicação.

Assim, contribuindo para a formação do público, dos criadores e dos pensadores da cultura, o Festival, em seus atos e entreatos, desenvolve-se numa dinâmica cultural que ora pulsa em contração, ora em expansão, ora em crise, ora assimilação, ora em lampejo, ora braseiro, ora em fogo, ora em terra. Circunscrito num amplo programa de Ações Culturais do SESC, a dinâmica desse pulso cultural é a própria maneira do SESC animar (no sentido de dar alma) a cultura.

A cultura, em seu sentido antropológico, é feita de tradição, resistência, tanto quanto de mistura, contato e inovação: é a sua condição, seu paradoxo de existência. Portanto, todo programa sério de animação da cultura precisa dar conta desta tensão. No SESC, junto à alfabetização realizada pela Internet Livre, com seus 150 mil atendimentos/mês, nosso Programa de Cultura Digital desenvolve a iniciação criativa por meio de oficinas e também incentiva o consumo da arte e a reflexão da linguagem. O Mobilefest, o Game Cultura, o Seminário F.A.Q.? e o Pensar Livre – Cultura e Software Livre são algumas dessas nossas ações, para destacarmos as mais recentes.

Portanto, o Videobrasil sintetiza o nosso compromisso com os valores democráticos, conjugando preocupações com a qualidade e com o acesso aos bens simbólicos produzidos, ou seja, com a cultura e com a sociedade. E esta socialização da cultura, movida por um compromisso com a vida pública, em lugares informais e tempos de lazer, é o que chamamos de educação permanente.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. "16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil": de 30 de setembro a 25 de outubro de 2007, p.16-17, Edições SESC SP, São Paulo-SP, 2007.