VIDEOBRASIL 40 | 1º Videobrasil

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postado em 04/10/2022

 

A difusão do vídeo e o pioneirismo do Videobrasil

 

Entre os dias 8 e 14 de agosto de 1983 foi realizado em São Paulo, no Museu da Imagem e do Som (MIS), o I Festival de Vídeo Brasil*. Voltado à recente e inovadora produção em vídeo que se difundia pelo país - decorrente de transformações tecnológicas, mas também políticas e culturais -, o evento foi um marco no cenário artístico nacional. Com uma programação intensa realizada ao longo de sete dias, apresentou mesas de debate, mostras de tapes (mídias analógicas de produção de vídeo utilizadas à época), uma feira de vídeo, performances e premiação. Com um olhar contestador, ainda em tempos de ditadura, e espírito um tanto underground, o festival dava a largada à trajetória de 40 anos do Videobrasil - que será celebrada em 2023 com a realização da 22ª Bienal Sesc_Videobrasil.  

 

 

Capitaneada por Solange Oliveira Farkas, jovem soteropolitana recém-chegada à cidade de São Paulo, a criação do festival teve o incentivo de importantes nomes do cenário cultural brasileiro. Entre eles, o célebre fotógrafo e cineasta Thomaz Farkas (1924-2011), à época dono da empresa Fotoptica, que começava a comercializar equipamentos de vídeo no Brasil. “No início dos anos 1980 o vídeo estava surgindo como um equipamento. Existiam o cinema e a televisão, mas não o que chamamos de vídeo”, contou Solange em entrevista recente à revista arte!brasileiros. A produção brasileira anterior a esse período, nos anos 1970, era basicamente circunscrita ao núcleo do professor Walter Zanini que, após adquirir no exterior um equipamento para o MAC-USP, cedeu o uso para artistas como Regina Silveira, Wesley Duke Lee, Carmela Gross, Julio Plaza, José Roberto Aguilar, Anna Bella Geiger, Leticia Parente, Sônia Andrade, Paulo Herkenhoff e Fernando Cocchiarale - considerados hoje os pioneiros do vídeo no Brasil.

Com a democratização do formato - em momento de crise do Super 8 predominante até então -, outros artistas e grupos passaram a experimentar novas linguagens. Assim, mais do que um espaço de exposição, o festival se tornou ele mesmo um incentivador para a produção destes jovens artistas independentes. “O Thomaz sacou que ali tinha algo grande e me perguntou se eu não queria fazer uma mostra, ou algo do tipo, que estimulasse os artistas a usarem o vídeo e mostrarem essa produção.” E foi aí que entraram, na programação do I Festival de Vídeo Brasil, coletivos como TVDO e Olhar Eletrônico e uma série de diretores e artistas como Carlos Ebert, Eduardo Abramovay, Eduardo Escorel, Fernando Meirelles, Flavia Moraes, Isa Castro, Noilton Nunes, Rita Moreira, Ruth Slinger, Tadeu Jungle, Toniko Melo e Walter Silveira - muitos dos quais se consagrariam nas décadas seguintes.

 

 

As manchetes na imprensa da época explicitam um pouco do que significava o evento: “Vídeo perde o mistério e já tem festival”, anunciava a Folha de S.Paulo; “Da videomania para uma linguagem alternativa”, grafava o Estadão; no Jornal do Brasil, por sua vez, o título era “Nova onda na Pauliceia”; e no Globo, “Festival no MIS aponta novos caminhos para o vídeo no país”. 

A relação do vídeo - e do festival - com a TV tinha diferentes nuances. Por um lado, umas das mesas de debate era justamente chamada “Memória de TV” e tratava da necessidade de se preservar o que havia de mais significativo na produção histórica veiculada neste meio. Havia ainda o fato de algumas produtoras de vídeo estarem começando a galgar espaço - ainda ínfimo - nos canais abertos, o que foi tematizado na mesa “TV - Técnica e Linguagem”. Mas, de modo geral, o tom do festival era de crítica ao monopólio da TV aberta, terreno praticamente fechado a essa nova arte. O vídeo ainda buscava um canal de exibição coerente com o que se anunciava como uma nova linguagem, como explica Solange. “O preconceito contra o vídeo, até mesmo dentro do próprio cenário das artes, era pesadíssimo”, conta ela. O festival surgia, portanto, como um desses canais de exibição possíveis. 

Competição, mostras e censura

Para a Mostra Competitiva da edição foram selecionados 36 trabalhos (7 VHs e 29 U-Matic) entre os 78 inscritos. Os temas abordados eram diversos, desde a cena punk de São Paulo (Garotos do subúrbio) até a eleição de Leonel Brizola como governador do Rio (Arquive-se), passando pela situação de moradores de rua (A Dama do Pacaembu) ou temas ligados ao futebol (Teleshow de Bola), música (Gang 90: Eu sei mas eu não sei) e experimentos mais ficcionais (Brasil, Paula Z). O grande vencedor da edição foi Caderneta de Campo, um apanhado de manifestações do grupo de teatro Oficina Uzyna Uzona, liderado pelo diretor José Celso Martinez Corrêa: ensaios, passeatas para impedir a desapropriação do prédio onde ensaiavam e a polêmica participação de Zé Celso no Festival de Cinema de Gramado. Assinam a direção da obra Catherine Hirsch, Edson Elito, Noilton Nunes e Teatro Oficina. 

Também foram premiados Marly Normal, de Fernando Meirelles, Marcelo Machado e Olhar Eletrônico, um vídeo ficcional que mostra a rotina de uma escriturária em São Paulo – para quem um aparelho de TV ameniza a solidão e funciona como uma máquina dos sonhos; Frau, de Isa Castro, Tadeu Jungle, TVDO, Videoverso e Walter Silveira, trabalho que mostra de maneira debochada a participação de Zé Celso no Festival de Cinema de Gramado, no qual seu filme O rei da vela concorria; Selene, de Goffredo Telles Neto e Mari Pini, vídeo que registra performance que evoca uma ópera de Giuseppe Verdi; e Quem Kiss teve, documentário de Tadeu Jungle, TVDO e Videoverso sobre a apresentação da banda Kiss no Brasil, em 1982.

Para além da Mostra de Tapes em Concurso, uma mostra com obras fora de competição destacava outras dezenas de vídeos sobre os mais diversos temas e com as mais variadas linguagens - de reportagens à “videopoesias”. Por fim, uma pequena mostra paralela destacou alguns trabalhos que “experimentam tendências importantes da produção mais recente” e, destacadamente, obras sobre a produção do cineasta Glauber Rocha, que havia morrido apenas dois anos antes. Estavam ali um depoimento de Glauber colhido em Lisboa em 1981, dirigido por Viva Auder, e um longo programa realizado por Paula Gaitán e pela TV Bandeirantes. Segundo o texto do catálogo do festival, a obra de Glauber abriu “novas perspectivas para outra utilização do vídeo”.       

 

 

Dadas as temáticas dos trabalhos, não é difícil imaginar que o festival não passou despercebido aos olhos do governo. Vivendo os derradeiros anos da ditadura civil-militar que assolou o Brasil por duas décadas (1964-1985), o evento precisou submeter trabalhos à censura e com ela teve problemas. O Programa do Ratão, por exemplo, obra que reeditava satiricamente o filme institucional O esclarecimento sobre tóxicos, produzido anos antes na USP, foi requisitado pelo órgão de controle de Brasília e não pôde ser exibido.

Momento marcante do evento foi também a performance que abriu o I Festival de Vídeo Brasil, no próprio dia 8. Criada por Otávio Donasci, Cavaleiro do Apocalipse usava a linguagem do vídeo-teatro para retratar “o desespero da situação mundial e/ou brasileira”. Concretamente, o artista partiu da avenida Paulista montado em um cavalo e, com um manto negro nas costas e monitor de TV acoplado à cabeça, percorreu as ruas de São Paulo até o MIS. Como brincou o artigo do Jornal da Tarde à época, o Cavaleiro do Apocalipse anunciou não o fim dos tempos - citado por Donasci -, mas sim a abertura do I Festival de Vídeo Brasil.


Por Marcos Grinspum Ferraz

*a nomenclatura utilizada para intitular a principal mostra organizada pelo Videobrasil, hoje chamada Bienal Sesc_Videobrasil, passou por adequações ao longo dos anos. As mudanças se deram a partir da percepção dos organizadores sobre as características de cada edição, especialmente no que se refere ao seu formato; duração; periodicidade; parcerias com outras empresas e instituições; e à expansão das linguagens artísticas apresentadas. Os principais reajustes no título das mostras foram: inserção do nome da empresa parceira Fotoptica entre a 2ª (1984) e a 8ª (1990) edições; a inclusão da palavra “internacional” entre a 8ª e a 17ª (2011) edições, a partir do momento em que o evento passa a receber de modo intensivo artistas e obras estrangeiras; o uso do termo “arte eletrônica” entre a 10ª (1994) e a 16ª (2007) edições, quando se percebe que a referência apenas ao vídeo não dava conta dos trabalhos apresentados; a inclusão do nome do Sesc, principal parceiro da mostra nas últimas três décadas, a partir da 16ª edição; e a substituição de “arte eletrônica” por “arte contemporânea” entre a 17ª edição e a 21ª (2019) edições, a partir do momento em que o foco se expande para as mais variadas linguagens artísticas. A mais recente mudança se deu em 2019, na 21ª edição, quando o nome festival é substituído por bienal, termo mais adequado a um evento que já vinha sendo realizado bianualmente e com uma duração expositiva de meses, não mais semanas.

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Imagens: Acervo Histórico Videobrasil

1. Cartaz do primeiro Videobrasil, por Kiko Farkas.

Galeria 1
1. Artistas da Olhar Eletrônico e da TVDO na premiação.
2. Público presente no espaço expositivo do MIS.
3. A videoinstalação "Vídeo Chicken”, de Ney Marcondes, Paulo Priolli, Tadeu Jungle, Videoverso e Walter Silveira.
4. Público assiste a um dos debates do evento.
5. José Celso Martinez Corrêa.
6. Marcelo Machado e Solange Oliveira Farkas.

Galeria 2
1. Trecho de “Cadernetas de Campo", vencedor da premiação, de Catherine Hirsch, Edson Jorge Elito, José Celso Martinez Corrêa, Noilton Nunes e Teatro Oficina Uzyna Uzona.
2. “Garotos do Subúrbio”, de Fernando Meireles (Olhar Eletrônico).
3. “Marly Normal”, de Fernando Meireles e Marcelo Machado (Olhar Eletrônico).
4. “Mocidade Independente – Fuori Série”, de Ney Marcondes, Paulo Priolli, Tadeu Jungle e Walter Silveira (TVDO).
5. “Quem Kiss teve”, de Tadeu Jungle, TVDO e Videoverso.
6. "Teleshow de bola", de TVDO e Videoverso.