Os homens-bomba que inventaram a internet

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postado em 18/10/2013
Entre anedotas e reflexão histórica, Goulart de Andrade, Marcelo Tas, Fernando Meirelles e Marcelo Machado relembram anos 80 no segundo encontro dos Programas Públicos do 18º Festival

“Éramos homens-bomba e queríamos revolucionar a televisão do milênio”. A fala de Marcelo Tas, feita durante encontro realizado ontem, dia 17 de outubro no Sesc Pompeia (clique aqui para ver imagens do evento), não trai a ambição do Olhar Eletrônico, grupo que reunia também Fernando Meirelles, Marcelo Machado, Paulo Morelli e Beto Salatini e, mais tarde, Dario Vizeu, Renato Barbieri e Toniko Melo. Segundo ele, o Olhar Eletrônico não queria apenas transformar a TV do Brasil, mas a própria linguagem televisiva em sentido amplo.

O mediador do encontro, Gabriel Priolli, lembrou o contexto de surgimento do Olhar Eletrônico, que aconteceu paralelamente à criação do coletivo TVDO: em meio à redemocratizaçãoo do país, no início dos anos 80, uma mobilização de universitários buscava ao mesmo tempo se inserir na televisão e subvertê-la. Isso criou um impasse para o grupo. “Criamos uma produtora para fazer vídeos que ninguém compraria”, explicou o cineasta Fernando Meirelles, outro participante da conversa. “Então o Videobrasil foi o primeiro espaço de exibição e até de inserção profissional para vários de nós”. Nesse sentido, Marcelo Tas lembrou de uma iniciativa de Meirelles para vender produtos do grupo: ele chegou a fazer uma versão editada de um vídeo do coletivo-produtora, já com os pontos de corte para inserção de comerciais, tendo como objetivo conquistar a “Vênus platinada”, que é como se referiam à TV Globo.

O veterano do encontro, o jornalista e apresentador Goulart de Andrade, ajudou a rememorar o período, já que ele foi o grande responsável pela iniciação profissional tanto dos jovens do Olhar Eletrônico quanto de personalidades da mídia que se tornariam igualmente grandes, como Mino Carta e Fausto Silva. Fascinado pela verve trânsfuga do grupo, Goulart foi bem ousado na maneira de apresentar aqueles jovens “videomakers”: sem aviso, lançou-os ao vivo em seu programa 23ª Hora, na TV Gazeta. Mais tarde, o grupo viria a compor sua equipe de reportagem. “A Globo não sabia lidar com aquela programação, então é claro que eu iria incorporar aquilo ao [meu programa] Comando da Madrugada”, diz ele. “Onde uns viam bagunça, eu via criatividade”.

A vênus platinada: amor e ódio

Enquanto a Globo naquele período investia em efeitos visuais e era mais hegemônica do que nunca, a proposta dos programas ao vivo de Goulart era justamente a desconstrução deste padrão. “Na verdade, eu até gostaria de algo mais organizado, porque a gente na época tinha já uma ilha de edição e ela fazia parte da natureza de nosso trabalho. Mas parecia que era justamente isso que parecia que ele queria. Me impressionava porque Goulart parecia ter controle sobre aquele caos”, afirmou Marcelo Machado, diretor do vídeo premiado “Do outro lado da sua casa”, um marco por dar voz e protagonismo a moradores de rua.

E a desordem passou a ser incorporada ao trabalho daquele grupo. Marcelo Tas relembra, por exemplo, sua cobertura da Copa do Mundo no México, em 1986 quando Nabi, o técnico da seleção brasileira, proibiu os jogadores de fazerem declarações políticas. Na pele do repórter Ernesto Varela, Tas, com muito humor, desafiou o treinador em uma entrevista. "Ele começou a ficar nervoso. O Lucas Mendes, que era o repórter do Fantástico, ligou a câmera dele e começou a gravar a gente discutindo. Como o Lucas tinha satélite, agilidade e a Rede Globo toda por trás, ele gerou aquela matéria e entrou naquele dia, um domingo, no Fantástico. A minha veiculação demorou uns dois, três dias - a gente editou e tal. Mas quando a minha entrevista foi ao ar, já tinha uma enorme repercussão, a entrada no Fantástico foi como um teaser", completa.

Outros tempos

Ernesto Varela “nasceu”, criado pelo coletivo Olhar Eletrônico, e foi incorporado por Goulart de Andrade em seu programa.  Ele, o personagem, é uma espécie de ícone do tipo de jornalismo que eles perseguiam, que queria desafiar de maneira espirituosa, criticar políticos, “tendo o Maluf como alvo principal. Era ele que queríamos pegar. Mas se nem a Interpol conseguiu...”, brinca Marcelo Tas.

Uma história que denota muito bem a liberdade com que eles criavam sua linguagem naquela época foi lembrada por Fernando Meirelles: para tornar divertida a apresentação de seu telejornal, ele fizeram as falas do repórter ao lado de um carro, que supostamente estava quebrado e impossibilitava chegar ao local da pauta. A brincadeira durou as duas horas do programa, e custou muito caro: eles não se lembraram que o fabricante do carro era o principal anunciante do programa, que desistiu do apoio.

Ao mesmo tempo, a Olhar Eletrônico – que ora é chamada de produtora, ora de coletivo, ora de empresa, no encontro de ontem – tinha um certo interesse acadêmico que, para Machado, beirava as raias da pretensão. Por iniciativa de Dario Vizeu, que foi chamado de “mentor, curador e curandeiro do grupo”, eles promoviam grupos de estudo que recebiam personalidades como Antunes Filho, Walter Clark, Olgária Mattos e Mino Carta. Esse era, para Gabriel Priolli, um dos diferenciais do Olhar em relação ao TVDO, outro coletivo/produtora de vídeo da época: o Olhar tinha um certo empenho de pesquisa teórica.

A internet e outras invenções

Uma iniciativa absolutamente incomum sintetiza o frescor daquele movimento.  Quando eles deviam entregar a Goulart de Andrade o último programa a ser exibido, eles captaram a imagem de um grande aquário. Apenas isso. Por duas horas. E o programa de fato foi exibido, sendo entrecortado por uma voz insinuante que, sobre fundo musical de Brian Eno, fala frases como “está se sentindo só? Ligue para este telefone” – o telefone da casa da mãe do Meirelles, onde eles estavam reunidos.  A pessoa era atendida e colocada em contato com outra que tinha ligado antes e deixado seu nome e telefone. “Nós inventamos a internet”, provoca Marcelo Tas.

Mas havia outras invenções. Em resposta a uma pergunta de Gabriel Priolli, Fernando Meirelles acredita que há alguns detalhes no feitio do telejornalismo atual que são herdeiros do modo como eles realizavam seus produtos já na década de 80: a edição de depoimentos sem disfarçar cortes usando quadros de detalhes (como era corrente até então), o uso do panorama da cidade como cenário e o apresentador que percorre a redação durante o telejornal são alguns deles.


Clique aqui e saiba como foi a discussão do dia anterior com Zé Celso, Tadeu Jungle, Pedro Vieira e Walter Silveira. Os encontros dos dias 16 e 17 de outubro foram as primeiras atividades dos Programas Públicos do 18º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videbrasil. 

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Canal VB: Assista aos depoimentos de Fernando Meirelles, Marcelo Tas, Marcelo Machado e Goulart de Andrade, onde discutem o início de suas práticas em linguagem vídeo e o espaço criado pelo Videobrasil no país desde os anos 1980.