Depoimento Jalal Toufic, 2003
Toda obra de arte, assim como todo bom livro, é uma colaboração através do tempo, no sentido de que, quando eu escrevo sobre Francis Bacon, se o trabalho for bom, ou melhor, quando Deleuze escreve sobre Francis Bacon, “Francis Bacon, A Lógica da Sensação”, trata-se de uma colaboração entre Deleuze e Francis Bacon. Mesmo o que Bacon fez no passado era uma colaboração, quer dizer, Deleuze precisa que certas coisas fossem feitas na pintura para que ele pudesse escrever um livro. E isto, não no sentido cronológico, estava sendo enviado para Bacon. Intuição é a capacidade de escutar o que está sendo enviado a você do futuro, por um pensador do futuro ou por um escritor que precisa que você faça certas coisas. Para mim, isso é intuição. E, nesse sentido, acho que tenho intuição. Eu sinto, escuto o que um futuro escritor, pensador ou artista precisará quando vier a ler meu livro. Não se poder julgar intuição neste momento, é preciso esperar até que surja um pensador e diga “Sim, Jalal Toufic disse isso na página 539 do livro tal ou sei lá o quê!”
Associação Cultural Videobrasil
Ensaio Jalal Toufic, 2000
Se você nos pica, nós não sangramos? Não.
Dedicado à memória viva de Gilles Deleuze, um filósofo não-vingativo
Nós não temos olhos? Não: “Você não viu nada em Hiroshima” (Duras); “mas Ele ordenou-lhes que não dissessem a ninguém o que tinha acontecido” (Lucas 8:56). Nós não temos mãos [?] Não - o homem sem mãos em “L'Ange”, de Bokanowski. Órgãos [?] Não - Daniel Paul Schreber “viveu muito tempo sem estômago, sem intestinos… sem vesícula”; e para Artaud, “o corpo é o corpo/ ele é tudo por si mesmo/ e não precisa de órgãos”. Dimensões, sentidos [?] Não, no caso de um iogue que atingiu pratyahara, o estado de eliminação dos sentidos. Afeições [?] Não - voltando dos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, Septimus, de Virginia Woolf, “não conseguia sentir”. Paixões [?] Não, para quem atingiu o terceiro tipo de sabedoria de Spinoza. Alimentados com a mesma comida [?] Não: “não há outro remédio para saciar a fome do que um bolo de arroz pintado” (Dogen). Feridos pelas mesmas armas, sujeitos às mesmas doenças, curados pelos mesmos meios [?] Não, Judge Schreber é ferido e curado por raios divinos. Aquecidos e resfriados pelo mesmo inverno e verão que um simples cristão? Não: “Viciados sempre se queixam do que chamam O Frio, virando para cima as golas de seus casacos pretos e apertando seus pescoços murchos… pura enganação junk. Um viciado não quer ficar aquecido, ele quer ficar frio-mais frio-FRIO. Mas ele quer O Frio como quer Sua Droga - NÃO FORA, onde não lhe adianta nada, mas dentro, para que possa ficar sentado por aí com a espinha como se fosse um macaco hidráulico congelado… seu metabolismo se aproximando do Zero Absoluto” (Burroughs). - Se você nos pica, nós não sangramos? Não: durante as cerimônias de andar sobre o fogo na comunidade indiana ao sul de Suva, Fiji, os participantes perfuram suas bochechas, testas, línguas e/ou orelhas sem que o sangue escorra. Meu vídeo “'Âshûrâ': This Blood Spilled in My Veins”, de 1996, com sua documentação de sangria ritualística, foi uma demonstração de que xiitas também podem sangrar? Se é de fato uma demonstração, ela seria unicamente em proveito dos israelenses e americanos, de maneira que pudessem verificar que nós também sangramos sem ter de nos bombardear no sul do Líbano. Eu, como xiita, certamente não preciso de tal demonstração, uma vez que já sinto que até mesmo o sangue em minhas veias é sangue derramado, independentemente de quaisquer feridas sofridas em minha vida; uma vez que já sinto que estou sangrando em minhas veias. Mas “'Âshûrâ': This Blood Spilled in My Veins” não é de fato uma demonstração de que, se picados, sangramos: eu não sou uma pessoa vingativa. Uma certa perturbação já é introduzida nesta fórmula por aqueles que, embora sangrem, o fazem sem ser picados ou feridos: os estigmas de muitos santos e muitos histéricos; o sangue derramado das veias de muitos xiitas. Em “O Mercador de Veneza”, de Shakespeare, o advogado informa ao judeu Shylock que ele certamente tem permissão, pelo contrato assinado por seu devedor Antônio, de cortar uma libra de carne do corpo deste, mas que tem de fazê-lo sem verter um pinguinho de sangue, pois, caso contrário, seria perseguido por tentar assassinar um cristão. A estipulação do advogado é um lembrete de que Antônio sangra. Ela implicaria que, enquanto especificava o contrato, Shylock se esquecera de pensar que, na eventualidade de ser picado, Antônio sangraria. Eu precisaria chegar à última parte do discurso de Pórcia-como-advogado, quando ela enumera todas as punições que Shylock deve sofrer, para entender que ela é uma pessoa vingativa? Não seria suficiente que ela sugerisse a Shylock durante sua defesa de Antônio: “Se você nos pica [nós, cristãos], nós não sangramos?”. A desistência de Shylock de fazer uma incisão na carne de Antônio para dela tirar uma libra - no temor de verter sangue e possivelmente causar a morte de um cristão - ainda é um gesto vingativo. Caso Antônio tivesse começado a sangrar através de estigmas, isso teria interrompido a vingança por lembrar a Shylock que Antônio também sangra? Caso o sangramento através de estigmas tivesse acontecido em outros pontos que não os contornos da área designada para sofrer a incisão, isso, ao contrário, seria um gesto vingativo. A vingança realmente poderia ter sido detida? Se a peça de Shakespeare prosseguisse não com a recusa do advogado à proposta tardia de Shylock para acertar a questão com dinheiro, e a subseqüente longa e vingativa lista de punições, variando de religiosas - a conversão - a financeiras, imposta a ele pelo advogado, mas, para surpresa de todos, incluindo Antônio, com o repentino sangramento deste através de estigmas nos contornos precisos da área especificada no contrato - fosse à maneira dos santos ou histericamente -, a vingatividade de ambos os lados possivelmente poderia ter sido detida. O sangramento de Antônio através de estigmas nos contornos precisos da área especificada para a incisão teria dado a Shylock a oportunidade de empreender vingança, já que então ele poderia ter cortado a libra de carne e nada teria provado incontestavelmente, que o sangue derramado teria se originado dos ferimentos a ele infligidos e não dos estigmas (nesta peça em que uma mulher e sua criada assumem o papel de um advogado e de seu subordinado, e em que a filha de Shylock se disfarça de homem etc., o sangue de uma ferida externamente infligida teria se disfarçado de sangue vertendo através de estigmas). O sangramento através de estigmas naquelas áreas precisas teria tornado aparente para todos os presentes, incluindo Shylock e o advogado, que Antônio não sangra no ponto da incisão, que quando picado ele não sangra devido a isso. Tal sangramento teria dado a Shylock a oportunidade de se vingar, enquanto lhe destituía da vingativa lógica da similaridade. O sangramento psicossomático teria impedido as falanges cristãs, e seu cúmplice e suserano, o exército israelense, de massacrar os palestinos em Sabra e Shatila? Eu acho que não. Se você nos faz cócegas, nós não rimos? Quanto a mim, não, e não porque esteja deprimido, mas porque em geral acho esse período histórico tão ridículo que, se começasse a rir, temo que não conseguiria parar. Lembro como, quando ficava chapada de maconha, minha ex-namorada ria nervosamente de tudo sem parar. Eu nunca tive esse tipo de acesso de riso prolongado nas poucas vezes em que fumei maconha. Mesmo assim tenho certeza de que se começasse a rir desse modo em meu estado normal de consciência, minhas risadas certamente ofuscariam as dela. Quanto a ela, não havia perigo de começar a rir e não conseguir parar até passar mal: ela não achava as sociedades contemporâneas tão ridículas. Tudo que peço a este mundo, ao qual já dei três livros, é que se torne menos risível, de modo que eu consiga rir novamente sem morrer por causa disso. E que ele faça isso logo, antes que minha melancolia se torne uma segunda natureza. Esta época me tornou melancólico não só por todas as barbáries e todos os genocídios que vem perpetuando, mas também por ser tão risível. Mesmo neste período de suma tristeza para um árabe, em geral, e para um iraquiano, em particular, tenho mais medo de morrer de rir do que de um suicídio melancólico, e assim sou mais propenso a abrir minha guarda quando se trata de estar triste do que de rir de fenômenos risíveis. O cômico pensador Nietzsche deve ter vivido numa época menos risível do que esta para ainda permitir-se à sublimidade de “Ver trágicas naturezas afundarem e conseguir rir delas, a despeito da profunda compreensão, da emoção e da compaixão que se sente - isso é divino”. Numa época risível, nem mesmo as divindades estão imunes a essa morte provocada pelo riso: não foi desse modo, de acordo com Nietzsche, que os deuses morreram ao ouvir um deles declarar que era o único Deus (“Assim Falou Zaratustra”, “Dos Apóstatas”)? Neste ponto da história, alguém ainda consegue rir lendo Nietzsche, Beckett, Bernhard? Esta época não roubou de nós uma grande faceta dessas obras: seu humor? As pessoas contemporâneas dotadas de humor ainda acham o trabalho de Richard Foreman, ou até mesmo meu trabalho inicial, risível - sem morrer por isso? Todas as pessoas engraçadas de épocas ridículas não são suficientemente cômicas; para descobrir as pessoas com mais humor numa época dessas é preciso procurar entre as sérias, as que precisam dessa seriedade para não morrer de rir. A esse respeito, atingi um ponto crítico em 20 de junho de 1996. Eu estava numa fila bem longa num caixa do supermercado Ralphs, em Wilshire and Bundy, Los Angeles. O funcionário acabara de ir até um dos corredores mais distantes para verificar o preço de um dos itens trazidos por um cliente. No meio de muitas revistas na estante ao lado, vi a última edição da “Time”. A chamada de capa era: “As 25 Pessoas Mais Influentes da América”. Folheando as páginas à procura dessa matéria, fui repentinamente tomado por uma apreensão beirando a ansiedade: se começasse a rir ao ler alguns dos nomes citados, não conseguiria parar, e até minha estimulada seriedade desta vez se mostraria incapaz de funcionar como um mecanismo de defesa. Quatro meses depois, continuo sem saber se o intenso receio que senti naquela situação foi justificado. Mas daquele dia em diante uma vigilância ainda mais intensificada contra começar a rir tornou-se uma das características salientes da minha vida.1 Se você nos envenena, nós não morremos? Não, nós não podemos morrer, seja porque temos assuntos não resolvidos (numa perspectiva restrita: o velho rei Hamlet; ou outra ampliada: os ciclos da morte e do renascimento do Budismo Hinayana); ou porque nos tornamos fundamentalmente liberados de quaisquer assuntos não resolvidos, e agora, quando em vida, estamos plenamente na vida, quando em morte, estamos inteiramente na morte, o nascimento não levando à morte, a morte não levando à vida (“Birth and Death” [“Shoji”], de Dogen). Fossemos nós somente os vivos, que em alguma data futura morreremos biologicamente e deixaremos de ser, haveria apenas a moralidade vingativa da identificação - nós também não choramos, rimos e biologicamente morremos etc.? - a nos impedir de nos matarmos uns aos outros e a impedir os outros de nos matarem. O que mais deveria nos persuadir contra o assassinato é que antes somos seres mortais, portanto não mortos enquanto vivemos, e que como seres não mortos somos submetidos a todo nome na história é eu. A vingativa questão retórica “Nós também não sangramos, rimos e (biologicamente) morremos?” deveria ser substituída por “Eles podem nos fazer chorar, rir, eles podem nos matar - isso é tudo”. A pergunta que segue diretamente as precedentes de “O Mercador de Veneza” é: E se você nos fizer mal, nós não devemos nos vingar? Que perspicácia de Shakespeare ao detectar e sugerir que essa maneira de pensar, que discorre sobre a similaridade, é vingativa. É vingativa não apenas porque uma pessoa só pode se vingar de algo que tem afeições, sentidos etc., ou seja, de alguém que possa ser afetado pela vingança, nem só porque vingança é mais uma similaridade - se somos como você no resto, nos pareceremos com você nisso (Ato III, cena I, 53-62); mas como tal. Sim, em última análise, todo discurso que invoca uma similaridade fundamental é vingativo, é um discurso de vingança. Nietzsche escreveu em algum lugar que é humano se vingar e inumano não fazê-lo. Isso não seria também porque o humanismo (nós também não rimos, sangramos, [biologicamente] morremos…?) é vingativo, mesmo independentemente de qualquer mal sofrido, mesmo ou especialmente quando isso invoca uma coexistência tolerante baseada numa similaridade fundamental? E não são muitas as maneiras antes mencionadas de dizer Não a tais questões vingativas tentativas de escapar, deixando de exercer a generalizada vingatividade em toda parte? - infelizmente, em alguns casos fracassando e resultando ainda em outros tipos de vingança. Extraído de “Forthcoming” (Berkeley, CA: Atelos, 2000), pp. 41-46. 1 Ainda não está claro para mim por que essa apreensão anômala aconteceu neste caso e não, digamos, em reação às notícias que se seguiram ao massacre que um extremista judeu infligiu a dezenas de palestinos que estavam rezando na mesquita em Hebron. Um toque de recolher foi imposto à população palestina de 130 mil pessoas e não aos 450 colonos judeus em seu meio (alegadamente para se proteger contra potenciais represálias por parte dos palestinos). Também não entendo por que isso não se deu em vista da leitura dos principais jornais norte-americanos dizendo que o Iraque está “invadindo” seu norte.
Catálogo do 14º Videobrasil. 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, p. 105 a 109, São Paulo, SP, 2003.